Migalhas de Peso

A nova lei de licitações e o direito ambiental

Esta nova visão “ambientalista” dos agentes públicos vem a acompanhar uma visão global de preservação ambiental na contratação com o Poder Público.

22/4/2021

(Imagem: Arte Migalhas)

A nova lei das Licitações¹, sancionada pela Presidência da República no último dia 1º de abril substituirá, após dois anos de vacatio legis, dentre outras, a lei 8.666/93², que vigorou por quase trinta anos. Tal substituição trará alterações significativas no modo como os contratantes deverão observar a legislação ambiental, principalmente as questões relacionadas ao Licenciamento Ambiental. Em que pese a nova lei não ter ousado tanto nas questões ambientais é de se louvar as novidades trazidas. Observamos no novo texto um aumento de 650%³ do uso do termo “ambiental” em referência à lei 8.666/93.  

Esta nova visão “ambientalista” dos agentes públicos vem a acompanhar uma visão global de preservação ambiental na contratação com o Poder Público. Exemplo desta preocupação é a 274 Comunicação Interpretativa sobre o direito comunitário aplicável aos contratos públicos – COM (2001) editada pela Comissão Europeia, que no seu item 4 determina que “as entidades adjudicantes têm um vasto leque de possibilidades para a definição das cláusulas contratuais que tenham por objecto a protecção do ambiente.”.4

Fato interessante é que na União Europeia “qualquer fornecedor/parte contratante/prestador de serviços pode ser excluído da participação no contrato se: (c) tiver sido condenado por um delito relacionado com a sua conduta profissional numa sentença judicial transitada em julgado. A 247 Comunicação Interpretativa Da Comissão determina ainda uma interpretação no sentido de que “Quando a legislação qualificar a violação da legislação ambiental como um delito relativo à conduta profissional, as directivas dos contratos públicos permitem que a entidade adjudicante exclua um candidato da participação de acordo com o fundamento referido em (c), desde que essa empresa tenha sido condenada por esse delito e que a sentença tenha transitado em julgado.5. Ou seja, no âmbito da União Europeia é possível que um licitante seja excluído do processo de licitação se já condenado (com trânsito em Julgado) por crime ambiental. Somente este dispositivo legal, se incorporado na legislação brasileira, impediria que degradadores contumazes do meio ambiente contratasse com o poder público.

Apesar das várias novidades e devido à complexidade do tema, por hora, comentaremos apenas duas. Trata-se de dois novos casos de extinção do contrato previstos no inciso VI do caput do artigo 137 e inciso V do parágrafo 2º do mesmo artigo. Estes dispositivos são de suma importância tanto para os licitantes como para toda a sociedade, pois tornam possível a extinção do contrato e, consequentemente, a paralização de uma obra ou serviço que estejam atentando contra o Meio Ambiente. Vejamos os dispositivos legais:

Art. 137. Constituirão motivos para extinção do contrato, a qual deverá ser formalmente motivada nos autos do processo, assegurados o contraditório e a ampla defesa, as seguintes situações. ...

VI - atraso na obtenção da licença ambiental, ou impossibilidade de obtê-la, ou alteração substancial do anteprojeto que dela resultar, ainda que obtida no prazo previsto; ...

§ 2º O contratado terá direito à extinção do contrato nas seguintes hipóteses: ...

V - não liberação pela Administração, nos prazos contratuais, de área, local ou objeto, para execução de obra, serviço ou fornecimento, e de fontes de materiais naturais especificadas no projeto, inclusive devido a atraso ou descumprimento das obrigações atribuídas pelo contrato à Administração relacionadas a desapropriação, a desocupação de áreas públicas ou a licenciamento ambiental.

Observa-se já no inciso VI do caput do artigo 137 que o atraso na obtenção do licenciamento ambiental, ou a sua impossibilidade de obtenção, poderá acarretar a extinção do contrato. Este dispositivo diz respeito às obrigações ambientais do contratado e traz nova força à defesa ambiental impondo a extinção do contrato caso não sejam cumpridas as normativas ambientais referentes ao Licenciamento Ambiental.

