A decisão prolatada no ano de 1954, em Brown v. Board of Education1, sem dúvida, é um marco na história constitucional norte-americana e mundial. Conforme enfatiza Cass Sunstein, “o direito constitucional costuma a definir-se pela reação a alguns casos grandiosos. E o caso definidor das últimas décadas foi Brown v. Board of Education, um exemplo de reorganização social, no interesse de uma minoria racial, levada a efeito pelo judiciário”2.
Com efeito, estava em vigor, desde 1896, a orientação firmada no caso Plessy v. Ferguson3, no sentido de que a cláusula da igualdade assegurava a negros e brancos, tão somente, igualdade no exercício de direitos civis e políticos. Nesse sentido, a teor da 14ª. Emenda à Constituição dos EUA de 1787, a lei deveria garantir a negros e brancos direitos iguais, tal como o direito de ter acesso a uma escola pública, mas não poderia exigir que compartilhassem o mesmo ambiente e nem impedia que fossem oferecidas acomodações em separado aos diferentes grupos raciais. Era a doutrina do “separate but equal” (separados, mas iguais). Na prática, vigorava nos Estados Unidos um verdadeiro regime de segregação racial, ou apartheid: escolas, bebedouros, restaurantes e acomodações eram distintas para negros e brancos.
É tão somente com o julgamento de Brown v. Board of Education4, em 1954, que tem início a fase considerada romântica do constitucionalismo estadunidense. Surgia ali uma nova linha jurisprudencial, segundo a qual caberia à maioria do povo, por seus representantes eleitos, a prerrogativa de definir as políticas econômicas e sociais a serem implementadas pela nação, enquanto à Suprema Corte reservava-se o papel de ator principal na proteção dos direitos fundamentais.
Foi em Brown v. Board of Education que a Suprema Corte dos EUA, sob a presidência do Chief Justice Earl Warren, baniu a segregação racial das escolas públicas americanas, revertendo precedente que se encontrava em vigor há mais de cinquenta anos, sob o argumento de que a doutrina do “separate but equal” (separados, mas iguais) violava o princípio da igualdade de todos perante a lei, consagrado na 14ª. Emenda. Na letra do voto condutor do Chief Justice Warren:
“Em cada um dos casos, menores da raça negra, por seus representantes legais, buscam remédio judicial para obter sua admissão em escolas públicas em bases não segregacionistas. Em cada instância, eles tiveram a matrícula negada em escolas frequentadas por crianças brancas com base em leis exigindo ou permitindo a segregação racial. Essa segregação alegadamente priva os demandantes da igualdade perante a lei, prevista na 14ª Emenda... Cabe concluirmos que no campo da educação pública a doutrina do “separados, mas iguais” não tem espaço. Em função disso, temos a opinião de que os demandantes e outros em situação similar estão sendo, por força da segregação que ora se contesta, privados da igualdade perante a lei, garantida pela 14ª Emenda”5.
Foi ainda nesse período, de expansão dos direitos fundamentais, que, em 1964, no caso Reynolds v. Sims6, a Suprema Corte extraiu da cláusula da igualdade de todos perante a lei, consagrada na 14ª Emenda, o princípio “one person, one vote” (“uma pessoa, um voto”)7, segundo o qual a delimitação dos distritos eleitorais deveria dar-se de forma a assegurar que todos os votos tivessem igual peso. Quer dizer: o número de representantes assegurados a cada distrito eleitoral, tanto no poder legislativo federal como no poder legislativo estadual, teria de ser proporcional ao tamanho de sua população. Não mais poderia a legislatura negar e nem, tampouco, diluir o direito ao sufrágio universal, em razão do local de residência do eleitor.
