Migalhas de Peso

O direito à saúde em tempos de pandemia: O mínimo existencial e a reserva do possível

Deve o Poder Judiciário interferir na distribuição de vagas de UTI dos municípios para os infectados com o covid-19?

19/4/2021

O fenômeno da “Judicialização da Saúde” não é recente. Há anos, a ingerência do Poder Judiciário na gestão dos recursos, insumos e medicamentos tem sido objeto de diversos estudos, debates acadêmicos e discussões. Entretanto, a Pandemia do covid-19, com a sua dimensão catastrófica para a sociedade, trouxe novos elementos para o necessário enfrentamento do tema.

A presente análise tem como ponto de partida duas matérias veiculadas na Folha de São Paulo e neste Migalhas. A primeira, intitulada “Com sobrecarga de hospitais, pacientes recorrem à Justiça por vagas de UTI covid”,1 informa que o aumento de internações e mortes, associado ao esgotamento de leitos em vários estados, intensificou a busca individual e coletiva de ações judiciais para garantia de vagas em UTIs. Tais pleitos trouxeram o dilema do Poder Judiciário determinar internações sem a observância dos critérios clínicos de prioridade das filas organizadas pelas centrais de leitos dos Estados, que levam em conta o estágio de gravidade do paciente, resultando em uma fila paralela de internações judiciais “imediatas”. Ou seja, o acesso à saúde privilegiou pacientes com decisões judiciais em detrimento de outros portadores de casos mais graves.

A segunda matéria, publicada poucos dias depois, intitulada “Magistrado lamenta ao negar pedido de internação: ‘vivemos colapso’"2, relata a decisão do desembargador João Barcelos de Souza Junior, do Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul, que “com profunda tristeza e angústia”, negou a obtenção de leito de UTI para tratamento de paciente acometido de covid, sob a alegação que o Poder Judiciário não tem "o 'poder' de modificar a realidade fática da grave situação que se instaurou e que, infelizmente, salvo algum milagre, piorará nos próximos dias3". Em sua fundamentação, reafirmou ele que, diante da inexistência de leitos vagos, “qualquer decisão neste sentido poderá ser mal interpretada e causar mais perplexidade ainda, fazendo com que um paciente seja preterido por outro, situação que o Poder Judiciário tem de todas as formas evitar".

As duas notícias refletem posicionamentos divergentes dos magistrados diante do mesmo problema e convidam à reflexão. É possível, em tempos de pandemia, por meio do Poder Judiciário, efetivar individualmente o direito à saúde, garantir o seu mínimo existencial?  Ou, diante da reserva do possível, o Judiciário deve se abster de interferir na administração dos recursos públicos para enfrentamento do novo coronavírus?

Parece certo que resposta simples para tal questão não existe. É possível, entretanto, aprofundar o debate sobre o tema.

Comecemos por delimitar, ainda que suscintamente, a noção de mínimo existencial. Na lição de Ricardo Lobo Torres4, ele “não tem dicção normativa específica, está compreendido em diversos princípios constitucionais”, eis que surge de interesses fundamentais relacionados aos direitos à alimentação, saúde e educação, dentre outros, que muito embora não sejam originalmente considerados fundamentais na Constituição, adquirem este status por comporem a parcela mínima sem a qual o homem não sobrevive com dignidade. Contudo, observa que o mínimo existencial depende da concessão do legislador, pois em seu bojo existem direitos despojados de status negativo, incapazes por si só gerarem pretensão à prestação positiva estatal. Sendo assim, carecem de eficácia erga omnes. 

Quanto à judicialização do mínimo existencial, Rogério Leal (2009, p. 92) afirma que:

a perspectiva de mínimo existencial que chega, por exemplo, ao Judiciário, para fins de proteção, apresenta-se centrada – geralmente – numa ótica individual, sem levar em conta as dimensões e impactos sociais pertinentes à espécie (cada qual quer o SEU direito à saúde, não importante se, para atendê-lo, ter-se-á que sacrificar o direito à saúde de muitos), razão pela qual, na dicção de Ricardo Torres – com o que concordo no ponto -, é cada dia mais difícil estremar o mínimo existencial, em sua região periférica, do máximo de utilidade (maximum welfare, Nutzenmaximierung), que é princípio ligado à ideia de justiça e aos direitos sociais. Grifo nosso.

