Migalhas de Peso

A obrigatoriedade de cobrança de IPTU pelo gestor público municipal sob pena de improbidade administrativa por omissão

A população, lado outro, afastada dos conceitos técnicos jurídicos tributários, além de não enxergar a importância do pagamento do tributo, não compreende que se trata de um ato-dever do gestor público de cobrar o crédito tributário, sob pena de responsabilização pessoal.

22/4/2021

É de comum senso a existência do princípio constitucional da legalidade, disposto no artigo 5º, II da Constituição Federal onde “Ninguém será obrigado a fazer algo ou deixar de fazer senão em virtude da lei”.

Os princípios constitucionais são pilares fundantes do Estado Democrático de Direito instituído pelo art. 1º da Carta Magna de 1988 e, por essa razão, são aplicáveis, por extensão, a todos os ramos jurídicos, inclusive ao Direito Tributário

No que tange às diretrizes e normas gerais dos tributos, assim como suas peculiaridades, pode-se afirmar que essas devem estar previstas na Constituição Federal ou em normas infraconstitucionais, como por exemplo, o Código Tributário Nacional.

Um dos tipos de tributos mais conhecidos é o Imposto sobre a Propriedade Predial e Territorial Urbano (IPTU). Sua previsão e regulamentação ocorrem, especialmente, por meio do art. 156, inciso I da Constituição Federal, bem como pelos arts. 32 a 34 do Código Tributário Nacional. In verbis:

Constituição Federal

Art. 156. Compete aos Municípios instituir impostos sobre:

I - propriedade predial e territorial urbana;

Código Tributário Nacional

Art. 32. O imposto, de competência dos Municípios, sobre a propriedade predial e territorial urbana tem como fato gerador a propriedade, o domínio útil ou a posse de bem imóvel por natureza ou por acessão física, como definido na lei civil, localizado na zona urbana do Município.

§ 1º Para os efeitos deste imposto, entende-se como zona urbana a definida em lei municipal; observado o requisito mínimo da existência de melhoramentos indicados em pelo menos 2 (dois) dos incisos seguintes, construídos ou mantidos pelo Poder Público:

I - meio-fio ou calçamento, com canalização de águas pluviais;

II - abastecimento de água;

III - sistema de esgotos sanitários;

IV - rede de iluminação pública, com ou sem posteamento para distribuição domiciliar;

V - escola primária ou posto de saúde a uma distância máxima de 3 (três) quilômetros do imóvel considerado.

§ 2º A lei municipal pode considerar urbanas as áreas urbanizáveis, ou de expansão urbana, constantes de loteamentos aprovados pelos órgãos competentes, destinados à habitação, à indústria ou ao comércio, mesmo que localizados fora das zonas definidas nos termos do parágrafo anterior.

Art. 33. A base do cálculo do imposto é o valor venal do imóvel.

Parágrafo único. Na determinação da base de cálculo, não se considera o valor dos bens móveis mantidos, em caráter permanente ou temporário, no imóvel, para efeito de sua utilização, exploração, aformoseamento ou comodidade.

Art. 34. Contribuinte do imposto é o proprietário do imóvel, o titular do seu domínio útil, ou o seu possuidor a qualquer título.

A partir da análise do conjunto normativo que regulamenta o IPTU, consubstanciado com a definição dos termos legais relativos à propriedade oriundos da legislação civil, pode-se afirmar que o fato gerador que o provoca é a propriedade, o domínio útil ou a posse de imóvel por natureza ou por acessão física que esteja localizado em zona urbana a ser definida por legislação municipal.

Para que se efetive a legitimidade da cobrança, deve ser observado, também, o requisito mínimo da existência de, pelo menos, dois melhoramentos construídos ou mantidos pelo Poder Público, dentre os quais podem ser: meio-fio ou calçamento, com canalização das águas pluviais; abastecimento de água; sistema de esgotos sanitários; rede de iluminação pública, com ou sem posteamento para distribuição domiciliar; escola primária ou posto de saúde a uma distância máxima de três quilômetros do imóvel considerado.

O lançamento do IPTU ocorre de ofício, nos termos do art. 142 do CTN, ou seja, o surgimento da obrigação de pagar independe de participação do contribuinte. Nesse tipo de lançamento, a partir de informações prévias, a autoridade competente – em se tratando do IPTU, o Município – já previamente fornecida com as informações a respeito do contribuinte, identifica o fato gerador, calcula o tributo e exige o pagamento, o que, nesse caso, ocorre usualmente por meio de carnês.

