Migalhas de Peso

Posso rescindir por justa causa um contrato de trabalho suspenso?

Justa causa e falta grave são conceitos distintos e imprecisos. A expressão “causa“ não tem sentido jurídico, mas popular, e “justa“ ou “injusta” será a consequência do despedimento, e não a própria razão para a dispensa do empregado.

7/5/2021

(Imagem: Arte Migalhas)

§1º

S O B R E   A   F A L T A   G R A V E

O conteúdo ético do contrato de trabalho é a confiança (fidúcia) entre as partes. Se essa confiança for quebrada pelo patrão ou pelo empregado, de tal modo que a relação de emprego não possa mais continuar a partir dali, o contrato de trabalho se rompe, daí advindo as consequências que a CLT estabelece.

Justa causa e falta grave são conceitos distintos e imprecisos. A expressão “causa“ não tem sentido jurídico, mas popular, e “justa“ ou “injusta” será a consequência do despedimento, e não a própria razão para a dispensa do empregado.

Falta grave é o fato gerador de um motivo justo — de uma justa causa — para o desfazimento do contrato de trabalho. Justa causa é apenas o efeito que decorre da prática de um ato ilícito do empregado ou do patrão quando violam obrigação legal ou contratual, de tal modo que a relação de emprego se torna a partir dali insustentável.

O conceito de gravidade de uma falta varia caso a caso. Há um exemplo clássico, muitas vezes referido na doutrina¹, e que bem demonstra como esse termo é volátil: se o patrão não tolera cheiro de cigarro, e põe na sua oficina de mármores um aviso de “proibido fumar“, mas um empregado desobedece e fuma, há simples transgressão disciplinar sem qualquer relevância, que vai provocar, se muito, uma reprimenda do empregador. Mas, se esse mesmo aviso for desrespeitado numa fábrica de explosivos, numa loja de fogos de artifício ou numa indústria de petróleo, óleo ou gás, a infração passa a ser gravíssima porque aí já estarão em jogo o patrimônio da empresa e a vida das pessoas. Por isso, é extremamente difícil valorar quando uma dispensa é justa e quando não o é. O juiz, ao examinar um caso de dispensa por falta grave, tem de verificar as alegações de modo objetivo e subjetivo. Objetivamente, deve levar em conta as circunstâncias e os fatos envolvidos na prática do ato, como o local e o momento da falta; subjetivamente, tem de levar em consideração a personalidade do empregado, isto é, os seus antecedentes funcionais, o tempo de casa, sua cultura, o grau de discernimento sobre a falta e suas consequências. Os elementos objetivos darão ao juiz a intensidade da falta; os subjetivos, mostrarão até que ponto a confiança que une patrão e empregado foi realmente abalada.

Justa causa é, portanto, um conceito ambíguo, subjetivo e volátil. O que é justo para uns pode não ser para outros.

São três os requisitos da justa causa: gravidade da falta, atualidade e relação de causalidade.

