A lei de Proteção de Cultivares (variedades de plantas de diferentes espécies vegetais¹) – 9.456, de 25 de abril de 1997 -, prevê a regulamentação jurídica dos direitos de propriedade industrial dos obtentores² de variedades vegetais superiores (cultivares). Essa proteção ocorre por meio do Serviço Nacional de Proteção de Cultivares (SNPC), vinculado ao Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (MAPA), e, especificamente, mediante a concessão de certificado de proteção de cultivar.
Equivalente ao certificado de proteção de cultivar é o registro de carta-patente regulado pela lei 9.279/96 (lei de Propriedade Industrial). Esclarece Luiz Guilherme Loureiro³ que "o direito de patente é, basicamente, um direito de propriedade que tem como objeto o conhecimento adquirido pelo inventor (direito, este, que pode ser transferido). Assim, "sem a patente, ou seja, sem o título concedido pelo Estado, não nasce o direito à exploração exclusiva da invenção, o monopólio do uso, vale dizer, o direito de propriedade industrial”.
Assim, tanto o sistema de proteção de patentes quanto o de cultivares procuram assegurar o convívio harmônico entre os direitos de concorrência e de livre mercado de um lado, e, do outro, os de proteção da propriedade intelectual e incentivos à pesquisa e inovação.
Trazendo contornos próprios conforme a necessidade e especificidade da propriedade sobre cultivares, a lei 9.456/97 prevê, em seu artigo 2º, que a "a proteção dos direitos relativos à propriedade intelectual referente a cultivar se efetua mediante a concessão de Certificado de Proteção de Cultivar, considerado bem móvel para todos os efeitos legais e única forma de proteção de cultivares e de direito que poderá obstar a livre utilização de plantas ou de suas partes de reprodução ou de multiplicação vegetativa, no País”.
Em recente caso julgado pelo CADE (Conselho Administrativo de Defesa Econômica) - o primeiro desde o surgimento da lei de Proteção de Cultivares (1997) -, algumas empresas de Santa Catarina solicitaram a abertura de processo administrativo visando à obtenção de licença compulsória para a produção de cultivar, no caso, de sementes de cebola. Entre as alegações formuladas pelas empresas, estaria a limitação da concorrência, já que, no seu entender, apenas uma empresa (a requerida) havia sido escolhida para a produzir o cultivar desenvolvido pela respectiva obtentora, no caso uma empresa com atuação na pesquisa, inovação e desenvolvimento de cultivares. Porém, antes de entendermos a decisão do CADE, é preciso compreender qual a finalidade e o conceito de licença compulsória.
Como exceção ao monopólio para exploração de cultivares devidamente protegidas, a lei 9.456/97 trouxe em seu artigo 28 e seguintes a possibilidade de concessão de licença compulsória, conceituada pela própria lei como "o ato da autoridade competente que, a requerimento de legítimo interesse, autorizar a exploração de cultivar independentemente de autorização de seu titular, por prazo de três anos prorrogável por iguais períodos, sem exclusividade e mediante remuneração […]".
A principal finalidade desse procedimento é assegurar a disponibilidade das cultivares no mercado, "a preços razoáveis, quando a manutenção de fornecimento regular esteja sendo injustificadamente impedida pelo titular do direito de proteção sobre a cultivar" (artigo 28 da lei 9.456/97). Ou seja, a licença compulsória somente se justifica quando existir falha de mercado, quando houver abuso do poder econômico pela obtentora ou restrição injustificada à concorrência.
No caso concreto e singular julgado pelo CADE, entendeu-se que as empresas requerentes não cumpriram os requisitos antes mencionados e os impostos pela própria lei 9.456/97 para obter a licença compulsória e iniciar a produção de sementes de cebola (a exemplo de prova de que tentou obter a licença de forma voluntária junto ao titular da cultivar). A despeito de o CADE ter ressalvado que a presença de direitos de propriedade intelectual válidos e legitimamente obtidos restringe a concorrência estática por si, já que exclui terceiros da fruição do objeto desse direito, tal limitação seria legítima “tendo em vista os ganhos óbvios em termos de incentivos à inovação no desenvolvimento de novas cultivares”.
Com efeito, dada a particularidade da matéria em comento, podemos concluir que nem sempre um maior número de empresas licenciadas para a produção de algum cultivar contribuirá para a melhoria do mercado e da pesquisa. Além de se exigir capacidade técnica e estrutura específica das empresas eventualmente licenciadas pelas obtentoras - a exemplo da produção de sementes de cebola -, é necessário sopesar o risco de falha na qualidade dos cultivares quando existem mais empresas licenciadas (baixa na qualidade), o aumento do custo de fiscalização pelos órgãos públicos e pela própria obtentora e os incentivos que o sistema jurídico deve assegurar em favor da pesquisa e inovação.
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1. Cultivar, nos termos do inciso XV do art. 2º da lei 10.711/03, é "a variedade de qualquer gênero ou espécie vegetal superior que seja claramente distinguível de outras cultivares conhecidas, por margem mínima de descritores, por sua denominação própria, que seja homogênea ou estável quanto aos descritores atráves de gerações sucessivas e seja de espécie passível de uso pelo complexo agroflorestal, descrita em publicação especializada disponível e acessível ao público, bem como a linhagem componente de híbridos."
2. Segundo a lei. 10.711, de 5 de agosto de 2003 (lei das Sementes), obtentor "é a pessoa física ou jurídica que obtiver cultivar, nova cultivar ou cultivar essencialmente derivada" (art. 2º, inciso XXVIII).
3. LOUREIRO, Luiz Guilherme de Andrade Vieira. Biotecnologia e patente: as disposições da nova lei de propriedade industrial. Revista dos Tribunais, 739, item 3, São Paulo: Editora RT, 1997.