A expressão “reserva do possível” ganhou significado pela ascensão do constitucionalismo social a partir da segunda metade do Século XX, quando as promessas de benefícios sociais foram alçadas ao status de Direitos Fundamentais Sociais.
Se é missão constitucional do Estado a efetivação da fruição das mais diversas categorias de Direitos Sociais (como educação, saúde, acesso à cultura, lazer etc.), deve-se questionar, obviamente, como o Ente Público fará frente a essas obrigações diante de uma realidade de escassez de recursos.
Pois bem, para melhor compreender a concepção de reserva do possível imagina-se ser interessante entender o que, a contrario sensu, seria considerado impossível.
Nesse aspecto, as impossibilidades podem ser divididas entre jurídica, técnica e econômica.
A impossibilidade jurídica, na verdade, é decorrente de uma decisão política anterior acerca da alocação específica de recursos no orçamento de um determinado Ente Federativo. Assim, seria juridicamente impossível ao Judiciário determinar a prestação pelo Estado quando não houver receita designada no orçamento para cobrir a obrigação financeira decorrente da garantia ao direito social requerido pelo indivíduo.
Por outro lado, a impossibilidade técnica está relacionada à incerteza acerca da qualidade ou da segurança do objeto do direito social ora demandado. Lopes (2010), em seu artigo denominado “Em torno da reserva do possível”, expõe o conceito de impossibilidade técnica a partir da exemplificação de uma demanda judicial que requeresse a distribuição geral de um medicamento em fase experimental que, apesar de existir, ainda não é produzido em escala industrial em virtude da ausência de certeza sobre os seus efeitos na população.
Por seu turno, a impossibilidade econômica é adequadamente aferida sob o prisma do princípio da igualdade. Explica-se: a despeito da arrecadação financeira total do Estado superar o custo da prestação requerida pelo indivíduo, ainda assim pode subsistir a impossibilidade econômica da concessão do direito social, pois a fruição da benesse no caso em concreto pode inviabilizar o usufruto do mesmo direito (ou até mesmo de outros direitos) pela coletividade.
Mas até que ponto o Estado pode defender-se, sob o argumento da reserva do possível, da sua obrigação constitucional de avanços na fruição de Direito Sociais?
A doutrina alemã pós-Segunda Guerra Mundial, com base no Princípio da Dignidade da Pessoa Humana, elaborou o conceito denominado de “mínimo existencial”, o qual reconheceu o direito fundamental à garantia das condições mínimas para uma existência digna. (SARLET, 2010. p. 15)
Contudo, de acordo com Heinrich Scholler (1999), a dignidade da pessoa humana somente estará assegurada quando “for possível uma existência que permita a plena fruição dos direitos fundamentais, de modo especial, quando seja possível o pleno desenvolvimento da personalidade.”
Assim, nesse momento, cabe uma distinção acerca dos desdobramentos do mínimo existencial em duas categorias diferentes, quais sejam: o “mínimo fisiológico”, relacionado à proteção das necessidades de natureza existencial básicas, e o “mínimo existencial sociocultural”, o qual objetiva assegurar ao indivíduo um nível razoável de inserção e participação na vida social.
Nesse contexto, é que o mínimo existencial se apresenta como o próprio núcleo dos Direitos Fundamentais Sociais, o qual deve ser blindado de qualquer restrição que seja capaz de reduzi-lo à mera garantia de existência, de sobrevivência do indivíduo.
Dessa forma, nem mesmo uma bem fundamentada argumentação baseada na “reserva do possível” é capaz de soterrar por completo a fruição de um determinado direito social, mas, por outro lado, deve ser sim instrumento para assegurar que despesas desproporcionais não sejam realizadas ao ponto de aniquilar o exercício de outro direito fundamental.
Mas como navegar nesse intervalo espacial localizado entre o mínimo existencial e a reserva do possível?
A resposta parece ser por meio da adoção do Princípio da Proporcionalidade como norte da atuação dos órgãos estatais, momento em que o mencionado princípio possuiria uma dupla dimensão de vedação: a da insuficiência e a do excesso. (SARLET, 2010. p. 32)
Para tanto, os responsáveis pela efetivação dos Direitos Fundamentais Sociais deverão observar critérios de adequação dos meios empregados, de necessidade da atuação estatal e de proporcionalidade em sentido estrito (onde ocorreria uma avaliação do custo-benefício da prestação do direito social).
Assim, com o intuito de representar graficamente a relação entre mínimo existencial, reserva do possível e o Princípio da Proporcionalidade na adequada prestação dos Direitos Fundamentais Sociais, vislumbrou-se uma analogia com o conceito matemático de intervalos abertos e fechados orientados positivamente em uma reta, ilustrada a seguir:
Pela imagem acima, é possível perceber que os Direitos Fundamentais Sociais possuem como seu núcleo de existência (ou seja, seu ponto de partida) o mínimo existencial de sua fruição, o qual foi representado pelo intervalo fechado que, na matemática, simboliza a ideia de inclusão, de pertencimento.