Para haver justa causa para a dispensa do empregado, é preciso que a falta seja de tal modo grave que torne impossível a continuação do contrato de trabalho pela perda imediata e irreversível da confiança. Não é qualquer falta que permite o desfazimento do contrato de trabalho por justa causa. A prova que tem de ser feita é a de que a falta afetou substancialmente a relação de confiança, e já não é mais possível manter a relação de emprego. É preciso, também, que essa falta seja atual. Se o contrato de trabalho sobreviveu incólume à falta praticada pelo patrão ou pelo empregado, e a confiança não chegou a ser abalada, entende-se, do ponto de vista jurídico, que a falta não foi grave a ponto de resolver o contrato, ou que a empresa renunciou ao seu direito potestativo de resilir. Alguma doutrina ainda exige imediatidade ou imediação na punição. Entende que a falta deve ser punida imediatamente, sob pena de presumir-se que a inação do patrão se deu porque a falta não tinha gravidade e por isso se permitiu a sobrevivência do contrato de trabalho. O tempo decorrente entre a prática da falta e sua punição pode variar de caso a caso, e não serve de elemento para a descaracterização da justa causa ou para a aferição da gravidade da falta. A lei não diz até que ponto há imediatidade e a partir de que momento já não há. Tudo depende do tipo de falta, da repercussão dos seus efeitos na confiança que atrela o patrão ao empregado e do grau de organização dos serviços. A imediatidade é indício seguro de que a gravidade da falta abalou a confiança da parte inocente. É claro que também o conceito de imediatidade varia segundo o porte da empresa, a complexidade dos negócios. Não se pode exigir a mesma rapidez na apuração da falta e na identificação de seu autor numa empresa com quatro ou cinco empregados e numa empresa com dezenas de filiais e centenas de colaboradores. Tudo deve ser serenamente sopesado pelo juiz. Apura-se a atualidade da falta a partir do momento em que aquele que tiver o dever e o poder de punir tomar conhecimento do ato faltoso, e não, necessariamente, a partir do momento em que a falta foi cometida. Por fim, a doutrina exige uma relação de causa-efeito, ou nexo etiológico entre a falta e a rescisão do contrato de trabalho. A rescisão do contrato de trabalho, por justa causa, deve ter por fundamento a prática de determinada falta considerada grave. A falta grave imputada ao empregado deve ser a causa determinante da decisão do patrão de pôr fim ao contrato de trabalho. Da mesma forma, se é o empregado quem toma a iniciativa de romper o contrato de trabalho imputando à empresa alguma falta contratual², deve apontá-la expressamente para que se possa apurar se a falta é realmente grave a ponto de tornar impossível a continuidade do vínculo e se o pedido de rescisão indireta do contrato, por culpa do patrão, tem realmente algum senso lógico, ou é mérito capricho do empregado.

Por fim, a punição não pode ficar nem além nem aquém da gravidade da falta. A desproporção entre a punição aplicada e a gravidade da falta é ruim por dois modos: se a punição é maior do que a gravidade da falta, pode caracterizar rigor excessivo; se é menor, pode configurar uma perigosa camaradagem da empresa. No primeiro caso, exagerando no direito de punir, o patrão sai da sua razão e pode ser obrigado a reparar o dano, inclusive moral. No segundo, pode passar a fama de bonzinho, relapso, displicente, de quem não está nem aí para o desmando dos empregados, gerando insatisfação ou indisciplina entre os colaboradores. O juiz, por sua vez, não pode dosar a pena. Se entender que tal e qual punição é excessiva, não pode reduzi-la ao limite do que entender razoável. Deve cancelá-la. Da mesma forma, não pode agravá-la se entender que o patrão foi condescendente demais.  Não pode haver duas ou mais punições pela mesma falta. Se determinada falta cometida pelo empregado já foi punida de outra forma que não a dispensa motivada (por exemplo, com suspensão ou advertência), não pode mais servir de fundamento para a dispensa por justa causa. Se houver mais de uma penalidade pela mesma falta, a segunda será anulada pelo juiz. Se o patrão aplicar ao empregado uma justa causa e depois arrepender-se, modificando a rescisão para dispensa sem justa causa, suspensão ou advertência, por exemplo, poderá fazê-lo apenas se o empregado com isso concordar. Não concordando, prevalece a primeira motivação (justa causa), mas o ônus de provar a gravidade da falta é do patrão.

§2°

 Suspensão de Contrato de Trabalho e Justa Causa

É frequente ouvir-se aqui e ali que a suspensão do contrato de trabalho impede automaticamente a sua rescisão por justa causa. Não é bem assim. O que não pode ocorrer durante a suspensão do contrato de trabalho é a sua rescisão sem justa causa por iniciativa da empresa, mas é perfeitamente possível que um empregado, mesmo com o contrato de trabalho suspenso, cometa alguma falta grave cujos reflexos deletérios respinguem na empresa e provoquem a sua rescisão motivada.

