Dentre os objetivos do instituto da falência está a satisfação dos credores por meio da liquidação dos ativos do devedor. Sua decretação permite que o patrimônio do falido seja integralmente arrecadado e alienado para o pagamento dos débitos. Para organizar os pagamentos e evitar que credores se sobreponham a outros que detenham créditos da mesma natureza, a lei 11.101/05 distribui os débitos em classes e grupos, organizando-os hierarquicamente numa ordem de prioridades e materializando, assim, o princípio par conditio creditorum.
O advento da lei 14.112/20 promoveu uma ampla reforma no texto da lei 11.101/05, inclusive quanto à ordem de classificações de créditos. A interpretação sistemática da Lei de Falências, de acordo com sua nova redação, permite a organização dos créditos em um concurso de preferências que impõe a seguinte ordem de satisfação:
1. Compensações de dívidas vencidas até a data da decretação da falência, obedecidos os requisitos legais, na forma do artigo 122 da lei 11.101/05. Nesse caso não se trata propriamente de pagamento, mas sim de modo especial de extinção das obrigações, que se verifica quando duas pessoas forem reciprocamente, credor e devedor uma da outra, regulado pelos arts. 368 a 380 do Código Civil. Para que se compensem, as dívidas devem ser vencidas até o dia da decretação da falência, incluindo-se as que se venceram em virtude do decreto falimentar, e devem satisfazer os requisitos da compensação legal, que podem ser resumidos em: a. liquidez do débito; b. exigibilidade do débito; c. fungibilidade das prestações; d. reciprocidade das obrigações1;
1.1. O instituto deve ser aplicado com cautela, haja vista se tratar de hipótese legalmente prevista de quebra da par conditio creditorum2, por isso o artigo 122, parágrafo único, em consonância com a proibição do artigo 380 do Código Civil3, prevê as hipóteses de não compensação das dívidas da falida: i. créditos transferidos após a decretação da falência, salvo em caso de sucessão por fusão, incorporação, cisão ou morte; ou ii. os créditos, ainda que vencidos anteriormente, transferidos quando já conhecido o estado de crise econômico-financeira do devedor ou cuja transferência se operou com fraude ou dolo;
2. Após, devem ser quitadas as quantias previstas no artigo 84, inciso I-A da lei falimentar. Nesse artigo estão relacionadas as despesas cujo pagamento antecipado seja indispensável à administração da falência, inclusive na hipótese de continuação provisória das atividades, na forma do artigo 150 da lei de regência. Este dispositivo visa a assegurar eficiência e celeridade ao feito, garantindo a maximização dos ativos. São despesas necessárias para evitar deterioração ou desvalorização do ativo, como a contratação de serviços de segurança, remoção de bens, assim como as despesas relativas à manutenção da atividade econômica nas falências continuadas (salários, fornecedores, tributos e etc.). Nesses casos, prescindem de autorização judicial, mas devem ser objeto de prestação de contas pela administração judicial4;
2.1. Nas falências sem ativos, em que não foram encontrados bens para serem arrecadados, ou quando arrecadados, se mostrarem insuficientes para o pagamento das despesas do processo, um ou mais credores poderão requerer o prosseguimento do feito, desde que paguem a quantia necessária para as despesas do processo e os honorários do administrador judicial. Nesses casos, esses pagamentos serão considerados despesas essenciais nos termos do artigo 84, I-A do estatuto falimentar, conforme artigo 114-A. § 1º;
2.2. Pagam-se também os créditos trabalhistas de natureza estritamente salarial vencidos nos 3 (três) meses anteriores à decretação da falência, até o limite de 5 (cinco) salários mínimos, na forma do artigo 151. Trata-se de norma de cunho social, que garante o mínimo para a dignidade dos trabalhadores. Anote-se que neste caso são pagas apenas as verbas estritamente salariais, não incluindo as verbas indenizatórias, ainda que decorrentes da relação de trabalho, tais como férias não gozadas, aviso prévio indenizado, verbas rescisórias. Incluem-se, todavia, horas extras e décimo terceiro salário. Aquilo que extrapolar o limite temporal e quantitativo é pago com os demais créditos trabalhistas5;
2.3. Todos os pagamentos que se enquadrem nas hipóteses acima deverão ser feitos pela administração judicial com os valores disponíveis em caixa (artigo 84, §1º da lei 11.101/05);
