Migalhas de Peso

A violência doméstica contra a mulher durante a pandemia do covid-19

O que os dados mostram?

10/5/2021

(Imagem: Arte Migalhas)

Se podes olhar, vê. Se podes ver, repara.” - José Saramago

Introdução

A violência doméstica contra a mulher é um desafio global a ser superado. Existente há milênios, essa prática que subjuga e deteriora a dignidade de milhões de vítimas deve sempre estar em voga. Nesse sentido, é preciso debatê-la sempre, mas principalmente recentemente, em virtude do isolamento social provocado pela pandemia do covid-19.

Isso porque o distanciamento, necessário por um lado para conter o número de óbitos pela nova doença, acarreta, por outro lado, a aproximação de muitas vítimas aos seus abusadores, como identificado pela matéria “Coronavírus: I'm in lockdown with my abuser” da BBC News1. Dessa maneira, diversas Organizações Internacionais demonstraram preocupação com a questão, logo no início de 2020. Inclusive, prevendo a intensificação de casos de violência de gênero, a diretora executiva da ONU Mulheres, Phumzile Mlambo-Ngcuka, em abril de 2020, manifestou-se acerca da invisibilidade desses casos durante a pandemia do covid-192.

Demonstrada a notável importância da temática, ressalta-se o objetivo central do presente trabalho: examinar dados empíricos brasileiros dos crimes relacionados à violência doméstica antes e durante a crise do coronavírus. Dessa maneira, procura-se examinar se a preocupação elencada pela diretora executiva da ONU Mulheres corresponde à realidade brasileira.

Aspectos históricos da violência contra a mulher no Brasil

A violência contra a mulher é antiga na história mundial. Há de se compreendê-la como fruto da desigualdade de gênero nítida em nossas relações sociais. Evidentemente, é inconcebível destacar o nó na história em que ela se desperta, mas pode ser descrita como o “uma forma de restringir a liberdade de uma pessoa ou de um grupo de pessoas, reprimindo e ofendendo física ou moralmente3.

Nesse sentido, se remete às desigualdades impostas pelo patriarcalismo dimensionado por relações desproporcionais de gênero, não se podendo confundir a “violência contra a mulher” como o contrário de “violência contra o homem”, visto que esta, ao contrário daquela, pode ser descrita como qualquer tipo de ato violento contra um sujeito masculino.

Agravando a situação, mulheres lidaram sem proteção jurídica com essa triste realidade durante milênios. Assim, apenas a partir da segunda metade do século XX, em se considerando a violência de gênero um fato terrível a ser combatido, diversos Estados Democráticos de Direito passaram a tutela-lá no ordenamento jurídico. No caso brasileiro, a luta feminista conquistou a primeira vitória nesse sentido somente em 1985, quando foi inaugurada a primeira Delegacia de Defesa da Mulher no estado de São Paulo e foi instituído o Conselho Nacional dos Direitos da Mulher (CNDM), através da lei 7.353/854.

Com certeza, foram dois grandes passos para a proteção das vítimas desse tipo de agressão. Mas não foram suficientes. Faltava uma legislação que tipificasse, verdadeiramente, as condutas danosas às mulheres e que buscasse não só combatê-las, mas também, preveni-las. E foi com esse objetivo que se promulgou a Lei Maria da Penha (lei 11.340/06).

Como disposto em seu artigo primeiro, a referida lei “cria mecanismos para coibir e prevenir a violência doméstica e familiar contra a mulher”. Além de tipificar a violência doméstica e estabelecer formas de preveni-la, outro aspecto fundamental dessa legislação é a criação de medidas protetivas durante o processo de investigação e durante o processo penal. Dessa forma, apenas em 2006, a violência doméstica finalmente ganhou significado nos códigos nacionais.

Ainda, outra vitória para a causa feminista se deu em 2015, ano em que fora acrescentado ao Código Penal o conceito de feminicídio. Entretanto, a luta não acabou. Infelizmente a proteção jurídica conquistada nos últimos anos não foi suficiente para remover o Brasil do 5° lugar do Ranking Mundial de Feminicídio de 2019, segundo o Alto Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos (ACNUDH)5. Com isso, investiga-se, em diante, dados empíricos sobre a violência doméstica antes e durante a pandemia, a fim de verificar se a opinião da diretora executiva da ONU Mulheres corresponde ou não à realidade brasileira.

