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Lei padre Júlio Lancellotti: A luta pelo conceito jurídico de arquitetura hostil

Tramita na Câmara dos Deputados projeto de lei que altera o Estatuto da Cidade para vedar o emprego de técnicas de arquitetura hostil em espaços livres de uso público.

23/4/2021

 

(Imagem: Arte Migalhas)

No dia 02 de fevereiro, o padre Júlio Lancellotti, pároco responsável pela Pastoral do Povo da Rua da Arquidiocese de São Paulo, compareceu ao Viaduto Dom Luciano Mendes de Almeida munido de uma marreta. Com ela, o homem de 72 anos passou a demolir pedras instaladas pela prefeitura abaixo da marquise. A finalidade da prefeitura com a intervenção introduzida na semana anterior não deixava margem a dúvidas: impedir a ocupação do local por pessoas em situação de rua. Nas entrevistas que concedeu no próprio local, o adjetivo hostil, utilizado pelo religioso para se referir à obra e à própria cidade de São Paulo, repercutiu além do esperado.¹

O Projeto de Lei padre Júlio Lancellotti

No dia 18 de fevereiro, foi apresentado ao Senado Federal o Projeto de lei 488/21, que altera o Estatuto da Cidade para vedar o emprego de técnicas de arquitetura hostil. Na sua justificação, a proposta menciona explicitamente o protesto simbólico do padre Júlio como inspiração.

Tratando-se de matéria de competência concorrente (art. 24, I c/c § 1º, CF), o projeto inclui no art. 2º do Estatuto da Cidade norma geral de observância obrigatória por todos os entes federativos:

“Art. 2º A política urbana tem por objetivo ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e da propriedade urbana, mediante as seguintes diretrizes gerais:

XX – Promoção de conforto, abrigo, descanso, bem-estar e acessibilidade na fruição dos espaços livres de uso público, de seu mobiliário e de suas interfaces com os espaços de uso privado, vedado o emprego de técnicas de arquitetura hostil, destinadas a afastar pessoas em situação de rua e outros segmentos da população.”

O projeto foi aprovado pelo Plenário do Senado no dia 31 de março, quando foi acolhida emenda para denominar a proposta de lei padre Júlio Lancellotti. Agora o PL segue para a Câmara dos Deputados.

Divergências no Senado Federal

As discussões na Casa giraram principalmente em torno do próprio conceito de arquitetura hostil e da sua função no ordenamento jurídico. O neologismo deu origem a reações que vão da negação de existência do fenômeno até o reconhecimento da necessidade da sua vedação legal, por se tratar de um desdobramento recente, mas identificável e específico, do que na literatura nacional costuma ser denominado arquitetura do medo.²

Instado pelo Conselho de Arquitetura e Urbanismo do Brasil (CAU/BR), o senador Álvaro Dias (PODEMOS/PR) apresentou emenda para substituir a expressão “emprego de técnicas de arquitetura hostil” por “emprego de materiais, estruturas, equipamentos e técnicas” com a seguinte justificativa:

“Seguindo pedido do Conselho de Arquitetura e Urbanismo sugerimos a retirada do termo arquitetura hostil. Ele pouco explica de efetivo e embora seja um conceito muito utilizado, sua consagração em um projeto de lei pode ser prejudicial. Não existe propriamente arquitetura hostil. A essência da arquitetura é a convivência e o acolhimento”.³

O entendimento está em consonância com o da presidente do CAU/BR, Nadia Somekh, que, em declaração ao jornal o Estado de São Paulo, sustentou ser contraditório em si o termo “arquitetura hostil”.    

“A essência da arquitetura é o acolhimento, então é incongruente falar em arquitetura hostil, foi um termo infeliz cunhado por um jornalista britânico e lamentavelmente adotado no Brasil sem uma visão crítica. O que há é desurbanidade, uma cidade hostil, desumana, como constatamos com as desigualdades crônicas agravadas pela pandemia da covid-19. O correto, a nosso ver, seria então usar o termo “intervenção hostil”, mais simples de ser assimilado e difundido pela sociedade”.4    

O CAU/BR não obteve sucesso em substituir a expressão, que seguiu no projeto enviado para a Câmara, onde o conselho agora irá concentrar seus esforços, segundo a presidente.