Durante a suspensão de um contrato de trabalho, as duas obrigações principais — a de prestar trabalho e a de pagar salário — de fato ficam provisoriamente suspensas, mas todas as outras, especialmente as de conteúdo ético, continuam inteiras e exigíveis de parte a parte.

A CLT não traz os conceitos de justa causa ou de falta grave. O dia a dia do foro é que se encarrega de baralhar os dois termos e muita vez se toma um pelo outro. A CLT limita-se a especificar alguns fatos que supõe graves o suficiente para determinar o fim do contrato de trabalho, sejam praticados pelo patrão (CLT, art.483) ou pelo empregado (CLT, art.482).

A maioria das faltas enumeradas nesses dois artigos pode ser praticada dentro ou fora do ambiente de trabalho, especialmente agora que, em razão da pandemia da covid-19, muitas empresas estão optando pelo teletrabalho ou pelo home-office.

O art.482, “c” da CLT fala em falta grave de improbidade. Probo quer dizer honesto. Logo, ímprobo é o desonesto. Improbidade é, portanto, desonestidade. O conceito de desonestidade é moral, e não jurídico. Improbidade é a violação de um dever legal, contratual, social, moral ou ético que repercute negativamente no ambiente de trabalho. É desonesto tanto quem furta, extorque, se apropria, recepta, corrompe ou rouba quanto quem age com má-fé, vilania, dissimulação, fraude ou dolo, etc. A doutrina trabalhista restringe a justa causa por improbidade aos casos em que há subtração ou dano aos bens materiais do patrão, de algum vivente da casa ou de outro colega de trabalho. Atos de improbidade (desonestidade) têm, em regra, dois momentos: um, intencional(psicológico), e outro material. No intencional, a desonestidade ou não é revelada (e nesse caso, a falta não chega a se configurar) ou é revelada por indícios, pela intenção de apropriar-se do patrimônio alheio; no material, o empregado afasta-se da mera conjectura para, efetivamente, apossar-se do que não é seu. Não é preciso que haja prejuízo efetivo ao patrimônio do patrão, de alguém da casa ou de outro colega de trabalho para que a improbidade se consume, mas a quebra de confiança por meros indícios tem de ser provada robustamente. Diferentemente de algumas outras faltas graves que exigem para a sua conformação a repetição ou sequência de atos irregulares do empregado, a improbidade é falta que se consuma num único ato. A improbidade não comporta graus. Ninguém é mais ou menos honesto.  Improbidade é um desvio de conduta, um ato desonesto. Pouco faz se essa desonestidade aflorou durante o serviço ou fora do local de trabalho. Pode haver dispensa por justa causa por improbidade ainda que a conduta desonesta do empregado não tenha qualquer nexo com a relação de emprego. O que conta é a gravidade da falta e o grau de abalo da confiança que liga patrão e empregado, e não o local onde a falta foi cometida.

O art.482, “b” da CLT fala em incontinência de conduta ou mau procedimento. Ninguém pode dizer, sem erro, o que é incontinência de conduta e o que é mau procedimento. Esses conceitos estão no imaginário de qualquer pessoa e variam de um para outro segundo os diversos graus de cultura, classe social, costume, moralidade social média, etc. O que se pode dizer — mas isso mais atrapalha que ajuda — é que toda incontinência de conduta é uma forma de mau procedimento, mas nem todo mau procedimento é, necessariamente, um tipo de incontinência de conduta. Esses dois tipos de falta grave não se confundem.

Incontinência de conduta é expressão reservada pela doutrina e pela jurisprudência para referir-se a um desvio de comportamento sexual do empregado, como obscenidades, pornografia, pedofilia, voyerismo, vida desregrada, acesso contínuo a sites pornográficos na internet, essas coisas.

