A Comissão Parlamentar de Inquérito do Senado Federal relativa ao tema da pandemia/covid -19 está para ser implantada. Avultam questões acerca da abrangência dos seus poderes investigativos no que se refere às instâncias Estadual e Municipal.
Na própria imprensa foram noticiados, a título de esclarecimentos que uma CPI federal não teria poder (entenda-se: competência) para investigar Governadores e Prefeitos, mas apenas a destinação das verbas federais repassadas para os entes públicos federativos com o intuito específico de combate à Pandemia. No entanto, a questão ainda permanece nebulosa, uma vez que dizer que se pode investigar os repasses, mas não as autoridades de outras instâncias federativas parece não definir corretamente quais as margens deverão conter os poderes da CPI neste seu intuito investigativo.
A doutrina sói ensinar que é princípio implícito – ou imanente – o de que as CPIs apenas podem se ocupar daquilo que esteja inserido no âmbito das atribuições possíveis do Legislativo federal, estadual, distrital ou municipal, conforme o caso. Assim sendo, se determinada matéria é da competência dos Estados ou dos Municípios, não caberá às Casas do Congresso Nacional criarem CPIs para sua apuração, o mesmo se passando no âmbito das Assembleias Legislativas e Câmaras de Vereadores, que não podem criar CPIs para tratar de temas de competência federal¹. Aliás, longe de ser um posicionamento isolado, vez que são encontradiças assertivas em semelhante sentido: o fato ou fatos investigados também devem limitar-se ao âmbito de atuação do Legislativo.² No mesmo sentido se assevera que pelo princípio fundamental da organização do Estado, qual seja, o princípio federativo, que define e assegura a autonomia dos Estados-membros, do Distrito Federal e dos Municípios, ao lado da União, na moldura de nossa organização político-administrativa ficaria evidente que uma casa legislativa federal não poderá investigar fatos de competência operatória, por exemplo, da Assembleia Legislativa do Ceará³.
Gilmar Ferreira Mendes tem escólio no mesmíssimo sentido:
Ainda no que tange ao objeto das Comissões Parlamentares de Inquérito, não se controverte que tudo quanto se inclua no domínio da competência legislativa e de fiscalização do Parlamento pode ser objeto de investigação. Numa federação, isso permite enxergar uma limitação de competência específica: uma CPI no legislativo federal não deve invadir área da competência constitucional dos Estados ou Municípios4.
Também deve-se ter em mente que, por conta das distintas competências de cada uma das casas legislativas do nível federal – em outras palavras, por conta do princípio do bicameralismo federativo adotado entre nós – uma comissão Parlamentar de Inquérito instituída pelo Senado Federal não poderá investigar fatos de competência operatória da Câmara dos Deputados5.
Pois bem. Parece pacífica, ou ao menos amplamente majoritária a tendência acima descrita de encerrar os poderes investigativos de uma CPI as competências da respectiva casa na qual se instaurou, o que é, aliás, bastante relevante no caso de uma CPI federal, tendo em vista a já aludida adoção do bicameralismo federativo.
No entanto, não se pode olvidar que na prática das CPIs acaba-se por desvendar situações que podem ser classificadas como fatos conexos àquele(s) que deu ou deram origem à sua instauração. E tais fatos podem ter ocorrido exatamente no âmbito de outras entidades federativas.
Quando há os tais fatos conexos no mesmo ambiente federativo, não se apresentam maiores dúvidas acerca da possibilidade de extensão da investigação da CPI. Dentre as várias manifestações doutrinárias, por virtude de brevidade, apresentamos a seguinte: a determinação do fato, entretanto, não impede que diversos fatos conexos sejam apreciados pelas CPIs, conforme previsto no parágrafo único do art. 5º da lei 1.572/52, devendo-se, outrossim sobre cada um deles ser apresentado em separado um relatório6. Assim sendo, a CPI pode acabar por tratar sobre fatos determinados que se encadeiem ou se seriem7.
Avançando sobre o tema, é preciso destacar que por outro lado, no exame da vinculação da matéria da CPI a uma competência do legislativo, concede-se generosa latitude de apreciação ao Parlamento. É Gilmar Mendes quem assevera que, neste particular, a doutrina americana assenta que o poder de inquirir do Congresso é de longo alcance, abarcando todos os setores em que o Congresso pode legislar e em que decide sobre alocação de verbas8.
E é verdade, outrossim, que o Regimento Interno do Senado Federal, em seu art. 146 estatui que não se admitirá comissão parlamentarde inquérito sobre matérias pertinentes: a) à Câmara dos Deputados; b) às atribuições do Poder Judiciário; c) aos Estados.