Agora, algumas linhas sobre a reserva do possível. Com origem no Direito alemão5 (BVerfGE 33, 303 s., p.656), foi reconhecido aquilo que doutrina constitucional da “reserva do possível” (CANOTILHO, p. 623). Nela, a efetividade dos direitos sociais a prestações materiais estaria sob a reserva das capacidades financeiras do Estado, uma vez que seriam direitos fundamentais dependentes de prestações financiadas pelos cofres públicos.6

A reserva do possível, segundo Ingo Sarlet (2007, p.19), apresenta uma dimensão tríplice que compreende: (i) a disponibilidade para a efetivação dos direitos fundamentais; (ii) a disponibilidade jurídica dos recursos materiais e humanos – esses conectados à distribuição de receitas e competências previstas no pacto federativo constitucional, relacionadas à legislação, tributação e orçamento, dentre outros aspectos –, e, por fim; (iii) o enfrentamento do problema da proporcionalidade da prestação no que toca sua exigibilidade, assim como sua razoabilidade. Prossegue, ao ponderar que, em que pese a reserva do possível constituir espécie de limite jurídico e fático dos direitos fundamentais, também estará a serviço da garantia desses, como na hipótese de conflito de direitos, onde a invocação da indisponibilidade de recursos tem o intuito de salvaguardar o núcleo essencial de outro direito fundamental, observados os critérios da proporcionalidade e da garantia do mínimo existencial.

Partindo de tais conceitos, é possível, segundo entendemos, encontrar uma solução adequada para a controvérsia.

Em uma análise apressada, caso o Poder Judiciário não conceda a tutela de urgência (art. 300 do CPC) para autorizar a internação nos leitos de UTI dos pacientes com covid-19 em estado grave, a probabilidade de falecimento é alta. Em casos que tais, o mínimo existencial do Direito à Saúde será violado. Nessa linha, estaria justificada a decisão judicial que determina a internação do infectado que buscou a proteção do Poder Judiciário.

Entretanto, partindo de um raciocínio de que, considerando o acesso à justiça garantido na Constituição Federal, todo cidadão brasileiro e estrangeiro (art. 5º da CF/88) pode reclamar a proteção do seu direito perante o Poder Judiciário, se todos os pacientes em situações graves ajuizassem suas demandas pedindo a internação, não haveria leitos para todos. Não se criam leitos por meio de decisões judiciais. Por conseguinte, quando se analisa no aspecto coletivo as mesmas ações individuais, percebe-se que a decisão judicial não é universalizável, vez que não pode ser concedida a todos igualmente.

Para além das discussões sobre a necessidade de construção de uma noção de bem comum, o sacrifício da gestão coletiva do Direito à Saúde em detrimento do individual não parece razoável para fins de concretização da justiça social prevista na Constituição Federal.

Entretanto, surge aqui outro problema, decorrente sobre a “reserva do possível fática”. Deve-se verificar se os recursos existentes estão sendo utilizados de forma adequada pelo Poder Publico. Caso a resposta seja negativa, poderia o Judiciário atuar para promover a maior efetividade dos direitos fundamentais?

A proibição de ineficiência para a realização dos direitos positivos fundamentais, incluídos nestes os de cunho social, obriga os órgãos estatais e agentes políticos a maximizarem os recursos e minimizarem o impacto da reserva do possível, para que esta não se constitua em uma falácia para obstaculizar a omissão estatal ou ainda, a intervenção judicial para garantir a efetivação desses direitos (CANOTILHO, 2018, p.1055).