Dados empíricos sobre violência doméstica antes e durante a pandemia

A violência doméstica contra a mulher vem sendo estudada por diversos núcleos de pesquisa ao redor do Brasil. Os dados aqui analisados foram retirados do Anuário Brasileiro de Segurança Pública de 20206 e da nota técnica “Violência Doméstica durante a pandemia de Covid-19 - ed.37 ambos do Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP). Os gráficos elaborados são de produção própria.

Serão comparados dados do 1° semestre de 2019 e do 1° semestre de 2020, a fim de examinar se a hipótese do aumento de violência de gênero durante a pandemia corresponde à realidade. Serão analisados especificamente o Estado de São Paulo, o Rio de Janeiro e os dados de todo o Brasil. Os espaços em branco se devem à falta de números.  Eis os resultados obtidos:

(Imagem: Divulgação)

Em relação aos casos de lesão corporal dolosa contra vítimas do sexo feminino, observa-se redução nos registros tanto no Rio de Janeiro, com uma variação de -22,0%, tanto em São Paulo, com uma variação de -12,2%, quanto no Brasil, com uma variação de -9,9%.

(Imagem: Divulgação)

Em se tratando dos casos de ameaça contra vítimas do sexo feminino, nota-se redução nos registros tanto no Rio de Janeiro, com uma variação de -34,7%, tanto em São Paulo, com uma variação de -20,3%, quanto no Brasil, com uma variação de -15,8%.

(Imagem: Divulgação)

Nos casos de estupro e estupro de vulnerável, verifica-se decrescimento nos registros tanto no Rio de Janeiro, com uma variação de -23,8, tanto em São Paulo, com uma variação de -14,9, quanto no Brasil, com uma variação de -22,9%.

(Imagem: Divulgação)

Agora, em relação aos casos de feminicídio, há redução de 44,0% no Rio de Janeiro. Porém, observa-se aumento de 2,1% em São Paulo e de 2,2% no Brasil.

(Imagem: Divulgação)

No que se refere à concessão de Medidas Protetivas de Urgência (MPU), instrumento estabelecido pela Lei Maria da Penha, houve queda de 30,1% no Rio de Janeiro e de 11,6% em São Paulo. Não há dados para todo o Brasil.

(Imagem: Divulgação)

Por último, quanto ao total de ligações ao 190 sob a natureza de violência doméstica, houve aumento de 7,2% no Rio de Janeiro e de 3,8% no Brasil. Não há dados para o estado de São Paulo.

Análise dos dados

À primeira vista, os dados obtidos contrariam a preocupação da ONU Mulheres acerca do aumento de casos de violência doméstica. No primeiro semestre de 2020, obtivemos uma redução de 9,9% nos registros de lesão corporal dolosa, de 15,8% nos de ameaças e de 22,9% nos estupros e estupros de vulneráveis em todo o país. Dessa forma, a violência doméstica aparenta não ser um problema agravado pela pandemia, mas sim atenuado.

Entretanto, os dados devem ser analisados em conjunto e de acordo com os fatos. Um caso de violência doméstica configura à vítima grandes obstáculos para a realização da denúncia. No contexto do primeiro semestre de 2020, a elevada presença do agressor aumenta profundamente o medo da vítima realizar uma ligação o denunciando. E diminui intensamente a possibilidade dela se dirigir à uma delegacia.

E nessa perspectiva, ressalta-se que grande parte dos crimes analisados dependem da presença da vítima na Delegacia de Polícia para a instauração do inquérito. Com a exceção do feminicídio: o único deles que se registrou aumento em São Paulo e no Brasil. Assim, o que se observa, na verdade, é a redução do registro dos crimes, que necessitam a presença da vítima para o boletim de ocorrência. Inclusive, no caso específico de estupro, ainda se exige exame pericial, elevando demasiadamente os obstáculos, sendo, desse modo, o crime que mais registrou queda.

No mais, em contraposição com a ideia de que os crimes poderiam ter realmente diminuído, verifica-se o aumento das ligações ao 190 de mulheres pedindo socorro tanto no Rio de Janeiro, como em todo o Brasil. Porém, como não basta a ligação para que se inicie um processo, havendo muitos outros custos para a vítima, a diminuição do registro dos casos representa, no final das contas, a dificuldade de a vítima acessar a justiça e não a redução real dos casos de violência doméstica.

E todo esse cenário de falta de amparo jurídico, resulta, em última análise, na redução de Medidas Protetivas de Urgência concedidas. Esse instrumento, originado na Lei Maria da Penha é de suma importância para a proteção de mulheres que sofrem com a violência de gênero. No caso do Rio de Janeiro, a variação chegou à casa dos -30%.