Pois bem. A esta altura cabe fazer uma interessante ilação com o papel do Tribunal de Contas da União. Sabe-se que o TCU examina as prestações de contas dos órgãos ou entidades repassadores de recursos federais. Além disto, pode examinar, também, as contas de Estado, Município, ou mesmo de entidades privadas que receberem esses recursos federais, no que disser respeito a esses recursos. Conforme consta em publicação especializada: as prestações de contas são encaminhadas anualmente ao Tribunal pelo controle interno de cada órgão para apreciação e julgamento quanto ao fiel cumprimento do estabelecido no convênio ou em instrumentos congêneres. Além da prestação de contas ordinária, o Tribunal pode, por iniciativa própria ou em casos de denúncias, realizar ações de controle específicas para apurar indícios de irregularidades9.
O Tribunal de Contas da União, apesar de órgão federal, tem poder de investigar e solicitar prestação de contas às entidades de outras instâncias federativas, acerca de repasses efetuados pela União Federal. Em relação a isto não pairam maiores dúvidas. Além de toda a sistemática constitucional aplicável, basta ler o art. 5º da Lei Orgânica do TCU para tanto se verificar.
Por outro lado, a despeito de opiniões diversas, há entendimentos no sentido de que o TCU é órgão vinculado ao Poder Legislativo Federal. E, independentemente disto, fato é que ele auxilia tal poder na questão da avaliação das contas do Poder Executivo.
Destarte, seria contrassenso reconhecer-se ao TCU uma competência apuratória, denegando-se a mesma competência ao Poder Legislativo respectivo, bem como à própria CPI que, na verdade, é o próprio Poder Legislativo organizado em comissão10.
Pode-se, então concluir no sentido de que é preciso tomar muito cuidado com a afirmação segundo a qual a CPI não poderá investigar Governadores e Prefeitos. Na verdade, no que concerne à destinação das verbas repassadas para o combate à pandemia, não parece coadunar-se com o ordenamento uma trava que impeça que a CPI se imiscua na questão a fim de obter o resultado mais eficiente possível.
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1. Estas são as lições de Ana Paula de Barcelos, esteada em Luís Roberto Barroso e Paulo Ricardo Schier. (Barcelos, Ana Paula de. Curso de Direito Constitucional. São Paulo: Forense, 2ª ed. 2020)
2. De acordo com Raimundo Carlyle de Oliveira Costa (Costa, Raimundo Carlyle de Oliveira. Controle jurisdicional sobre os poderes de investigação das comissões parlamentares de inquérito. São Paulo: Dialética, 2005).
3. De acordo com Raimundo Carlyle de Oliveira Costa (Costa, Raimundo Carlyle de Oliveira. Controle jurisdicional sobre os poderes de investigação das comissões parlamentares de inquérito. São Paulo: Dialética, 2005). No mesmo sentido, Alexandre de Moraes, ao afirmar que a atividade fiscal ou investigatória das comissões de inquérito há de desenvolver-se no estrito âmbito de competência do órgão dentro do qual elas são criadas. (Moraes, Alexandre de. Curso de Direito Constitucional. São Paulo: Atlas. 37ª ed. 2020.).
4. Mendes, Gilmar Ferreira. Branco, Paulo Gustavo. Curso de Direito Constitucional. Rio de Janeiro: Saraiva. 15ª ed.).
5. De acordo com Raimundo Carlyle de Oliveira Costa (Costa, Raimundo Carlyle de Oliveira. Controle jurisdicional sobre os poderes de investigação das comissões parlamentares de inquérito. São Paulo: Dialética, 2005).
6. De acordo com Raimundo Carlyle de Oliveira Costa (Costa, Raimundo Carlyle de Oliveira. Controle jurisdicional sobre os poderes de investigação das comissões parlamentares de inquérito. São Paulo: Dialética, 2005).
7. De acordo com Raimundo Carlyle de Oliveira Costa (Costa, Raimundo Carlyle de Oliveira. Controle jurisdicional sobre os poderes de investigação das comissões parlamentares de inquérito. São Paulo: Dialética, 2005).
8. Mendes, Gilmar Ferreira. Branco, Paulo Gustavo. Curso de Direito Constitucional. Rio de Janeiro: Saraiva. 15ª ed.).
9. Brasil. Tribunal de Contas da União. O Congresso Nacional e o TCU : controle externo integrado /Tribunal de Contas da União. – 4. ed. – Brasília : TCU, Secretaria-Geral da Presidência, 2015.
10. Há ainda um outro ponto a considerar ao menos quanto a CPI que está em vias de se instaurar. Ela se forma no Senado Federal, que é conhecida como a casa dos Estados. Trata-se de tema que não cabe nas presentes linhas, mas que sem dúvida pode influenciar na extensão da atividade da CPI.