Também o artigo 137 traz importante regramento para o Poder Público. O inciso V do §2º determina que o contratado terá direito à extinção do contrato devido a atraso ou descumprimento das obrigações atribuídas à Administração relacionadas ao licenciamento ambiental. Desta forma, caso as obrigações relacionadas ao Licenciamento Ambiental, que sejam atribuídas ao Poder Público, não forem cumpridas, terá o contratado (e a sociedade) direito a extinção do contrato.

Como vimos as licitações estarão condicionadas ao devido processo de Licenciamento Ambiental, que é um instrumento da Política Nacional de Meio Ambiente, instituído pela lei 6.938/816, em seu artigo 9º, inciso IV, e definido, dentre outros, pelo artigo 1º, inciso I, da Resolução do CONAMA 2377 de 19 de dezembro de 1997 in verbis

Art. 1º - Para efeito desta Resolução são adotadas as seguintes definições:

I - Licenciamento Ambiental: procedimento administrativo pelo qual o órgão ambiental competente licencia a localização, instalação, ampliação e a operação de empreendimentos e atividades utilizadoras de recursos ambientais, consideradas efetiva ou potencialmente poluidoras ou daquelas que, sob qualquer forma, possam causar degradação ambiental, considerando as disposições legais e regulamentares e as normas técnicas aplicáveis ao caso.

Esta nova vinculação da execução do contrato ao processo de Licenciamento Ambiental poderá trazer algumas complicações devido à morosidade com que os órgãos ambientais operam. Prevendo tal situação, e já mitigando o problema, a própria lei trouxe mais uma novidade. No § 6º do artigo 25 estabelece uma “prioridade de tramitação” junto aos órgãos ambientais. Vejamos o dispositivo legal:

§ 6º Os licenciamentos ambientais de obras e serviços de engenharia licitados e contratados nos termos desta lei terão prioridade de tramitação nos órgãos e entidades integrantes do Sistema Nacional do Meio Ambiente (Sisnama) e deverão ser orientados pelos princípios da celeridade, da cooperação, da economicidade e da eficiência.

Tal “prioridade” deverá ser obedecida por todos os órgãos ambientais, sejam federais, estaduais ou municipais e, talvez, diminua os pontos negativos e burocráticos que eventualmente possam surgir nas execuções dos objetos licitados.

Atualmente faltas relacionadas ao Licenciamento Ambiental não têm o poder, na maioria dos casos, de impedir ou extinguir o contrato de firmado com o Poder Público uma vez que tal possibilidade não está prevista na lei 8666/93. Nossos Tribunais, em que pese algumas decisões em contrário, têm entendido que “inexistindo na lei de Licitações exigência de comprovação de regularidade ambiental como requisito de habilitação de candidato em processo licitatório, uma vez que não prevista no rol dos artigos 27 e 30 da lei 8666/93, descabe a inabilitação de participantes pela sua não apresentação no certame.”.8

É fato que o TCU já decidiu pela legalidade da exigência do prévio Licenciamento Ambiental nos processos licitatórios como requisito para a habilitação9. Também temos outros dispositivos legais que, de uma forma ou de outra, estabelecem critérios ambientais nas licitações. Podemos citar como exemplo a lei Federal 12.187/09 – Política Nacional sobre Mudança do Clima10, que passou a prever, no inciso XII do seu artigo 6º, o estabelecimento de critérios de preferência nas licitações para as propostas que proporcionem maior economia de recursos naturais, redução da emissão de gases de efeito estufa e de resíduos.

Também a lei 12.462/1111, que institui o Regime Diferenciado de Contratações (RDC), em seu artigo 4º prevê que na fase de habilitação das licitações disciplinadas pelo RDC podem ser exigidos requisitos de sustentabilidade ambiental. Já no artigo 7º admite-se a possibilidade de solicitar certificação ambiental do produto ou processo de fabricação.

Todavia, infelizmente, os dispositivos legais que introduzem a proteção ambiental nos processos de contratação com o Poder Público, na sua maioria, são normas principiológicas, fato que leva tais práticas sustentáveis não serem aplicadas em nossos processos licitatórios, motivo pelo qual não são raras as vezes em que o objeto licitatório é executado gerando inúmeros danos ao Meio Ambiente.

Assim a novel legislação impõe, com acerto, um cuidado a mais quando da participação em licitações e quando da execução dos objetos licitados, um cuidado com o devido Licenciamento Ambiental. Procedimento complexo, multidisciplinar, que demanda profissionais especializados e experientes para sua correta conclusão e execução.