Mau procedimento é a mais ampla das justas causas. Linguagem chula entre colegas — especialmente na frente de crianças, mulheres, idosos ou em ambiente cortês —, palavrões, fofoca, brincadeiras perigosas ou de mau-gosto ou bisbilhotice da vida alheia configuram mau procedimento. Em tese, todo comportamento do empregado que se desvie do padrão médio de moralidade é uma forma de mau procedimento. Por exclusão, toda falta grave que não puder ser encaixada no conceito das outras faltas graves é mau procedimento. Tanto a incontinência de conduta quanto o mau procedimento podem ocorrer dentro e fora do local de serviço, com o contrato em vigor ou não (férias, licenças, finais de semana, etc). Se essas faltas forem praticadas fora do serviço, mas permitirem uma ligação óbvia entre o empregado e o seu local de trabalho, estará tipificada a sua gravidade e os reflexos negativos na relação de emprego serão os mesmos.

O art.482, “c” da CLT também considera falta grave a negociação habitual.  Na minha opinião, a expressão “negociação habitual“ está na lei num sentido amplo. Significa qualquer atividade do empregado, e não apenas aquela ligada ao comércio. Pode ser praticada no local do serviço ou fora dele. É o caso, por exemplo, da doméstica que, além do serviço da casa, faz manicura na vizinhança, revende lingeries, carnês, produtos de limpeza ou de toucador. Mesmo aquela atividade benemerente, caritativa ou religiosa pode vir a caracterizar um tipo de negociação habitual (se bem que, nessa hipótese, a conduta irregular da empregada melhor se enquadraria como desídia) se provados a falta de autorização do patrão e o prejuízo ao serviço. Por exemplo: se uma empregada presta serviço comunitário ou participa de atividades religiosas e usa o telefone da casa do patrão para estabelecer vínculos entre outros partícipes dessas atividades, marcar reuniões, discutir projetos, arrecadar alimentos, programar cultos, seminários, retiros, essas coisas, e isso vier a comprometer a regularidade do serviço doméstico, pode configurar negociação habitual. O intuito de lucro não é elemento determinante. É imprescindível o nexo etiológico entre o baixo rendimento e a negociação habitual. Isto é: para que se configure essa falta o patrão tem de provar que o baixo rendimento do trabalho é consequência direta e imediata dessas atividades atípicas. Embora não haja critério legal para se estabelecer a quantidade de atos que configuram a falta, sua caracterização exige habitualidade. Não se configura com a prática de um ato isolado, ou dois ou três atos espaçados no tempo. Da mesma forma, pode configurar-se a falta se o empregado pratica a negociação por conta própria ou alheia. Para que essa falta seja configurada, a doutrina exige (1) falta de permissão do patrão, (2) concorrência com a atividade do patrão e (3) prejuízo ao serviço. Desses, apenas o 2º (concorrência) não se aplica ao doméstico porque família não se equipara a empresa e não é doméstico aquele que trabalha em casa de família onde haja atividade econômica. A permissão do patrão tem de ser escrita, preferentemente, mas o consentimento pode ser presumido ou tácito se o patrão tolerar essa prática.