Deve-se acrescentar que os Direitos Sociais não se esgotam nesse mínimo existencial, pelo contrário, sua prestação deve, de acordo com a Constituição, ser maximizada, motivo pelo qual, a reta é positivamente orientada para direita.
Por outro lado, a fruição dos Direitos Sociais pode ser restringida em virtude das impossibilidades jurídica, técnica e econômica, as quais, como visto, constituem a reserva do possível. Contudo, deve-se destacar que a reserva do possível não integrará o núcleo dos Direitos Sociais e nem detém a capacidade de esgotar a dimensão desses direitos em abstrato, motivo pelo qual, possui correspondência com o intervalo aberto, o qual significa exclusão, não pertencimento.
Nesse diapasão, deve-se frisar que é o Princípio da Proporcionalidade o capaz de orientar a medida de fruição de um direito fundamental social em um determinado caso em concreto, ora se aproximando mais do mínimo existencial, ora se localizando em um ponto mais à direita da reta (evitando assim, excessos e insuficiências).
Por último, cabe analisar o emprego prático da temática exposta neste artigo na jurisprudência da Suprema Corte. Para tanto, é exemplar o trabalho metodológico desenvolvido por Wang (2008) em seu artigo denominado “Escassez de recursos, custos dos direitos e reserva do possível na jurisprudência do STF”, onde foram analisados os temas relacionados ao Direito à Saúde, ao Direito à Educação e ao pedido de intervenção federal pelo não pagamento de precatórios.
A pesquisa visava, entre outros objetivos, responder a seguinte pergunta: será que o Supremo Tribunal Federal (STF) avalia de maneira uniforme, independentemente da classe do direito subjetivo em jogo, os argumentos relacionados aos custos dos direitos e à reserva do possível ao conceder ou não provimento ao pedido?
A resposta, baseada em dados empíricos, é negativa.
Foi constatado que o STF decide de forma muito semelhante em demandas envolvendo Direito à Saúde e à Educação, momento em que as argumentações relacionadas à escassez de recursos, aos custos dos direitos e à reserva do possível normalmente sucumbem frente à aparente natureza absoluta dessas categorias de direitos sociais.
De fato, após a apreciação da ADPF 45 e, principalmente, do julgamento da STA 91, o Supremo Tribunal Federal parece estar relativizando esse caráter absoluto da prestação ao Direito à Saúde, que quase sempre está ligado ao pedido de fornecimento de medicamentos. Contudo, mesmo após o julgamento dos paradigmas citados, ainda não é objetivamente mensurável o peso que o custo dos direitos, a escassez de recursos e a reserva do possível desempenha no deferimento ou não do pedido.
No caso do Direito à Educação a situação é bastante semelhante, visto que o STF, sem sequer debater sobre os custos dos direitos, a escassez de recursos e a reserva do possível, sempre deferiu o pedido de direito a uma vaga em creche, ainda que no julgamento de casos que envolvessem controle abstrato de constitucionalidade a Corte Suprema tenha demonstrado maior preocupação com as consequências financeiras das decisões tomadas.
Em sentido diametralmente oposto encontra-se a jurisprudência do STF a respeito dos pedidos de intervenção federal em virtude do não pagamento dos precatórios, os quais restaram, em todos os casos analisados, indeferidos pela Corte Constitucional, curiosamente sob a fundamentação envolvendo os custos dos direitos, a escassez de recursos e a reserva do possível.
Dessa forma, é possível concluir que, na visão do STF, há uma hierarquia nos Direitos Fundamentais Sociais analisados, em que o Direito à Saúde e o Direito à Educação ocupam “uma prateleira superior” em relação ao pedido de intervenção federal pelo não pagamento de precatórios, independentemente da natureza alimentar da verba a ser recebida pelo cidadão.
Ante o exposto, o questionamento que se faz é até que ponto o efeito multiplicador de decisões que concedem a prestação de direitos sociais sem a avaliação dos custos envolvidos não prejudicará a fruição desses mesmos direitos de forma igualitária pela coletividade?
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LOPES, José Reinaldo Lima. Em torno da ‘reserva do possível’. In: SARLET, Ingo Wolfgang; TIMM, Luciano Benetti (Orgs.). Direitos fundamentais, orçamento e reserva do possível. 2. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2010, pp. 155-173.
SARLET, Ingo Wolfgang, FIGUEIREDO, Mariana Filchtiner. Reserva do possível, mínimo existencial e direito à saúde: algumas aproximações. In: SARLET, Ingo Wolfgang; TIMM, Luciano Benetti (Orgs.). Direitos fundamentais, orçamento e reserva do possível. 2. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2010, pp. 13-50.
SHOLLER, Heinrich. “O Princípio da Proporcionalidade no Direito Constitucional e Administrativo da Alemanha”. Revista Interesse Público, n. 2, 1999, pp. 93-107.
WANG, Daniel Wei L. Escassez de recursos, custos dos direitos e reserva do possível na jurisprudência do STF. Revista Direito GV, São Paulo, v. 4, n. 2, p. 539-568, jul./dez. 2008.