Pode-se considerar a definição de lançamento tributário como o procedimento que formaliza a ocorrência do fato gerador, determinando todos os elementos da obrigação tributária e constituindo o crédito tributário, concedendo-lhe liquidez para que seja realizada a cobrança. O professor Paulo de Barros Carvalho1 define esse conceito da seguinte forma:

Lançamento tributário é ato jurídico administrativo, da categoria dos simples, constitutivos e vinculados, mediante o qual se insere na ordem jurídica brasileira uma norma individual e concreta, que tem como antecedente o fato jurídico-tributário e, como consequente, a formalização do vínculo obrigacional, pela individualização dos sujeitos ativo e passivo, a determinação do objeto da prestação, formado pela base de cálculo e correspondente alíquota, bem como pelo estabelecimento dos termos espaço-temporais em que o crédito há de ser exigido.

 O cálculo do valor do tributo a ser recolhido, no caso do IPTU, será realizado a partir da aplicação de uma alíquota – definida por lei municipal, respeitados os limites estabelecidos constitucionalmente e em legislação complementar – no valor venal do imóvel, ou seja, o preço da propriedade considerando o valor de mercado imobiliário em condições normais, sem incluir variantes, tais como crises econômicas.

É importante ressaltar que o IPTU é um tributo progressivo, o que significa dizer que sua alíquota, ou seja, o percentual a ser aplicado no valor do imóvel para imputação da cobrança, deve levar em consideração a capacidade contributiva. Dessa forma, o proprietário de um imóvel mais conservado e em região mais nobre pagará um montante maior de tributo, ao passo que o proprietário de um imóvel menos conservado e em uma região de menor valorização, pagará um montante menor de tributo.

Como se percebe, o responsável pela cobrança do IPTU é o Município, que, por sua vez, é um ente federativo representado pelo gestor público municipal, qual seja, o prefeito. Em outras palavras, a legitimidade e competência para cobrança desse tributo é atribuída ao Poder Executivo Municipal, à prefeitura de cada Município e vinculada pessoalmente ao seu representante, o prefeito, que é o chefe do executivo.

Com efeito, considerando se tratar o Prefeito um agente político eleito em eleição majoritária pelos munícipes, o seu dever legal de cobrar entra em conflito, em não raras oportunidades, com os interesses políticos, já que os munícipes inadimplentes continuam eleitores.

A população, lado outro, afastada dos conceitos técnicos jurídicos tributários, além de não enxergar a importância do pagamento do tributo, não compreende que se trata de um ato-dever do gestor público de cobrar o crédito tributário, sob pena de responsabilização pessoal.

A não realização da cobrança de qualquer tributo pode ensejar ajuizamento de Ação Civil Pública em face do gestor público, nos termos da Lei de Improbidade Administrativa (Lei Federal 8.429/92 – LIA 92), fundamentada sob o argumento de improbidade administrativa por omissão. Vejamos:

Art. 10. Constitui ato de improbidade administrativa que causa lesão ao erário qualquer ação ou omissão, dolosa ou culposa, que enseje perda patrimonial, desvio, apropriação, malbaratamento ou dilapidação dos bens ou haveres das entidades referidas no art. 1º desta lei, e notadamente:

...(omissis)...

X - agir negligentemente na arrecadação de tributo ou renda, bem como no que diz respeito à conservação do patrimônio público;

Art. 11 – Constitui ato de improbidade administrativa que atenta contra os princípios da administração pública qualquer ação ou omissão que viole os deveres de honestidade, imparcialidade, legalidade, e lealdade às instituições, e notadamente.

...(omissis)....

II – retardar ou deixar de praticar, indevidamente, ato de ofício;

Conforme explicitado, o conceito de lançamento tributário pode ser depreendido do artigo 142, do Código Tributário Nacional, que assim dispõe:

Art. 142. Compete privativamente à autoridade administrativa constituir o crédito tributário pelo lançamento, assim entendido o procedimento administrativo tendente a verificar a ocorrência do fato gerador da obrigação correspondente, determinar a matéria tributável, calcular o montante do tributo devido, identificar o sujeito passivo e, sendo caso, propor a aplicação da penalidade cabível.

Parágrafo único. A atividade administrativa de lançamento é vinculada e obrigatória, sob pena de responsabilidade funcional.

O lançamento do crédito tributário provoca a constituição da Certidão de Dívida Ativa, que é um título executivo com presunção de certeza e liquidez e que pode e deve ser executado de imediato pela autoridade fiscal.

Dessa forma, resta evidente que a atividade do lançamento tributário pode ser configurada como ato de ofício, que quando não praticado pode desencadear  responsabilização do gestor público.