O art.482, “d” da CLT também define como falta grave a condenação criminal do empregado. A condenação criminal do empregado impõe a rescisão do contrato de trabalho não necessariamente pelo ilícito penal cometido, mas pela absoluta impossibilidade de que o empregado continue trabalhando, já que terá de se recolher à prisão para cumprir a pena que lhe tiver sido imposta. Dependendo da gravidade do crime, a condenação criminal em si não é caso de rescisão de contrato se o empregado puder trabalhar durante o dia e recolher-se à prisão, à noite. Por isso, a CLT fala em condenação passada em julgado, e desde que a execução da pena não tenha sido suspensa. Sentença passada em julgado é aquela contra a qual não cabe mais nenhum recurso. Se, mesmo condenado por sentença passada em julgado, tiver havido suspensão da execução da pena, o empregado poderá continuar prestando serviços normalmente e a condenação criminal, só por esse aspecto, não ensejará a rescisão do contrato de trabalho. Mesmo assim, o contrato de trabalho só se rescinde por abandono por mais de trinta dias. Condenação criminal a pena inferior a trinta dias não é suficiente para a terminação do contrato, salvo se em razão da natureza do delito que ensejou a condenação o patrão entender quebrada a confiança no empregado e decidir resolver o contrato. É claro que certas condenações criminais, pela sua gravidade ou pela repercussão do delito, refletem na fidúcia do contrato de trabalho e legitimam a sua rescisão pelo patrão, mas, nesse caso, a justa causa será de improbidade, ou mau procedimento, ou outro fundamento qualquer, e não, necessariamente, o ilícito que levou à condenação criminal. Essa condenação criminal não se refere, por óbvio, àquelas faltas praticadas pelo empregado contra o patrão no local de trabalho. Se isso ocorrer, a falta poderá ser enquadrada em qualquer outra hipótese do art.482 da CLT. A condenação criminal de que aqui se trata se refere à falta praticada pelo empregado fora do local de trabalho, por razões estranhas à relação de emprego. Mesmo que, por falta de prova, o empregado tenha sido absolvido no juízo criminal, pode vir a ser dispensado por justa causa se a repercussão sobre a autoria do delito ou do processo penal respingar no conceito da família ou da empresa e destruir a confiança que o ligava ao patrão.

O art.482, “e” da CLT fala em falta grave de desídia no desempenho das funções. Desídia é negligência, incúria, falta de cuidado, desatenção, desleixo, desmazelo, desinteresse.

É uma falta culposa e não dolosa.

Há três tipos de culpa: negligência, imprudência e imperícia. Só os dois primeiros (negligência e imprudência) caracterizam desídia no processo do trabalho. Imperícia é a inaptidão do empregado para certas tarefas e isso independe de sua vontade. Se a desídia for efetivamente desejada pelo empregado haverá dolo e a falta deixa de ser desídia para ser improbidade.

Em regra, a desídia é fruto da soma de vários atos sequenciais que denotam o perfil ou a intenção do empregado (impontualidade, faltas injustificadas ao serviço, desmazelo pessoal ou com as coisas da casa, serviço malfeito, refeições preparadas sem higiene ou condimento adequado, etc), mas pode configurar-se pela prática de um só ato, desde que grave. 

A doutrina entende que todas as faltas anteriores por desídia devem ser punidas, ainda que mediante simples advertências verbais, sob pena de se presumir que não eram graves ou foram toleradas pelo patrão.

Não é preciso que haja um escalonamento na punição (primeiro, advertência verbal; depois, escrita; por fim, suspensão de um dia, dois ou três e, por último, dispensa), mas é fundamental que cada falta, por menor que seja, tenha sido observada e reprimida. Na configuração da desídia como motivo determinante da resolução do contrato as faltas anteriores não se somam para aumentar a gravidade da última, mas são necessárias para desenhar ao juiz um perfil do empregado e para demonstrar, se preciso, a sua culpa.

Assim como nos demais casos, as punições devem ser proporcionais à gravidade da falta, deve haver imediatidade na punição e a última falta cometida pelo empregado deve ser a causa determinante da decisão do patrão de romper o contrato (nexo de causalidade entre a falta e a decisão de desfazer o vínculo).

A desídia pode ocorrer no local de trabalho ou fora dele, mas sempre em função das atividades do empregado. A desídia do empregado no trato das suas obrigações pessoais não é da conta do patrão.

