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Crimes funcionais em licitações e contratos administrativos (cada um no seu quadrado)

A lei 14.133, publicada no DOU do dia 1º de abril de 2021, importou para o Código Penal os crimes em matéria de licitações e contratos que estavam dispostos na lei 8.666/93, mas ao fazê-lo deixou de observar a sistemática adotada pelo código: separar em capítulos próprios os crimes praticados por funcionários públicos dos que são praticados por particulares contra a Administração Pública.

20/4/2021

(Imagem: Arte Migalhas)

A lei 14.133, publicada no DOU do dia 1º de abril de 2021, denominada de lei de Licitações e Contratos Administrativos, revogou expressamente a lei 8.666/93 e introduziu no Título XI da Parte Especial do Código Penal o Capítulo II-B, que contém novos delitos atinentes às licitações e contratos administrativos.

A revogação completa da lei 8.666/93 ocorrerá somente depois de decorridos 2 anos da data da publicação, de acordo com o art. 193, II, da lei 14.133/21. Quanto à parte penal, porém, não houve a previsão de vacatio legis, ao contrário, o art. 193, I, determinou a vigência imediata a partir da data de sua publicação.

Ao todo foram criados 11 crimes e eles estão distribuídos entre as letras E e O do art. 337 do Código Penal.

O art. 337, por sua vez, está inserido no Capítulo II do Título XI da Parte Especial do Código Penal, que cuida dos crimes praticados por particular contra a Administração Pública, e ao longo do tempo ele sofreu diversos acréscimos em decorrência da necessidade de atualização da legislação penal.

No ano de 2000, por exemplo, a lei 9.983 criou o crime de sonegação previdenciária no art. 337-A. Depois, em 2002, a lei 10.467 criou o Capítulo II-A com a denominação “Dos Crimes Praticados por Particular Contra a Administração Pública Estrangeira”. Com esse novo capítulo o art. 337 ganhou as letras B, C e D.

Agora, já em 2021, sobreveio a lei 14.133, de 1º de abril, que criou mais um capítulo, o Capítulo II-B, denominado “Dos Crimes em Licitações e Contratos Administrativos”, e novamente ao art. 337 foram inseridas as letras E a O.

O legislador já gastou, portanto, quase o alfabeto inteiro com o art. 337 do CP.

Porém, notadamente quanto a esta última reforma, não se deu conta de que muito melhor do que provocar o inchaço do art. 337 teria sido dividir os crimes de licitações e contratos entre os Capítulos I e II, a depender da condição do sujeito ativo, do modo a inserir no primeiro os crimes praticados por funcionários públicos contra a Administração, vale dizer, os delitos funcionais, e no segundo os praticados por particulares contra a Administração, isto é, os não funcionais. Dessa maneira estaria resguardada a coerência com o sistema que foi adotado pelo código desde o início de sua vigência e que vinha sendo mantido pelas duas leis que antecederam a nova lei de Licitações e Contratos Administrativos: a lei 9.983/2000 (sonegação previdenciária) e a lei 10.467/02 (crimes cometidos por particular contra administração estrangeira).

Por outras palavras, a lei 14.133/21 colocou no mesmo balaio crimes que são diferentes quanto ao sujeito ativo, distanciando-se do sistema adotado pelo código, que visa justamente o contrário: separar os crimes funcionais dos não funcionais, dedicando a cada um deles um capítulo próprio, de maneira a estabelecer exceções pluralísticas à teoria monista ou unitária do concurso eventual de pessoas.

A título ilustrativo, enquanto a corrupção passiva (crime funcional) está tipificada no art. 317 (Capítulo I), a corrupção ativa (crime particular) está prevista no art. 333 (Capítulo II). Enquanto a facilitação de contrabando ou descaminho (crime funcional) está prevista no art. 318 (Capítulo I), o descaminho e o contrabando (crimes particulares) estão tipificados nos arts.334 e 334-A, respectivamente.

Por que então não manter a coerência?

Da mesma forma que na lei 8.666/93, em cujos artigos 89 a 98 estavam previstos os tipos penais, dentre os 11 novos delitos alguns são próprios de funcionários públicos enquanto outros são comuns quanto ao sujeito ativo.

São exemplos de crimes praticados por particular os de: (i) Afastamento de licitante (art. 337-K), (ii) de Fraude em licitação ou contrato (art. 337-L), (iii) de Contratação inidônea (nos casos do §2º do art. 337-M) e (iv) de Omissão grave de dado ou de informação por projetista (art. 337-O), este último ~sem paralelo na legislação anterior.

Por outro lado, podem ser citados como exemplos de crimes funcionais: (i) Contratação direta ou ilegal (art. 337-E), (ii) Patrocínio de contratação indevida (art. 337-G), (iii) Modificação ou pagamento irregular em contrato administrativo (na parte em que a conduta for admitir a prorrogação contratual em favor do particular (art. 337-H), (iv) Violação de sigilo em licitação (art. 337-J), (v) contratação inidônea (art. 337-M) e (vi) impedimento indevido (art. 337-N).

Quanto ao crime de Patrocínio de contratação indevida (art. 337-G) não haveria sequer a necessidade de se ter criado um tipo penal autônomo. Bastaria a introdução de um parágrafo ao art. 321 do CP, que define a Advocacia administrativa, contendo uma circunstância qualificadora para quando resultar da conduta praticada a instauração de procedimento licitatório ou contrato administrativo. Desde a lei 8.666/93 o art. 91 já era tido pela doutrina como uma modalidade específica de advocacia administrativa, vale dizer, um tipo especial de advocacia administrativa, a exemplo do que também acontece com o delito previsto no art. 3º, III, da lei 8.137/90. E sendo uma variação de Advocacia administrativa, naturalmente o sujeito ativo do novo crime deve ser o agente público, assim como no art. 91 da revogada lei de Licitações.

Perdeu o legislador a chance de colocar um delito funcional em matéria de licitações e contratos dentro do capítulo próprio.

Esse entendimento também vale para o novo crime de Violação de sigilo em licitação previsto no art. 337-J do CP, que tipifica a mesma conduta prevista no art. 326 do Código Penal, revogado tacitamente pelo art. 94 da lei 8.666/93: “Devassar o sigilo de proposta apresentada em processo licitatório ou proporcionar a terceiro o ensejo de devassá-lo”.

Ao invés de tê-lo colocado no art. 337-J, bastaria ter ajustado a pena do art. 326 do CP (passando para 2 a 3 anos de detenção), mantendo-o juntamente com os demais delitos funcionais dentro do Capítulo I.

Em suma, é normal e recorrente a criminalização de condutas na legislação especial, vale dizer, fora do Código Penal. No entanto, no caso em questão como o legislador optou por importar para o Código Penal os crimes que antes estavam previstos na lei 8.666/93, bem que poderia tê-los alojado dentro dos capítulos que lhes são próprios do ponto de vista técnico-jurídico, colocando os crimes funcionais no Capítulo I e os não funcionais no Capítulo II do Título XI da Parte Especial do CP. Assim, ficaria mantida a coerência com a sistemática adotada pela legislação penal. Perdeu-se a chance de colocar cada um no seu quadrado!

Fábio Meneguelo Sakamoto
Promotor de Justiça - MPSP. Especialista em Interesses Difusos e Coletivos. Mestre em Direito Constitucional.

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