A confiança é uma característica que norteia a natureza humana, enquanto certeza a respeito de uma determinada ocorrência. Ela pode ter objeto, além de fenômenos naturais, a previsibilidade do comportamento de outrem. Essa inata predisposição do homem em confiar representa uma das fundamentais condições para que os seres vivos possam viver em sociedade. De toda sorte, a confiança pode, ainda, recair no próprio sujeito ou estender-se a outras pessoas. Aquela confiança que se deposita em si é a intitulada autoconfiança, como na alegoria do atleta que confia em si mesmo para conquistar a vitória. Além dessa espécie de confiança, o ser humano necessita confiar em outros, como, no caso do atleta, no seu treinador. Aqui há espaço para a formação de uma relação de confiança.
Trazendo tais noções para o mundo jurídico, a confiança que é acolhida pelo direito, e que passa a ser um bem da vida juridicamente protegido, é aquela gerada pelo comportamento de um terceiro. Para efeito do presente estudo, um terceiro qualificado, consubstanciado em agente estatal. O ponto fundamental é exatamente este: percebermos que os atos emanados pelo Estado geram confiança por parte dos cidadãos e que, com tal força persuasiva, direciona comportamentos na sociedade tendo em vista exatamente essa orientação.
E, assim, revela-se um princípio jurídico, muitas vezes esquecido pelos aplicadores do direito, concernente à confiança legítima. Conforme tivemos a oportunidade de escrever, academicamente, confiança legítima é a certeza da estabilidade de uma orientação oficial, porque justamente provém de ato de um terceiro qualificado, isto é, do Poder Público, e que induziu o confiante (particular) a crer na sua eficácia, validade e permanência, traduzindo-a em comportamento ativo ou omissivo.
Transpondo essa visão jurídica para a situação fática que intitula estas notas, vislumbra-se, hodiernamente, em toda mídia, o Estado a promover urgente necessidade de a população tomar a primeira dose da vacina contra o Coronavírus, explicando que a imunização se última com a segunda dose. Anuncia, ostensivamente, a necessidade de ambas.
Ora, é evidente que esta postura do Estado cria, em todos nós, a confiança legítima em que haverá disponibilidade da segunda dose, não apenas por força dos apelos governamentais a respeito, como também pela circunstância que a imunização somente se completa com a aplicação das duas doses da vacina.
Se o Estado, por qualquer motivo, deixa de aplicar a segunda dose, estará, inequivocamente, defraudando o princípio da confiança legítima, uma vez que provocou no cidadão, ao alardear que forneceria a vacina e administrar a primeira dose, a certeza de que a segunda adviria, fazendo crer que sua orientação era eficaz, válida e permanente e, pois, que estava garantida a completa imunização. Tomar a primeira dose foi a evidente concretização da confiança legítima de toda a população.
Situações como a presente, infelizmente, além de provocar grave crise de confiabilidade na postura estatal, enseja consequências jurídicas em termos de responsabilidade dos gestores. Pode haver prejuízos materiais, como, por exemplo, gastos com o inútil e frustrado deslocamento até o posto de vacinação ou, eventualmente, pela não remuneração por aquele dia perdido ou, ainda, por trabalho que deixou de ser executado.
Ainda é de se levar em conta o enorme transtorno que esse atraso representa, uma vez que enseja inúmeros retornos aos locais de vacinação, sempre confiando que haverá aplicação da vacina. Cada ida ao posto de saúde ou aos hospitais sempre implica em risco iminente de se contrair a doença. De outro lado, se há um prazo definido pela ciência, qualquer alteração poderá ser prejudicial, seja porque realizado fora do padrão científico recomendado, seja porque se está protelando indevidamente a imunização do indivíduo.
Tudo isso gera um dano moral coletivo, pelo desespero devido à possibilidade de se contrair a grave doença, pela angústia da incerteza e pela depressão, causados em cada pessoa, pela terrível frustração, depois de tantas promessas. Estes, são fatos notórios.
O contexto, rapidamente enfocado, demonstra a transcendente importância que se deve conferir ao princípio da confiança legítima na seara do direito administrativo brasileiro, cujo conteúdo jurídico impõe prescrições que determinam ao agente público uma atuação em conformidade com a expectativa legítima que criou na população. Convidamos os leitores que se interessarem pelo tema a percorrerem nosso livro “Ensaios sobre o Conteúdo Jurídico da Confiança Legítima e sua Incidência no Setor de Infraestrutura”, publicado pela Editora Contracorrente. A estes desejamos uma excelente jornada de leitura!