O art.482,”f” da CLT considera a embriaguez falta grave para a rescisão do contrato de trabalho. Embriaguez é o estado de torpor em que o indivíduo não é capaz de executar com prudência a tarefa que lhe é confiada. Não se confunde com o simples hábito de beber (o tal “beber socialmente “). O álcool traz prejuízos afetivos, éticos, sociais, intelectuais e físicos ao usuário. O ébrio é um dependente químico, um doente, e não um marginal. Deve ser tratado e não punido, mas assim está na lei trabalhista. Segundo alguns, a inclusão da embriaguez como causa para a dispensa do empregado não se deve tanto aos prejuízos que o vício possa trazer ao patrão ou à imagem da família ou da empresa, mas à intenção do Estado de desestimular a propagação do alcoolismo.

Fala-se em embriaguez habitual ou em serviço. São dois tipos de conduta funcional. Tanto pode haver solução do contrato quando o empregado habitualmente se embriaga, quanto, mesmo não sendo um beberrão contumaz, se embriagar em serviço, ainda que seja uma única vez. Em qualquer dos casos quebra-se a fidúcia. Uma e outra são, em rigor, variações da incontinência de conduta e do mau procedimento.

Quando se fala em embriaguez, não se está referindo apenas ao álcool, mas a qualquer substância química, alucinógena ou estupefaciente. Drogas nocivas ou entorpecentes podem, da mesma forma, dar azo à resolução do contrato.

A embriaguez pode ser involuntária (ou acidental) ou intencional. A involuntária (fruto de erro, ignorância, acidente ou coação) não constitui falta grave.

Tanto quanto nos demais casos, a falta deve ser avaliada em seus aspectos subjetivos e objetivos. Um pifão ocasional num momento de euforia coletiva ou em razão de um acontecimento excepcional na vida da pessoa não deve servir de motivo para a terminação do contrato.

O art.482, “g” da CLT fala em violação de segredo de empresa. Refere-se, obviamente, aos inventos, às técnicas de produção, às estratégias de comércio, ao know-how e à saúde financeira dos negócios, mas aplica-se, também, aos domésticos e à família, guardadas as proporções. Desde que dessa violação possa decorrer prejuízo econômico ou moral, configura-se a falta. Neste caso, a quebra da confiança se dá pela divulgação de um fato que a família ou a empresa não quer ou não pode revelar, seja ligado à pessoa dos empregados ou dos sócios, à sexualidade ou à situação econômica dos patrões, aos vícios, doenças, à limitação física, aos hábitos ou ao relacionamento entre os viventes da casa ou colaboradores da empresa.

Não é preciso que o prejuízo se consume. Basta a possibilidade de que isso ocorra para se configurar a falta grave.

Outra coisa: o empregado tem de agir com culpa ou dolo na revelação do segredo. O língua-solta, que revela segredo por imprudência ou negligência não incide nessa falta, o que não quer dizer que pela mesma conduta não tenha incorrido em outra (desídia ou mau procedimento).

O segredo precisa referir-se a fatos verdadeiros.

Em geral, configura-se a falta com a violação de um único segredo cujas repercussões negativas sejam relevantes na estabilidade da família ou da empresa, mas pode configurar-se a falta com a repetição de revelação de segredos de pouca monta, embora caros ao pessoal da casa ou da empresa.

Não comete falta grave o empregado que revela fato inverdadeiro, exceto, é claro, se o fizer intencionalmente, com ânimo de prejudicar, ofender, caluniar, magoar. Também não a comete quem revela fato ilícito, desde que o revele a quem tem o dever de reprimi-lo.

Segredo de empresa é tudo o que se refere à produção ou ao negócio, conhecido por poucos e que não deve ser revelado. Segredos são fatos da vida privada que interessam apenas àqueles a quem convém manter em sigilo. A violação de um segredo fere a privacidade das pessoas. Privacidade é o direito de ser deixado em paz, o direito de estar só, de não ser conhecido em suas particularidades senão por si mesmo.