A controvérsia em Reynolds v. Sims versava sobre a constitucionalidade da divisão dos distritos eleitorais, no Estado do Alabama, baseada em censo realizado em 1900 e há muito superado. Entendeu o órgão de cúpula do judiciário estadunidense que a cláusula da igualdade impunha a revisão periódica do número de habitantes dos distritos eleitorais, de modo a assegurar, com a maior precisão possível, que o voto de cada cidadão tivesse peso idêntico, na escolha dos representantes eleitos pelo voto popular. Conforme asseverou o Chief Justice Earl Warren, em passagem de seu voto que ficou famosa:
“Legisladores representam o povo e não árvores ou acres. Legisladores são eleitos pelos eleitores e não por fazendas ou cidades, ou interesses econômicos. Enquanto o nosso for um sistema representativo de governo, e as nossas legislaturas forem instrumentos de governo eleitos diretamente e representarem diretamente o povo, o direito de eleger os nossos representantes de maneira livre e desimpedida continuará a ser uma pedra fundamental do nosso sistema político... Se um Estado puder estabelecer que os votos de seus cidadãos em uma parte do Estado têm duas vezes, ou cinco vezes, ou 10 vezes o peso dos votos dos cidadãos de outra parte do Estado, será difícil sustentar que o direito de votar daqueles que residem em áreas desfavorecidas não se encontra efetivamente diluído”8.
Alguns anos depois, em 1973, no caso Roe v. Wade9, a Suprema Corte, sob a presidência de Warren Burger, extraiu da Constituição o direito ao aborto, como corolário do direito da mulher à privacidade, contido na cláusula do devido processo legal substantivo, na decisão mais controversa da história recente do direito constitucional norte-americano10. Orientou-se a Suprema Corte dos EUA, conforme se vê do voto vencedor do Justice Harry Blackmun, no sentido de que o direito à privacidade confere à mulher a opção de interromper a gravidez, se esse for o seu desejo. A lei não pode obrigar a mulher a prosseguir na gravidez, contra a sua vontade e em prejuízo de sua saúde física e mental. Cabe a ela, e somente a ela, decidir se deseja suportar o ônus de carregar um filho em seu útero. A proibição ao aborto só é admissível quando o feto se torna viável e está apto a sobreviver fora do útero materno, a partir do sétimo mês.11
Isso não significa, no entanto, que não exista qualquer decisão da Suprema Corte, neste período, a lamentar. Em 1986, em Bowers v. Hardwick12, o órgão de cúpula do judiciário americano teve a oportunidade, pela primeira vez, de examinar a constitucionalidade de uma lei do Estado da Georgia que criminalizava a prática de atos libidinosos entre homossexuais. Michael Hardwick havia sido flagrado, em sua casa, fazendo sexo oral com outro homem, e fora processado criminalmente por isso. Em defesa, alegou que a referida lei seria incompatível com a Constituição, por violar o seu direito à privacidade e à liberdade de se relacionar com quem bem entendesse. A Suprema Corte, contudo, por uma apertadíssima maioria de cinco votos a quatro, rejeitou as alegações de Hardwick e confirmou a constitucionalidade do referido ato legislativo, sob o argumento de que não haveria na Constituição a previsão de um direito fundamental de engajar-se em relações homoafetivas.13
Ainda assim, apesar de alguns tropeços, é inegável que o ativismo judicial, nesse período, dirigiu-se preponderantemente à proteção e à construção de novos direitos fundamentais14. De fato, foi essa a teoria que prevaleceu no âmbito da Suprema Corte dos EUA, por cinco, quase seis décadas. A Suprema Corte, primeiro sob a presidência do Chief Justice Earl Warren e depois sob a batuta do Chief Justice Warren Burger, adotou uma postura nitidamente ativista, mas o fez, na maior parte das vezes, na defesa de direitos de minorias e dos alicerces do processo democrático. E assim foi até a nomeação de William Rehnquist para a Presidência da Suprema Corte dos EUA.
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1 Brown v. Board of Education, 347 U.S. 483 (1954).
2 SUNSTEIN, Cass R. Lochner’s legacy. In: Columbia Law Review nº 87, 1987, p. 873 (tradução livre). Para uma análise aprofundada da referida decisão, recomenda-se a leitura de BLACK Jr., Charles L. The Lawfulness of the Segregation Decisions. In: Yale Law Jornal nº 69, 1960, p. 421.