Emenda apresentada e posteriormente retirada pela senadora Rose de Freitas (MDB/ES) incluía também a vedação a “formas de arte pública atentatórias à moral e aos bons costumes”. Segundo a justificativa, apenas a “arte privada” goza da liberdade plena de expressão assegurada pelo art. 5º, IX, CF. A “arte pública”, por sua vez, “deve propiciar uma experiência agradável a todos os habitantes da cidade, inclusive aos segmentos mais religiosos, que não apreciam obras questionadoras da moral tradicional e dos bons costumes”.

Por consequência, a exposição pública de obras de arte caracterizadas por conotação erótica ou por caráter provocador – isto é, aquela que vise a “questionar valores tradicionais”, segundo a congressista – deveria ser incluída como manifestação de arquitetura hostil e proibida, por não se compatibilizar com “o perfil religioso de parte significativa da população brasileira”.5 Embora por meios diferentes e com finalidades distintas, a senadora e a presidente do CAU/BR convergem para a mesma conclusão: a arquitetura é inerentemente acolhedora e agradável.

A função do instituto no ordenamento jurídico brasileiro também causou perplexidade. A emenda do senador Álvaro Dias (PODEMOS/PR) também apontou que o conceito é “amplo e de vertente abstrata, tornando difícil estabelecer os limites entre o que seria uma técnica de arquitetura hostil e uma que não seja, sem a sua inserção em um contexto”. A inquietação foi compartilhada pelo senador Carlos Viana (PSD-MG), que se manifestou assim na sessão:

“O que nós não podemos como legisladores é criarmos situações em que nós vamos amarrar as mãos, o poder decisório dos gestores municipais. Nós não podemos retirar também das prefeituras a possibilidade de, em alguns momentos, usar sim daquilo que é necessário e aliado ao poder, que é a possibilidade de força. Isso é uma necessidade em alguns casos.”6

A proposta, no entanto, é adequada à sua função no direito positivo brasileiro. O direito urbanístico é matéria de competência concorrente (art. 24, I c/c § 1º, CF), caso no qual compete à União estabelecer apenas normas gerais que, por definição, devem ser observadas e regulamentadas pelos estados e municípios e são caracterizadas muitas vezes por conterem expressões que José Afonso da Silva denomina “conceitos éticos juridicizados”.7

Arquitetura hostil e conceitos correlatos

Diferentemente do que foi afirmado pela presidente da CAU/BR, o uso do termo arquitetura hostil, embora recente, é consagrado na literatura estrangeira e, no Brasil, já foi objeto de estudo específico apresentado em agosto de 2020 no Programa de Pós-Graduação em Planejamento Urbano da Universidade Federal do Paraná.8

A justificativa do PL 488/21 define como sinônimos os termos arquitetura hostil, arquitetura defensiva e desenho desconfortável (unpleasant design). Na literatura, esses conceitos são tomados ou como sinônimos9 ou como conceitos aproximados10. Eles integram um campo semântico mais abrangente do qual fazem parte também os termos antilugar, espaço interditório, arquitetura excludente, disciplinar, do medo, do pânico, da violência, entre outros.11 Em comum, todos têm uma conotação negativa.

Espaço defensível, por outro lado, é um conceito de conotação positiva que inspirou políticas públicas norte-americanas, a partir da década de 1970, que ficaram conhecidas como Crime Prevention Through Environmental Design (CPTED). Elas buscam a prevenção de crimes por meio do desenho urbano12 e sua eficácia é oficialmente reconhecida pelo U.S. Department of Housing and Urban Development.13 Desde então, elas foram implantadas em diversos países, inclusive no Brasil.