Além da clareza legislativa, a jurisprudência também não deixa dúvidas quanto ao tema. É o que se pode perceber dos julgados dos egrégios Tribunais de Justiça de Minas Gerais, Mato Grosso, São Paulo e Goiás, nessa sequência:

APELAÇÃO - AÇÃO DE IMPROBIDADE ADMINISTRATIVA - PRELIMINAR - ILEGITIMIDADE PASSIVA - REJEIÇÃO - PREFEITO - OMISSÃO QUANTO AO AJUIZAMENTO DE EXECUÇÕES FISCAIS - COMPROVADA COBRANÇA ADMINISTRATIVA DOS TRIBUTOS - ART. 10, X, DA LEI 8.429/92 - ELEMENTO SUBJETIVO DA CONDUTA - HIPÓTESE NÃO DEMONSTRADA - INOCORRÊNCIA DE ATO ÍMPROBO - SENTENÇA REFORMADA - RECURSO PROVIDO. 1. O Prefeito Municipal é parte legítima para figurar no polo passivo da ação de improbidade, nos termos do art. 2º, da lei 8.429/92. 2. Comprovada a cobrança administrativa dos débitos dos contribuintes municipais, não há falar-se em negligência na arrecadação de tributos (art. 10, X, da lei 8.429/92). 3. A Lei de Improbidade Administrativa não admite a imputação de responsabilidade objetiva, sendo imprescindível a demonstração do elemento subjetivo da conduta do agente público para a aplicação das sanções previstas no art. 12. Precedentes. 4. A falta de comprovação de dolo ou má-fé da conduta do Prefeito obsta a condenação por ato ímprobo. 5. Sentença reformada. 6. Recurso provido.

(TJ-MG - AC: 10319060259995001 Itabirito, Relator: Raimundo Messias Júnior, Data de Julgamento: 02/02/2021, Câmaras Cíveis / 2ª CÂMARA CÍVEL, Data de Publicação: 10/2/21)

ADMINISTRATIVO - IMPROBIDADE ADMINISTRATIVA - OMISSÃO DO CHEFE DO EXECUTIVO MUNICIPAL - ARRECADAÇÃO DE TRIBUTOS MUNICIPAIS – IMPOSTO SOBRE SERVIÇOS – AUSÊNCIA DE RETENÇÃO – ARRECADAÇÃO FRUSTRADA – EMPRESA CONTRATADA PELA ADMINISTRAÇÃO – NEGLIGÊNCIA – CULPA GRAVE - ATO DE IMPROBIDADE CARACTERIZADO – LEI 8.429/92, ARTS. 10, X – SANÇÕES ADEQUADAS – RECURSO DESPROVIDO. 1. A prática de ação ou omissão que ocasiona prejuízo ao erário (art. 10), demonstrada a culpa grave, é suficiente, quando ocorrentes, para a caracterização da improbidade. 2. O Apelante não praticou qualquer ato administrativo dos que lhe competia com o intuito claro e deliberado de cumprir com rigor a sua função como Chefe do Executivo Municipal, que tem papel ativo em relação às obrigações tributárias das empresas que contratam com a Administração, exigindo o fiel cumprimento das obrigações fiscais por parte da contratada. 3. Para aplicar as sanções do artigo 12 da lei 8.429/92, cabe ao julgador escolher, fundamentadamente, as sanções que mais se amoldam à infração, tendo em vista os critérios da razoabilidade e proporcionalidade. 4. “A sanção de perda da função pública visa a extirpar da Administração Pública aquele que exibiu inidoneidade (ou inabilitação) moral e desvio ético para o exercício da função pública, abrangendo qualquer atividade que o agente esteja exercendo ao tempo da condenação irrecorrível.” (REsp 1297021/PR, Rel. Ministra ELIANA CALMON, SEGUNDA TURMA, julgado em 12/11/13, DJe 20/11/13) 5. Recurso desprovido.

(TJ-MT - APL: 00001132120128110011 MT, Relator: MARIA EROTIDES KNEIP, Data de Julgamento: 30/07/2018, PRIMEIRA CÂMARA DE DIREITO PÚBLICO E COLETIVO, Data de Publicação: 15/8/18)

RECURSO DE APELAÇÃO – AÇÃO CIVIL PÚBLICA – DIREITO ADMINISTRATIVO E CONSTITUCIONAL – ATO DE IMPROBIDADE ADMINISTRATIVA – OMISSÃO NA ARRECADAÇÃO TRIBUTÁRIA – VIOLAÇÃO AOS PRINCÍPIOS DA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA – PREJUÍZO AO ERÁRIO PÚBLICO – POSSIBILIDADE. 1. A conduta omissiva do agente político, lesiva ao Erário Publico, quanto à arrecadação tributária, ofende os princípios da moralidade e legalidade. 2. No caso concreto, a inércia verificada na cobrança de créditos tributários, relacionados com o IPTU, alcançados pela prescrição, caracteriza ato de improbidade administrativa, nos termos do artigo 10, X, da Lei Federal 8.492/92. 3. Precedentes da jurisprudência deste E. TJSP. 4. Ação civil pública, julgada procedente. 5. Sentença, ratificada. 6. Recurso de apelação, apresentado pela parte ré, desprovido.