O art.482, “h” da CLT fala em indisciplina e insubordinação. São coisas distintas. Indisciplina é o desrespeito às ordens gerais do patrão, às normas genéricas de conduta da casa ou da empresa. Insubordinação é o desrespeito às ordens diretas do superior hierárquico. Ambas pressupõem ordens lícitas, compatíveis com o contrato de trabalho e que não afetem a vida ou a integridade física ou mental do empregado. Uma empregada alérgica a pelo de cachorro ou que tenha fobia de animais não pode ser obrigada a lhe dar banho ou levá-lo para passear. Na indisciplina há um descaso pelas regras genéricas; na insubordinação há uma afronta às ordens diretas, dadas expressamente ao empregado. Como todas as demais faltas graves, é preciso que a indisciplina ou a subordinação quebrem a confiança entre o patrão e o empregado.

O art.482, “i” da CLT fala em justa causa por abandono de emprego. Abandono é o término de uma relação de emprego por iniciativa do empregado. A configuração da falta exige a satisfação de três pressupostos ao mesmo tempo: (1) uma obrigação de prestar serviço (o contrato de trabalho deve estar em vigor e não suspenso ou interrompido); (2) que o empregado se ausente continuamente ao trabalho; (3) que essa ausência seja prolongada.

Se houver um determinado número de faltas, retomada do trabalho e posterior ausência de outros tantos dias, esvai-se a continuidade das faltas e não há abandono.

O que importa para a configuração do abandono é a intenção de não mais voltar ao trabalho. Presume-se essa intenção pela ausência continuada e sem justificativa ao serviço, mas a lei não fixa esse tempo. Por analogia ao art.474 da CLT, os tribunais fixaram esse prazo em trinta dias. O art.474 trata da suspensão disciplinar do empregado, com desconto dos salários relativamente aos dias de suspensão. O artigo diz que a suspensão do empregado por mais de trinta dias consecutivos, com perda de salário, rescinde o contrato de trabalho por culpa da empresa. O raciocínio da doutrina para entender que a ausência do empregado ao trabalho por mais de trinta dias gera abandono de emprego é este: se o patrão não pode deixar o empregado mais de 30 dias sem salário, sob pena de romper-se o contrato de trabalho por sua (do patrão) culpa, então o empregado não pode deixar o patrão mais de 30 dias sem trabalho, sob pena de romper o contrato por falta grave de abandono.

Mas esse prazo, como dito, não está na lei. Esse abandono pode ser expresso ou tácito. No expresso, o empregado diz ou insinua sua intenção de não mais continuar no emprego; no tácito, simplesmente desaparece. Não é preciso esperar trinta dias para a configuração do abandono de emprego se o empregado deixar clara a sua intenção de não mais continuar no emprego.

O art.482, “j” da CLT tipifica como falta grave o ato lesivo da honra ou da boa fama, praticado em serviço, contra qualquer pessoa, ou ofensas físicas, nas mesmas condições. Ou seja: é justa causa para a rescisão do contrato de trabalho lesão à honra ou à boa fama e ofensa física praticada pelo empregado, em serviço, contra qualquer pessoa, ainda que colega ou simples visita.

A expressão “em serviço“ não quer dizer “no local de trabalho“. O empregado está em serviço no horário de almoço, mesmo que deixe a casa do patrão ou a empresa para almoçar, ou antes e depois do expediente, quando chega para trabalhar ou deixa o serviço de volta para casa.

Por óbvio, não se configura a falta se a ofensa física decorre de legítima defesa, própria ou de terceiros, ou se praticada contra colegas de trabalho fora do local de trabalho ou fora do serviço (num fim de semana, por exemplo, no futebol ou no churrasco entre colegas de bairro). A legítima defesa descaracteriza-se se é desproporcional à agressão. Não se exige repetição da falta para o rompimento do contrato de trabalho. Dá-se a quebra da confiança com a prática de um único ato de violência.

A ameaça de lesão não configura essa falta grave, mas pode configurar outra (mau procedimento). Já, a tentativa, sim. Veja a diferença: um empregado, indisposto com o outro, promete surrá-lo na saída do expediente. Essa ameaça, se não concretizada, não tipifica a falta. Mas, se esse mesmo empregado parte para a agressão física, mas é contido pelos demais, já há falta grave para a terminação do contrato. No primeiro caso houve simples ameaça; no segundo, tentativa.