A regulamentação normativa por estados e municípios, a efetiva execução político-administrativa e a imposição jurisdicional da vedação à arquitetura hostil no Estatuto da Cidade vão depender da redução dessa complexidade a um conceito adequado e utilizável juridicamente. O que deve ser considerado lícito e ilícito? Como convencer a opinião pública e os membros da Câmara dos Deputados de que a proposta não é uma manifestação de legislação-álibi e sim uma norma geral necessária que, com a devida regulamentação normativa e correspondente execução, responde a um problema social específico e identificável?14

Contribuições para um conceito jurídico de arquitetura hostil 

Expostas as críticas ao projeto de lei no Senado e na imprensa e apresentada uma sumária revisão da literatura sobre o tema, são propostos, a título de conclusão, os contornos de um conceito de arquitetura hostil adequado ao direito positivo brasileiro.

Como demonstrado pelo evento que representou a causa imediata para a proposição do PL 488/21, o principal alvo da arquitetura hostil são as pessoas em situação de rua. Ela também costuma ser direcionada (i) a outros grupos vulnerabilizados, como por exemplo aqueles que não podem ou não querem se locomover de automóvel; (ii) a grupos que não são vulnerabilizados, mas que podem apresentar comportamento considerado incômodo, como jovens, praticantes de determinados esportes e usuários de algumas substâncias; (iii) a comportamentos que se queira desestimular ou impedir em determinado local, como sentar-se, dormir, abrigar-se, acessar e permanecer.

As intervenções se dão em espaços públicos, nas fronteiras entre espaços privados e espaços públicos e nas áreas comuns de espaços privados. A sua manifestação mais comum são alterações pontuais no mobiliário urbano (art. 2º, VII, da lei 10.098/2000), ou de qualquer superfície que possa exercer essa função. Para isso, são utilizados pinos e outros objetos metálicos, pedras, encostos de braço e grades.

Além de meramente exemplificativo, tem-se observado uma transformação no repertório de técnicas pelas quais a arquitetura hostil se manifesta. Na sua manifestação mais agressiva, a sua finalidade pode ser notada por qualquer pessoa. Em suas formas menos ostensivas, apenas pelo público-alvo, embora ela continue a impedir ou dificultar a fruição daquele espaço por qualquer pessoa. Dessa maneira, intervenções mais ambíguas e suaves têm sido privilegiadas, como planos inclinados, jatos de água, plantas e muros de vidro.

Não é pela forma que a arquitetura hostil deve ser identificada e sim por sua finalidade: restringir ou impedir o uso de determinado local. Devem ser incluídos no conceito, portanto, manifestações menos comuns, como (i) a omissão, pela ausência de banheiros, bebedouros ou superfícies para se sentar; e (ii) o emprego de modificações não apenas pontuais da paisagem, pelo emprego de jardinagem e desnivelamento do terreno. Ambas têm o fim de desestimular a permanência ou o acesso.

A característica que distingue a arquitetura hostil de outras manifestações de arquitetura do medo é que ela não tem como finalidade principal prevenir crimes e sim afastar determinadas pessoas ou comportamentos considerados indesejados. Entretanto, uma consequência curiosa é que ela acaba atingindo potencialmente qualquer pessoa, o que demonstra o acerto na escolha do termo hostil, por transmitir com mais precisão a agressividade do fenômeno do que arquitetura defensiva ou desenho desconfortável.15

A maneira como a arquitetura hostil atinge, potencial ou efetivamente, qualquer pessoa indica que não se trata apenas de uma questão urbanística. Restringir excessivamente a fruição de espaços de uso comum ou eliminar dele determinadas pessoas ou comportamentos, sem que a sua função principal seja prevenir crimes, afeta a própria dignidade humana, como reconhecido pelo parecer do senador Paulo Paim (PT/RS), relator do PL 488/21.

Acertadamente, o parecer incluiu os idosos no texto do art. 2º, XX, do Estatuto da Cidade que seguiu para a Câmara. Além disso, esclareceu a vinculação entre a vedação da arquitetura hostil e a promoção da acessibilidade das pessoas portadoras de deficiência ou com mobilidade reduzida, assegurada pela lei 10.098/2000 e pela Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, aprovada com o status de norma constitucional pelo procedimento do art. 5º, § 3º, da Constituição Federal.