3. Ato contínuo, são pagos os créditos referentes aos valores efetivamente entregues ao devedor em recuperação judicial pelo financiador conforme o artigo 84, inciso I-B e artigo 69-B da lei 11.101/05. Trata-se do pagamento dos financiamentos concedidos ao empresário em recuperação - DIP Financing. A preferência recentemente concedida a esta obrigação nos pagamentos da falência tem a finalidade de estimular os agentes financeiros a fornecer recursos às recuperandas, atenuando os riscos do fomento;
4. Prosseguindo, ocorre o pagamento dos créditos em dinheiro objeto de restituição, estabelecidos no artigo 84, inciso I-C e artigo 86. A devolução destes valores do caixa evita que credores sejam satisfeitos com quantias que não integram o patrimônio do devedor. Essa restituição deverá ser feita quando apresentados documentos comprobatórios e mediante a devida autorização judicial, evitando assim fraudes ao concurso de credores;
5. Posteriormente serão pagas as remunerações devidas ao administrador judicial e aos seus auxiliares, reembolsos devidos a membros do Comitê de Credores e créditos derivados da legislação trabalhista ou decorrentes de acidentes de trabalho relativos a serviços prestados após a decretação da falência (art. 84, inciso I-D). Lembra-se que, na forma do artigo 24, 40% (quarenta por cento) do montante devido ao administrador judicial será reservado para pagamento após atendimento do previsto nos artigos 154 e 155 (prestação de contas e relatório final da administração);
6. Em seguida recebem os chamados credores fornecedores - artigo 84, inciso I-E e artigo 67, com o adimplemento das obrigações resultantes de atos jurídicos válidos praticados durante a recuperação judicial, ou após a decretação da falência;
7. Também como créditos extraconcursais serão pagas as quantias fornecidas à massa falida pelos credores - artigo 84, inciso II. Estes pagamentos são condicionados à apresentação de comprovação documental e a anuência do Administrador Judicial ou do Comitê de Credores;
8. Outro pagamento extraconcursal diz respeito às despesas com arrecadação, administração, realização do ativo, distribuição do seu produto e custas do processo de falência, na forma do artigo 84, inciso III. Ante a insuficiência de dinheiro em caixa para arcar com essas despesas, o administrador judicial poderá pagá-las com recursos próprios, e seu reembolso, mediante prestação de contas e condicionado à autorização judicial, será considerado extraconcursal;
9. Pagam-se, então, as custas judiciais relativas às ações e às execuções em que a massa falida tenha sido vencida, na forma do artigo 84, inciso IV;
10. Encerrando os pagamentos extraconcursais, são pagos os tributos relativos a fatos geradores ocorridos após a decretação da falência, respeitada a ordem estabelecida no artigo 83;
11. Inaugurando os pagamentos concursais, pagam-se os créditos derivados da legislação trabalhista, limitados a 150 (cento e cinquenta) salários-mínimos por credor, e aqueles decorrentes de acidentes de trabalho - artigo 83, inciso I. Os valores que superarem o limite de 150 (cento e cinquenta) salários-mínimos aqui previsto serão pagos como quirografários. Também serão pagos os honorários advocatícios6 (sucumbenciais ou contratuais), eis que são créditos equiparados ao trabalhista;
12. O segundo pagamento concursal é o dos créditos garantidos por direito real até o limite do valor do bem gravado (art. 83, inciso II). A apuração do valor do bem dado em garantia será de acordo com sua alienação, pelo administrador judicial, durante a liquidação dos ativos;
13. Após o pagamento dos créditos trabalhistas e dos credores com garantia real, deverá ser satisfeita a classe dos créditos tributários (art. 83, inciso III), independentemente da sua natureza e do tempo de constituição, excetuados os créditos extraconcursais e as multas tributárias;
13.1. O Código Tributário Nacional, no artigo 187 prevê subclasses para o pagamento dos créditos tributários. Em primeiro lugar se pagam os créditos da União, em seguida, se houver ativo, os pertencentes aos Estados e ao Distrito Federal e, por fim são pagos os Municípios;