Dessa maneira, conclui-se que quando se trabalha com dados é preciso reconhecer a limitação das pesquisas. O alto custo de denúncia para uma vítima, acentuado no contexto de pandemia, vicia os dados empíricos da realidade. Por conseguinte, se faz impossível compreender o cenário que o Brasil vive hoje. Afinal, é provável uma alta subnotificação nos registros dos casos de violência doméstica.

Isso porque se constata que os meios atuais de denúncia são insuficientes para proteger mulheres vítimas de violência doméstica. Foi com esse pensamento que a ONU realizou inúmeras recomendações de medidas de enfrentamento à violência de gênero no início de 2020, representados nesse quadro8:

(Imagem: Divulgação)

Verifica-se, portanto, que o Brasil desconsiderou diversas recomendações da ONU. A organização internacional apontou cinco caminhos diferentes para se prevenir violência doméstica e para a facilitação das denúncias. Entretanto, nosso país só seguiu uma delas.

Por fim, ressalta-se ainda que a maioria dos outros países registrou aumento nos casos de violência doméstica, mesmo seguindo as recomendações da ONU. Isso significa que, de fato, estamos lidando com um problema global de enormes dimensões. Aponta, inclusive, que a preocupação da Phumzile Mlambo-Ngcuka, diretora executiva da ONU Mulheres, faz sentido. Porém, se os desafios desses países são grandes, o nosso é ainda maior: conseguir, ao menos, enxergar a nossa realidade.

Conclusão

Em suma, foram analisados dados oficiais acerca da violência de gênero no Brasil. A finalidade é examinar se a hipótese de que a violência doméstica teria aumentado na pandemia se confirma em dados oficiais. Porém encontramos um grande impasse: a provável subnotificação de registros dessas violências.

De todo modo, isso não se afasta muito do que se esperava. Organizações internacionais já previam a redução das denúncias mesmo com o aumento da violência, caso não houvesse medidas de prevenção efetivas. Nessa perspectiva, nota-se a insuficiência governamental brasileira em lidar com a questão. Dessa maneira, conclui-se que o buraco é ainda mais profundo: estamos cegos para a nossa realidade, como em “Ensaio sobre a cegueira” de José Saramago.

Assim, mesmo com as conquistas feministas no que se refere à tutela jurídica, como a Lei Maria da Penha e a Lei do Feminicídio, observa-se, afinal, que estas mais aparentam ser “leis para inglês ver” do que legislações que visam proteger a mulher brasileira. Por fim, ainda temos muito a progredir.

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1 MOHAN, Megah. Coronavirus: I’m lockdown with my abuser. BBC News, 2020.

2 Disponível em: clicando aqui 

3 TELES, M.A.A.; MELO, M.M. O que é Violência contra a Mulher. São Paulo: Editora Brasiliense, 2002,p. 15.

4 MIRIM, Liz Andréa Lima. Balanço do Enfrentamento da Violência contra a Mulher na perspectiva da Saúde Mental. Vinte e cinco anos de respostas brasileiras em violência contra a mulher (1980-2005) – alcances e limites. São Paulo: Coletivo Feminista Sexualidade e Saúde, 2006.

5 Disponível clicando aqui 

6 Disponível clicando aqui 

7 Disponível clicando aqui 

8 Elaborado pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP).

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TELES, M.A.A.; MELO, M.M. O que é Violência contra a Mulher. São Paulo: Editora Brasiliense, 2002,p. 15.

MOHAN, Megah. Coronavirus: I’m lockdown with my abuser. BBC News, 2020. Disponível clicando aqui. Acesso: 2 de abril de 2021.

“Violência contra as mulheres e meninas é pandemia invisível, afirma diretora executiva da ONU Mulheres”.  Disponível clicando aqui . Acesso: 2 de abril de 2021

MIRIM, Liz Andréa Lima. Balanço do Enfrentamento da Violência contra a Mulher na perspectiva da Saúde Mental. Vinte e cinco anos de respostas brasileiras em violência contra a mulher (1980-2005) – alcances e limites. São Paulo: Coletivo Feminista Sexualidade e Saúde, 2006.

“Casos de feminicídio no Brasil aumentam 7,3% quando comparados com 2018.” Disponível clicando aqui . Acesso: 2 de abril de 2021.

“Anuário brasileiro de segurança pública”. Fórum Brasileiro de Segurança Pública, 2020.

“Violência Doméstica durante a pandemia de Covid-19 - ed. 3”. Fórum Brasileiro de Segurança Pública, 2020.

Gabriel Prevot Couto
Graduando em Direito na Fundação Getúlio Vargas - FGV Direito Rio.

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