____________

1. VINÍCIUS TAMAMOTO, 2021.

   CNN BRASIL, 2021.

2. FARIA, 2020, pg. 26.

3. CONGRESSO NACIONAL, 2021.

4. FAUSTO MACEDO, 2021.

5. CONGRESSO NACIONAL, 2021.

6. SENADO FEDERAL, 2021.  

7. SILVA, 2003, pg. 108.

8. Trata-se da dissertação Sem Descanso: arquitetura hostil e controle do espaço público no centro de Curitiba, apresentada em agosto de 2020 por Débora Raquel Faria.

9. FARIA, 2020, pgs. 32-35.

10. LICHT, 2020.

11. FARIA, 2020, pgs. 31- 35; ROSENBERGER, 2019.

12. FARIA, 2020, pgs. 31; 51-56

13. NEWMAN, 1996, pg. 4.

14. LUHMANN, 2016, pg. 49.

     NEVES, 1994, pgs. 37-40.

15. FARIA, 2020, pgs. 60-61.

____________

CNN BRASIL. Padre Julio quebra pedras sob viaduto em SP colocadas contra moradores de rua. 02 de fevereiro de 2021. Disponível aqui. Acesso em: 17 abr. 2021.

CONGRESSO NACIONAL. Projeto de Lei nº 488, de 2021. Altera a lei 10.257, de 10 de julho de 2001, – Estatuto da Cidade, para vedar o emprego de técnicas de “arquitetura hostil” em espaços livres de uso público. Brasília, DF, 2021. Disponível aqui. Acesso em: 20 abr. 2021.

FARIA, Débora Raquel. Sem descanso: arquitetura hostil e controle do espaço público no centro de Curitiba. Dissertação (Mestrado) - Curso de Programa de Pós-Graduação em Planejamento Urbano, Setor de Tecnologia, Universidade Federal do Paraná, Curitiba, 2020, pg. 26. Disponível aqui. Acesso em: 17 abr. 2021.

FAUSTO MACEDO. Estadão. Lei padre Júlio Lancellotti: ‘Não existe arquitetura hostil, mas sim desurbanidade, cidade hostil’, afirma presidente do Conselho de Arquitetura. 2021. Disponível aqui. Acesso em: 17 abr. 2021.

LICHT, Karl de Fine. “Hostile architecture” and its confederates: a conceptual framework for how we should perceive our cities and the objects in them. Canadian Journal of Urban Research, vol. 29, 2, p. 1-17, 02 out. 2020. 1. Disponível aquiAcesso em: 20 abr. 2021.

LUHMANN, Niklas. O direito da sociedade. São Paulo: Martins Fontes, 2016. Tradução Saulo Krieger.

NEVES, Marcelo. A constitucionalização simbólica. São Paulo: Acadêmica, 1994.

NEWMAN, Oscar. Creating defensible space. New Jersey: Center For Urban Policy Research Rutgers University, 1996. Disponível aqui. Acesso em: 20 abr. 2021.

ROSENBERGER, Robert. On hostile design: theoretical and empirical prospects. Urban Studies, vol. 57, 4, p. 883-893, 12 ago. 2019. Disponível aqui. Acesso em: 20 abr. 2021.

SENADO FEDERAL (Plenário). Projeto proíbe arquitetura hostil que afasta moradores de rua: sessão plenária de 31 de março de 2021. Disponível aqui. Acesso em: 20 abr. 2021.

SILVA, José Afonso da. Aplicabilidade das normas constitucionais. 6. ed. São Paulo: Malheiros, 2003.

VINÍCIUS TAMAMOTO. Veja São Paulo. Padre Júlio Lancellotti quebra pedras sob viaduto a marretadas. 02 de fevereiro de 2021. Disponível aqui. Acesso em: 17 abr. 2021.

Felipe Matheus Ferreira da Silva
Graduado em Direito pela Unb, especialista em Relações Internacionais pela Unb e em Direito Notarial e Registral pela PUC Minas. Oficial de chancelaria do Serviço Exterior Brasileiro.

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