É de se observar ainda que em ambos os casos (extinção por culpa do contratado ou por culpa do contratante) poderão ser determinadas (em contrato ou judicialmente) indenizações das mais diversas, devendo, também por este motivo, todas as partes envolvidas no processo de licitação estarem atentas a estes novos dispositivos legais de proteção ambiental, que, ao fim, dão mais efetividade ao artigo 225 da Constituição Federal.

_________

1. BRASIL. lei 14.133/21, lei de Licitações e Contratos Administrativos. Disponível aqui.

2. BRASIL. lei 8.666/93. Regulamenta o art. 37, inciso XXI, da Constituição Federal, institui normas para licitações e contratos da Administração Pública e dá outras providências. Disponível aqui.

3. Victor Valente Silvestre: Nova lei de Licitações e o Licenciamento Ambiental: Disponível aqui.

4. COMISSÃO DAS COMUNIDADES EUROPEIS. Bruxelas, 4/7/01 COM(2001) 274, final. Disponível aqui.

5. COMISSÃO DAS COMUNIDADES EUROPEIS. Bruxelas, 4/7/01 COM(2001) 274, final. Disponível aqui.

6. BRASIL. lei 6938/81. Dispõe sobre a Política Nacional do Meio Ambiente, seus fins e mecanismos de formulação e aplicação, e dá outras providências. Disponível aqui.

7. CONAMA. Resolução 237/97. Disponível aqui.

8. BRASIL. Tribunal de Justiça/PA: REEXAME NECESSÁRIO EM MANDADO DE SEGURANÇA. LICITAÇÃO. EXIGÊNCIA DE LICENCIAMENTO DE OPERAÇÃO AMBIENTAL DE PARTICIPANTES COMO CONDIÇÃO DE HABILITAÇÃO. AUSÊNCIA DE PREVISÃO QUANTO À SUA OBRIGATORIEDADE NA LEI DE LICITAÇÕES 8.666/93. DIREITO LÍQUIDO E CERTO CONFIGURADO. SENTENÇA CONFIRMADA. À UNANIMIDADE. 1. Inexistindo na lei de Licitações exigência de comprovação de regularidade ambiental como requisito de habilitação de candidato em processo licitatório, uma vez que não prevista no rol dos artigos 27 e 30 da lei 8666/93, descabe a inabilitação de participantes pela sua não apresentação no certame. 2. Remessa necessária conhecida para confirmar a sentença. (TJ-PA - Remessa Necessária Cível: 00072758920148140051 BELÉM, Relator: ROBERTO GONCALVES DE MOURA, Data de Julgamento: 12/03/18, 1ª TURMA DE DIREITO PÚBLICO, Data de Publicação: 15/05/18)

9. Acórdão 6.047/15, 2ª Câmara. Rel. Min. Raimundo Carreiro.

10. BRASIL: lei Federal 12.187/09. Institui a Política Nacional sobre Mudança do Clima - PNMC e dá outras providências.  Disponível aqui.

11. BRASIL: lei 12.462/11. nstitui o Regime Diferenciado de Contratações Públicas - RDC; altera a lei 10.683, de 28 de maio de 2003, que dispõe sobre a organização da Presidência da República e dos Ministérios, a legislação da Agência Nacional de Aviação Civil (Anac) e a legislação da Empresa Brasileira de Infraestrutura Aeroportuária (Infraero); cria a Secretaria de Aviação Civil, cargos de Ministro de Estado, cargos em comissão e cargos de Controlador de Tráfego Aéreo; autoriza a contratação de controladores de tráfego aéreo temporários; altera as leis 11.182, de 27 de setembro de 2005, 5.862, de 12 de dezembro de 1972, 8.399, de 7 de janeiro de 1992, 11.526, de 4 de outubro de 2007, 11.458, de 19 de março de 2007, e 12.350, de 20 de dezembro de 2010, e a Medida Provisória 2.185-35, de 24 de agosto de 2001; e revoga dispositivos da lei 9.649, de 27 de maio de 1998. Disponível aqui.

Carlos Diego de Souza Lobo
Advogado. Professor Universitário. Mestre em Ciências Jurídico-Ambientais pela Universidade de Lisboa/USP. Especialista em Direito Ambiental. Consultor Jurídico.

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