(TJ-SP - Acórdão n. 10678552 | 0007852-68.2005.8.26.0271. Rel. Relator(a): Francisco Bianco. Julgado em 31/7/17. Publicado em 10/8/17.)

AGRAVO REGIMENTAL EM APELAÇÃO CÍVEL. AÇÃO CIVIL PÚBLICA. LEI DE IMPROBIDADE ADMINISTRATIVA. COBRANÇA DE IPTU. NÃO EFETUADA. IMPROBIDADE. CONFIGURADA. PRINCÍPIOS DA RAZOABILIDADE E PROPORCIONALIDADE. PONDERAÇÃO NA APLICAÇÃO DA PENA. AUSENTE FATO OU ARGUMENTO NOVO. O agravo regimental deve ser improvido quando não apresentado fato ou motivo novo convincente que justifique a reforma da decisão recorrida, notadamente quando demonstrada a irregularidade do ex-Prefeito, que deixa de arrecadar os impostos municipais de IPTU nos anos de 2002 e 2004, impõe-se o dever de ressarcir o erário, com fulcro no artigo 10, da Lei de Improbidade Administrativa. AGRAVO REGIMENTAL CONHECIDO E DESPROVIDO.

(TJ-GO - 12/05/2015 | 34434-50.2013.8.09.0093. Rel. DES. WALTER CARLOS LEMES. Julgado em 12/05/2015. Publicado em 20/5/15.)

Para além do dever de cobrar os tributos, inclusive por meio de execuções fiscais, os Municípios detêm a obrigação de serem, nessas cobranças, os mais céleres, eficientes e eficazes possíveis, já que o tributo constitui a Receita do Município e, portanto, são recursos que devem ser empregados em prol da qualidade de vida da municipalidade.

O orçamento estatal, ou seja, o orçamento que compreende todas as receitas arrecadadas pelo ente federativo competente, no caso dos Municípios, é integrado, em grande parcela, pelo recolhimento a título de IPTU, sendo o montante arrecadado de fundamental importância para manutenção das despesas essenciais como saúde, segurança e educação.

Nessa seara conceitual, os professores Marciano Seabra de Godoi, Luciano Ferraz e Werther Botelho Spagnol2 destacam, com clareza, que “a ideia de orçamento estatal não se desloca, no essencial, do orçamento de qualquer particular. Trata-se de previsão de receitas e despesas de determinado sujeito para certo período de tempo”.

Não basta, nessa ordem de ideias, cumprir o dever legal do lançamento do crédito tributário e o ajuizamento da respectiva execução fiscal. É preciso que o Município empreenda todos os esforços técnicos, tecnológicos e intelectuais para que esta recuperação do crédito seja célere, afinal, a qualidade de vida dos municípios depende, boa parte, da existência de receita a ser empregada pelo Município.

___________________

1 CARVALHO, Paulo de Barros. Curso de direito tributário. 30 ed. São Paulo. Saraiva Educação, 2019

2 FERRAZ, Luciano; GODOI, Marciano Seabra de; SPAGNOL, Werther Botelho. Curso de Direito Financeiro e Tributário. 2ª ed. Belo Horizonte. Fórum, 2017

___________________

FERRAGUT, Maria Rita. Imposto sobre a propriedade predial e territorial urbana. Enciclopédia jurídica da PUC-SP. Celso Fernandes Campilongo, Alvaro de Azevedo Gonzaga e André Luiz Freire (coords.). Tomo: Direito Tributário. Paulo de Barros Carvalho, Maria Leonor Leite Vieira, Robson Maia Lins (coord. de tomo). 1. ed. São Paulo: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, 2017. Disponível clicando aqu.

CARVALHO, Paulo de Barros. Curso de direito tributário. 30 ed. São Paulo. Saraiva Educação, 2019.

FERRAZ, Luciano; GODOI, Marciano Seabra de; SPAGNOL, Werther Botelho. Curso de Direito Financeiro e Tributário. 2ª ed. Belo Horizonte. Fórum, 2017.

 

Vinicius Barros Rezende
Advogado. Sócio do escritório Ferreira e Chagas Advogados.

Barbara Shirley Alves Maia
Bacharel em Direito pela PUC/MG.

Veja mais no portal
cadastre-se, comente, saiba mais

Artigos Mais Lidos

Decisão importante do TST sobre a responsabilidade de sócios em S.A. de capital fechado

20/12/2024

Planejamento sucessório e holding patrimonial: Cláusulas restritivas societárias

20/12/2024

As perspectivas para o agronegócio brasileiro em 2025

20/12/2024

A sua empresa monitora todos os gatilhos e lança as informações dos processos trabalhistas no eSocial?

20/12/2024

O futuro dos contratos: A tecnologia blockchain e o potencial dos smart contracts no Brasil

20/12/2024