Honra é a dignidade da pessoa que vive honestamente; boa fama é a estima social de que essa pessoa goza por se conduzir segundo essas regras. Tudo o que possa ferir um valor ou outro (gestos obscenos, apelidos, palavras, comentários jocosos, maldosos ou insinuantes) por qualquer forma (verbal, escrita, por meio de desenhos ou grafite) ou exponha alguém ao desprezo ou escárnio configura esse tipo de falta, pouco importando se a ofensa foi dirigida ao patrão, colegas de trabalho ou a alguém de sua família. O arrependimento do ofensor é irrelevante se o ofendido não o perdoar. Da mesma forma que a legítima defesa, não configura a lesão a retorsão, isto é, quem ofende revidando a uma agressão verbal. Neste caso, é preciso que a resposta do ofendido tenha conexão com a ofensa e dela seja contemporânea. Esse tipo de justa causa pode configurar-se num único ato. Tudo depende da gravidade.

O art.482, “l” da CLT classifica como falta grave a prática constante de jogos de azar. Jogo é uma convenção em que duas ou mais pessoas, com base na destreza, prática, sorte ou azar procuram, reciprocamente, um ganho sobre a outra. A CLT não se refere a qualquer jogo nem a um joguinho ocasional. Fala em prática constante de jogos de azar Prática constante é prática habitual, embora não precise ser diária. Jogos de azar são aqueles em que a habilidade do jogador ou a sua técnica não contam. O ganho depende, exclusivamente, da sorte do jogador. Ou do azar do oponente. O que o legislador trabalhista quis punir foi o vício do jogo, tão pernicioso quanto o de bebidas alcoólicas ou drogas. O vício do jogo é degradante e, quase sempre, arrasta o indivíduo à desonestidade, à miséria, à ruína moral e ao crime.

Vistas, de passagem, as características gerais das faltas graves descritas no art.482 da CLT, enfrentemos, agora, a questão de saber se um contrato de trabalho suspenso pode ser rescindido por justa causa.

Como vimos, a suspensão do contrato de trabalho apenas neutraliza duas das suas obrigações principais, isto é, a de prestar trabalho e a de pagar salário. Todas as demais obrigações, de parte a parte, especialmente as que contêm conteúdo ético, continuam valendo. Se determinada falta grave pode configurar-se inclusive fora do local de trabalho, com muito mais razão pode configurar-se com o contrato de trabalho interrompido ou suspenso por qualquer motivo, até mesmo em razão de auxílio-doença ou previdenciário, já que os deveres éticos subjacentes ao negócio jurídico continuam obrigando tanto o empregado quanto o patrão.

§3°

Conclusão

O TST reputa válida a rescisão do contrato de trabalho, por justa causa, mesmo durante a sua suspensão, ainda que por auxílio-acidentário (B-91) ou auxílio-doença (B-31), mas faz uma pequena diferenciação: se o empregado pratica a falta grave durante a suspensão do contrato de trabalho, a rescisão pode ser imediata e a suspensão do contrato pouco interfere na decisão da empresa. Mas, se o contrato de trabalho já está suspenso e a empresa apura a falta grave praticada pelo empregado antes do início da suspensão, a rescisão do contrato é válida e deve ser comunicada ao empregado imediatamente, mas os efeitos da decisão de rescindir o contrato de trabalho ficam postergados para o fim do período de licença.

Assim, terminado o período de suspensão do contrato de trabalho, o empregado deve retornar à empresa e ser dispensado por justa causa.

______________

1. BORTOLOTTO, Diritto del Lavoro.

2. CLT, art.483.

José Geraldo da Fonseca
Desembargador do Trabalho (aposentado) e advogado do escritório Veirano Advogados.

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