14. O próximo pagamento é o dos créditos quirografários (artigo 83, inciso VI, alíneas ‘a’, ‘b’ e ‘c’), que têm uma definição residual, abarcando todos aqueles créditos que não recebem tratamento diferenciado pela lei. Também são quirografários os saldos dos créditos não cobertos pelo produto da alienação dos bens vinculados ao seu pagamento e saldos dos créditos derivados da legislação trabalhista que excederem o limite de 150 (cento e cinquenta) salários-mínimos. A reforma revogou os incisos IV e V do artigo 83. Portanto, todos aqueles créditos que antes seriam enquadrados como créditos detentores de privilégio especial ou geral, são agora quirografários7;
15. Após quitados os quirografários, pagam-se as multas contratuais e as penas pecuniárias por infração das leis penais ou administrativas, incluídas as multas tributárias, conforme artigo 83, inciso VII. Estes são também chamados de créditos subquirografários, decorrentes do descumprimento de obrigações legais ou contratuais. Aqui também se encontram as multas impostas por agências reguladoras e órgãos administrativos, como IBAMA, ANATEL, CADE, PROCON, muito comuns em falências8;
16. Em seguida são pagos os créditos subordinados, na forma do artigo 83, inciso VIII. São eles: i. aqueles previstos em lei ou em contrato, como por exemplo as debêntures sem garantia, previstas na Lei das S/As, §4º do artigo 58 da lei 6.404/769, e; ii. os créditos dos sócios e dos administradores sem vínculo empregatício cuja contratação não tenha observado as condições estritamente comutativas e as práticas de mercado;
17. Encerrando os pagamentos propriamente ditos, são pagos os juros vencidos após a decretação da falência (artigo 83, inciso IX e artigo 124). Excetuam-se os créditos de juros das debêntures e dos créditos com garantias reais, estes limitados ao produto da venda dos bens que os garantem, na forma do parágrafo único do artigo 124.
O saldo, se houver, será entregue aos falidos, na forma do artigo 153. Esta regra não prevê pagamento, mas sim restituição. Embora seja uma situação incomum, pode ocorrer que o devedor não seja insolvente e todas as obrigações sejam satisfeitas, deixando saldo remanescente após a liquidação. Nesta hipótese, o saldo de ativo que restar na massa falida após todos os pagamentos retornará à administração do devedor falido. Caso o falido seja uma sociedade empresária, a decretação de falência gera sua dissolução (artigos 1.087 e 1.044 do Código Civil), mas não a extinção da personalidade jurídica, que só ocorre com o cancelamento de seu registro na Junta Comercial. Portanto, o saldo remanescente nesses casos é entregue à pessoa jurídica, na pessoa de seu representante, e não aos sócios.
Por fim, anota-se que a nova ordem de pagamentos apenas se aplica às falências decretadas, inclusive as decorrentes de convolação, sob o pálio da lei nova, ou seja, após 23/1/21. Com o fim de garantir segurança jurídica àqueles afetados pelo regime falimentar, a lei 14.112/20 prevê regra de direito intertemporal em seu artigo 5º, §1º, inciso II, pelo qual a alteração na ordem de classificação de créditos na falência prevista nos artigos 83 e 84 da lei 11.101/05 não se aplica às falências anteriores à vigência da reforma.
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1 FARIAS, Cristiano Chaves de; ROSENVALD, Nelson. Curso de Direito Civil: obrigações – 11. Ed. Ver., ampl. e atual. – Salvador: Ed. JusPodivm, 2017. p. 525-527
2 REsp 1121199/SP, Rel. Ministro RAUL ARAÚJO, Rel. p/ Acórdão Ministro LUIS FELIPE SALOMÃO, QUARTA TURMA, julgado em 10/09/2013, REPDJe 12/02/2014, DJe 28/10/13
3 Art. 380. Não se admite a compensação em prejuízo de direito de terceiro. [...]
4 COSTA, Daniel Carnio. MELO, Alexandre Correa Nasser de. Comentários à Lei de Recuperação de Empresas e Falência. Curitiba: Ed. Juruá, 2021, p. 295
5 SACRAMONE, Marcelo Barbosa. Comentários à Lei de recuperação de empresas e falência – 2. ed. – São Paulo: Saraiva Educação, 2021. E-book. p. 1017-1018
7 COSTA, Daniel Carnio. MELO, Alexandre Correa Nasser de. Comentários à Lei de Recuperação de Empresas e Falência. Curitiba: Ed. Juruá, 2021, p. 219-220
8 SACRAMONE, Marcelo Barbosa. Comentários à Lei de recuperação de empresas e falência – 2. ed. – São Paulo: Saraiva Educação, 2021. E-book. p. 718-719
9 BEZERRA FILHO, Manoel Justino. Lei de recuperação de empresas e falência: Lei 11.101/2005: Comentada artigo por artigo. 14. ed – São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2019. p. 277