Até que a morte os separe ou que seja eterno enquanto dure? No final de 2020, as duas grandes fabricantes de smartphones, Apple e Samsung, causaram impacto no mercado brasileiro ao anunciar a venda de seus aparelhos de celular sem o carregador e os fones de ouvido. A principal justificativa: causar menos impacto ao meio ambiente.
O fato ensejou à primeira, uma ação na justiça por um consumidor, na Vara do Juizado Especial Cível e Criminal de Piracicaba (SP) e também uma multa na ordem de R$ 10 milhões pelo Procon-SP. Além disso, semana passada, a Senacon (Secretaria Nacional do Consumidor) fez uma proposta de TAC (termo de ajustamento de conduta) a ambas, com o intuito de mitigar o impacto da prática, em tese, abusiva.
Diante dos casos, a análise jurídica consumerista a ser feita é: a venda “descasada” está regulada pelo Código de Defesa do Consumidor? Muito embora a tese utilizada na ação judicial mencionada acima ter sido a de que a conduta do fornecedor de separar os itens force a venda casada, o que é vedado pela referida Lei, no art. 39, I, o que se observa, na prática, é a desassociação da venda de itens que antes eram vendidos juntos.
Segundo o doutrinador Fabrício Bolzan1, a venda casada é denominada pela doutrina e jurisprudência como a vinculação da venda de um produto ou serviço a outro, ou à contratação de mais de um serviço ou, ainda, à aquisição de um produto, desde que contrate certo serviço. Sequencialmente, o autor também discorre em sua obra que a venda de um conjunto de roupas ou de um pacote de viagens, por exemplo, não são abusivas, pois para ocorrer efetivamente a venda casada é necessário que os produtos ou serviços ofertados sejam usualmente vendidos separadamente, mas que de maneira inapropriada o fornecedor força a venda agrupada dos itens.
Desse modo, tem-se que os carregadores e os fones de ouvidos não eram usualmente vendidos separados, mas sim junto com o celular, assim como algumas marcas vendem conjuntos de moletom. Porém dada uma nova política comercial, as fabricantes optaram por ofertar os itens separadamente, assim como algumas varejistas também vendem a calça e o casaco do moletom separados. Nesse sentido, inclusive, o entendimento do Juiz Guilherme Lopes Alves Lamas ao referido Processo, sob 1019678-91.2020.8.26.0451, ao afirmar que não cabe à Justiça proibir ou não a fabricante de vendê-los separadamente: “pensar que eventual dirigismo estatal nesse sentido resguarde o interesse dos consumidores, já que, não havendo tabelamento de preços, caso se passe a obrigar a empresa a fazer a venda conjunta, por óbvio que tal será repassado ao preço dos produtos”.
Temos, na redação do art; 39, I, na seção IV, que trata das práticas abusivas no CDC, a vedação expressa da conduta da “venda casada”, com o uso, inclusive, do verbo “condicionar”, vejamos:
Art. 39. É vedado ao fornecedor de produtos ou serviços, dentre outras práticas abusivas:
I - condicionar o fornecimento de produto ou de serviço ao fornecimento de outro produto ou serviço, bem como, sem justa causa, a limites quantitativos;
(...)
Desse modo, importante lembrar do princípio da legalidade ao averiguar que a conduta contrária, ou seja, a venda “descasada” não está proibida pela Lei, o que a torna uma prática permitida. Note que a discussão proposta não é no sentido de analisar se sua aplicabilidade, no caso concreto, fere ou não outros princípios, como o da boa fé objetiva, com a máxima nemo potest venire contra fctum proprium, que veda o comportamento contraditório, mas de demonstrar que, ao não estar claramente tipificada no Codex Consumerista, emerge-se uma brecha legislativa significativa.
Muitos leitores devem se lembrar que em 2009, o McDonald’s firmou um TAC com o MPF para que os brinquedos que acompanham o McLanche Feliz fossem vendidos separadamente e é a prática que, desde então, vigora nesse mercado.
Se, nesse caso da varejista de alimentação, houve o entendimento da prática de venda casada e a possibilidade dessa desassociação, justamente para viabilizar a autonomia do consumidor na hora da compra entre o lanche e o brinquedo, porque, agora, a iniciativa das fabricantes de celulares de ofertarem os itens separadamente é tida como ilegal?
Hoje em dia, já é possível comprar calça social de um tamanho e blazer de outro. O mesmo vale para biquínis, lingeries e até música, quando se opta por adquirir uma única faixa ao invés do álbum completo. Talvez o erro das big techs foi na forma de comunicar a nova política comercial e também na escolha do argumento, que apesar de nobre e importante, não descortinou um caráter fulcral quando o assunto é contratos: a autonomia de vontade, sensibilizando o consumidor de que só cabe a ele a opção pelo o que quer comprar. Afinal, muitos foram feitos um para outro, mas nem todos ou nem tudo nessa vida são, de fato, inseparáveis.
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1 BOLZAN, Fabrício. Coordenação de Pedro Lenza. Direito do Consumidor Esquematizado. 5ª Edição. São Paulo. Saraiva, 2017, pag. 561.