3 Neste caso, especificamente, uma lei do Estado de Louisiana, datada de 1890, obrigava as ferrovias a oferecer acomodações, em separado, para brancos e negros, em seus vagões. Homer Adolph Plessy, desafiando as leis do Estado de Louisiana, recusou-se a sair de um vagão destinado para brancos e veio a ser criminalmente processado por tal fato. Curiosamente, Plessy não era negro propriamente dito, mas caucasiano, numa proporção de sete oitavos. Ainda assim, a Suprema Corte entendeu que Plessy não poderia ter acesso às acomodações destinadas, exclusivamente, aos brancos e, principalmente, que o ato legislativo em referência era compatível com a 14ª. Emenda, com base na teoria do “separate but equal” (“separados, mas iguais”). Veja-se, a esse propósito: CHEMERINSKY, Erwin. Constitutional law: principles and policies, 3ª. ed., New York: Aspen Publishers, 2006, p. 702/703.
4 Brown v. Board of Education, 347 U.S. 483 (1954).
5 Idem (tradução livre).
6 Reynolds v. Sims, 377 U.S. 533 (1964).
7 Ervin Chemerinsky sustenta que, em verdade, o primeiro caso a enunciar o princípio “one person, one vote” foi Gray v. Sanders, em 1963, seguido de Wesberry v. Sanders, de 1964. CHEMERINSKY, op. cit., p. 882.
8 Reynolds v. Sims, 377 U.S. 533 (1964) (tradução livre).
9 Roe v. Wade, 410 U.S. 113 (1973).
10 Passados mais de 30 anos, ainda hoje se discute o acerto da decisão proferida em Roe v. Wade. É bandeira política do Partido Republicano o ataque ao referido julgado. Ativistas “pró-vida”, da mesma forma, exigem uma mudança na orientação dominante na Suprema Corte. E não são poucos os juristas de renome que se posicionam no sentido de que o direito ao aborto não encontra guarida na Constituição. É essa a opinião, dentre outros, de Robert Bork: “Do início da República até aquele dia, 22 de janeiro de 1973, a questão moral quanto a se o aborto deveria ser legal tinha sido deixada, inteiramente, para as legislaturas estaduais. A descoberta tarde de nossa história de que a questão em tela não era para ser decidida democraticamente, mas era uma questão de direito constitucional, era tão sem plausibilidade, que certamente mereceu uma explicação de cinqüenta e uma páginas. Infelizmente, em toda a opinião não há uma linha de explicação, nem uma frase que possa ser considerada como um argumento jurídico. Nem a Corte nos dezesseis anos a partir dali ofereceu a explicação que faltou em 1973. E é improvável que algum dia o faça, porque o direito ao aborto, independentemente do que a pessoa pense sobre isso, não se encontra na Constituição.” BORK, Robert H. The tempting of America: the political seduction of the law, New York: Touchstone, 1991, p. 112 (tradução livre). Em sentido diametralmente oposto, numa defesa vigorosa do direito constitucional ao aborto, vale conferir DWORKIN, Ronald. Unenumerated rights: whether and how Roe should be overruled. In: 59 University of Chicago Law Review, 1992, p. 381. Veja-se, ainda: DWORKIN, Ronald. Life's dominion: an argument about abortion, euthanasia, and individual freedom, New York: Alfred A. Knopf, 1993. Em 1992, no caso Planned Parenthood v. Casey, a Suprema Corte dos EUA ficou muito próxima de reverter o precedente contido em Roe v. Wade. Por uma apertada maioria de cinco votos a quatro, a mais alta corte dos EUA reafirmou o direito ao aborto. Veja-se: Planned Parenthood v. Casey, 505 U.S. 833 (1992).
11 Roe v. Wade, 410 U.S. 113 (1973).
12 Bowers v. Hardwick 478 U.S. 186 (1986).
13 Foi apenas em 2003, no caso Lawrence v. Texas, que a Suprema Corte dos Estados Unidos reverteu a decisão proferida em Bowers v. Hardwick, firmando a orientação de que os Estados norte-americanos não poderiam criminalizar prática de atos libidinosos entre pessoas do mesmo sexo. Em Lawrence v. Texas, prevaleceu o entendimento de que não poderia a lei criminalizar a sodomia entre pessoas do mesmo sexo, porque isso violaria os direitos à liberdade e à privacidade, ambos consagrados na Constituição. Vide Lawrence v. Texas, 539 U.S. 558 (2003).
14 KRAMER, Larry D. The People themselves: popular constitutionalism and judicial review, New York: Oxford University Press, 2004, p. 220.