Vê-se que o Poder Judiciário não apenas pode, como deve, zelar pela efetivação dos direitos fundamentais sociais com cautela e responsabilidade (SARLET, 2007, p. 21-22), sem que isso venha a configurar a violação do princípio democrático e do princípio da separação dos Poderes, pois é constitucionalmente assegurada a atuação dos órgãos jurisdicionais, quando e na medida do necessário. Todavia, o autor ressalva que:

[...] efetivamente há que dar razão a Holmes e Sunstein quando afirmam que levar direitos a sério (especialmente pelo prisma da eficácia e efetividade) é sempre também levar a sério o problema da escassez. Parece-nos oportuno apontar aqui (mesmo sem condições de desenvolver o ponto) que os princípios da moralidade e eficiência, que direcionam a atuação da administração pública em geral, assumem um papel de destaque nesta discussão, notadamente quando se cuida de administrar a escassez de recursos e otimizar a efetividade dos direitos sociais.

[...] Assim, levar a sério a “reserva do possível” (e ela deve ser levada a sério, embora sempre com as devidas reservas) significa também, especialmente em face do sentido do disposto no art. 5º, § 1º, da CF, que cabe ao poder público o ônus da comprovação da falta efetiva dos recursos indispensáveis à satisfação dos direitos a prestações, assim como da eficiente aplicação dos mesmos. Grifos nossos

E aqui surge um ponto de inflexão. Como visto, o Poder Judiciário, ao analisar o problema de forma individual, vez que provocado por demandas de cada cidadão, via de regra não dispõe de instrumentos para realizar a correta gestão dos parcos recursos disponíveis para a garantia do Direito à Saúde. Cabe à Administração Pública, por meio de seus agentes, definir os critérios adequados para a distribuição dos imprescindíveis leitos de UTI pelos hospitais brasileiros.

Porém, caso a ação verse sobre a malversação do dinheiro público, ou mesmo destinação indevida de recursos para áreas não essenciais no complexo momento que vivemos, é dever o Poder Judiciário atuar para coibir a atuação ineficiente da Administração Pública.

O que não encontra guarida na Constituição Federal é a ingerência do Poder Judiciário que, na tentativa de garantir um mínimo existencial do Direito à Saúde, causa maiores entraves e dificuldades à gestão da pandemia no Brasil

_____________________

1 COLUTTI, Cláudia, Folha de S. Paulo, PANDEMIA FORA DE CONTROLE - Com sobrecarga de hospitais, pacientes recorrem à Justiça por vagas de UTI covid. 3 de março de 21, disponível em < Com sobrecarga de hospitais, pacientes recorrem à Justiça por vagas de UTI Covid - 03/03/2021 - Equilíbrio e Saúde - Folha (uol.com.br)> , acesso em 14.mar.21.

2 Redação do Migalhas, Migalhas Quentes, Magistrado lamenta ao negar pedido de internação: "vivemos colapso". 11 de março de 21, disponível clicando aqui, acesso em 14.mar.21.

3 BRASIL. Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul. Agravo de Instrumento 5038768-65.2021.8.21.7000/RS. Agrte ---, Agrdo: Estado Do Rio Grande Do Sul, Agrdo: Município De Ivoti, Des. Joao Barcelos De Souza Junior. Porto Alegre, RS, 10 de março de 21. Disponível clicando aqui, acesso em 14.mar.21.

4 TORRES, Ricardo Lobo. O Mínimo Existencial e os Direitos Fundamentais, in: Revista de Direito Administrativo, 177, 1989, p. 20-49, disponível clicando aqui , acesso em 14.mar.21.

5 Cf. BVerfGE 33, 303 (333). MARTINS, Leonardo (org).50 Anos de Jurisprudência do Tribunal Constitucional Alemão. Disponível clicando aqui, acesso em 14.mar.21.

6 SARLET, I., & Figueiredo, M. (2007). Reserva do possível, mínimo existencial e direito à saúde, in Revista Brasil.

Thiago Carlos de Souza Brito
Doutor e Mestre em Direito Processual Civil pela UFMG. Membro do Instituto Brasileiro de Direito Processual - IBDP. Membro fundador do Instituto de Direito Processual - IDPro. Professor na Universidade do Vale do Rio dos Sinos - UNISINOS. Advogado.

Fernanda Martinelli Salgueiro Zannoni
Bacharel em Direito pela FADERGS. Bacharel em Ciências Contábeis pela IESJT. Pós-graduanda em Direito Tributário e Processo Civil, pela FALEG. Contadora e Consultora.

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