Como anota o eminente processualista Mauro Schiavi, “a Justiça do Trabalho, na expressão do cotidiano, é uma justiça popular, em que o Juiz do Trabalho tem um contato maior com as partes”1, o que se dá fundamentalmente no momento da audiência – ponto alto do processo trabalhista -, não apenas por conta da forma como o processo judicial laboral foi concebido e está estruturado na CLT, mas principalmente pelos traços fortes do que se convencionou chamar de princípio da imediatidade ou imediação, regente do sistema processual do trabalho.
Não é à toa que, em reiterados provimentos jurisdicionais de segundo grau, os TRT’s – instância revisora – referenciam explicitamente o citado princípio, repercutindo no especial valor dado às impressões do juiz instrutor – primeiro grau de jurisdição – a respeito da prova oral colhida, consequência do contato direto que o magistrado de piso estabelece com as partes e testemunhas em audiência.2
Com a inteligência que lhe é peculiar, o preclaro desembargador Luiz Otávio Linhares Renault sintetiza de forma primorosa a temática em estudo, fazendo uma instigante reflexão sobre o fenômeno probatório ínsito à jurisdição trabalhista e o relevo atribuído às percepções e ao sentir assimilados pelo julgador condutor da audiência de instrução, como se extrai da ementa abaixo:
“JUIZ INSTRUTOR - IMPORTÂNCIA DA VALORAÇÃO DO CONJUNTO PROBATÓRIO POR QUEM MANTÉM CONTATO DIRETO COM A CONFECÇÃO DOS ELEMENTOS, DOS MEIOS E DOS INSTRUMENTOS DA PROVA - SISTEMA DA PERSUASÃO RACIONAL. O juiz instrutor, vale dizer, aquele que colhe e tem contato direto com o conjunto probatório, é como que o cardiologista do processo: é quem melhor ausculta a verdade; é quem sente o pulsar, o palpitar, o ritmo e a coerência interior e exterior da prova, principalmente daquela de natureza testemunhal. A prova, de certa forma, é um retorno ao passado; por intermédio dela - meios e elementos - reconstituem-se fatos pretéritos, para que o juiz possa aplicar o Direito, construindo democraticamente com as partes a sentença. As maiores dúvidas, isto é, o que mais aflige ao julgador, via de regra, estão relacionadas com a matéria fática e não com o Direito. No processo do trabalho, esta angústia é mais intensa, porque quase todos os pedidos envolvem controvérsia de natureza fática. A palavra "audiência" tem origem no Latim "audire". Muito embora este vocábulo, ao longo do tempo, haja acumulado vários significados, no sentido próprio sempre reteve a ideia fundamental de "ouvir", de "estar com os ouvidos atentos"; de "escutar". A prova é o conjunto de elementos de fato, assim como dos respectivos instrumentos, que contribuem para que o juiz estabeleça a verdade a respeito das alegações das partes. De conseguinte, o juiz que ouve, escuta, e avalia as respostas, as palavras, os depoimentos, os comportamentos, as reações e as sensações das testemunhas, está mais apto à percepção e à apreensão da verdade dos fatos, embora também possa cometer equívocos. Por essa razão, o princípio da imediatidade é extremamente importante e relevante para o processo e, por conseguinte, para o julgamento dos pedidos, eis que coloca o magistrado que realizou a audiência de instrução em contato direto e imediato com os elementos da prova, partes e as testemunhas, permitindo-lhe, com base na experiência, nas impressões, na razoabilidade, na ponderação, assim como nas linguagens verbal e gestual dos depoentes, avaliar e sopesar, com maior riqueza de detalhes, inclusive de natureza sensorial, os instrumentos da prova, formando a sua persuasão racionalmente.3
E assim caminha - ou caminhava - o processo do trabalho, até que outra realidade se apresenta e novas leituras e possibilidades se impõem, sobretudo após a grave pandemia vivida nos dias de hoje, a qual determinou um ritmo ainda mais acelerado na virtualização dos espaços e das relações, atingindo também, no campo da jurisdição laboral, a forma tradicional como certos atos processuais eram feitos, notadamente a audiência trabalhista.
Neste prisma, se em época anterior, das audiências presenciais, ao TRT, como instância recursal, cabia simplesmente o exame da letra fria dos depoimentos registrados por escrito na ata, tendo que se socorrer, por vezes, para elucidar o material probatório, ao sentimento revelado na sentença pelo juiz condutor da instrução que, dada a posição privilegiada na coleta das provas, afirmava ou retirava a credibilidade dos depoentes ou das declarações por eles prestadas em juízo - princípio da imediatidade ou imediação -, nos tempos atuais, das audiências virtuais, em que se dispensa a transcrição em ata das oitivas das partes e de suas testemunhas, permitindo documentá-las por meio audiovisual - gravação, o próprio tribunal de segundo grau passa a conectar-se com o acontecimento da audiência e ter contato visual e auditivo com os depoentes, o que seguramente possibilita ao órgão colegiado extrair suas próprias impressões e interpretações no tocante à prova oral e seus personagens.
Afinal de contas, o TRT passa a ver, ouvir e sentir a audiência e os sujeitos que dela participam não mais somente pelos olhos, ouvidos e registros do juiz que a preside, mas também por seus próprios sentidos.
Se no âmbito da audiência presencial, apenas o magistrado instrutor tem contato com as partes e testemunhas, o que lhe confere melhores condições de examinar o comportamento dos depoentes e a veracidade de cada informação, doravante, na sistemática das audiências virtuais, com a gravação audiovisual dos depoimentos pessoais e oitivas testemunhais, e sua disponibilização em links, o tribunal também passa a desfrutar desta mesma posição privilegiada, porquanto passa a assistir a tudo, exatamente como ocorreu, o que certamente qualifica a função recursal do órgão de segunda instância de (re)avaliar fatos e provas.
E conquanto a novidade ainda cause incômodo, apreensão e insegurança aos que militam na Justiça Especializada, trata-se de caminho já pavimentado na lei e em atos-infralegais emanados dos órgãos responsáveis por disciplinar a matéria.
O artigo 367, § 5º do CPC preceitua que “a audiência poderá ser integralmente gravada em imagem e em áudio, em meio digital ou analógico, desde que assegure o rápido acesso das partes e dos órgãos julgadores, observada a legislação específica”.
Por sua vez, o artigo 2º da Resolução 105 do CNJ estabelece que “os depoimentos documentados por meio audiovisual não precisam de transcrição”.
Já o artigo 23, §4º da Resolução 185 do CSJT prescreve que “os depoimentos gravados em áudio e vídeo deverão ser disponibilizados às partes, sem necessidade de transcrição, sendo que, em caso de solicitação de fornecimento de cópia, a mídia deverá ser fornecida pelo interessado”.
Neste novo cenário, portanto, a imediatidade, ou imediação, fica a cargo não apenas do magistrado de piso, mas também do próprio tribunal, que tem a oportunidade de assistir, ouvir e sentir os depoimentos pessoais das partes e de suas respectivas testemunhas, posicionando-se em patamar tão privilegiado quanto ao ocupado pelo juiz instrutor, o que permitirá aos desembargadores, na esfera recursal, extrair, para além das impressões apregoadas pelo julgador sentenciante, suas próprias conclusões sobre o comportamento, a segurança, a coerência e a credibilidade dos depoentes e de suas declarações.
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1 SCHIAVI. Mauro. Manual de Direito Processual do Trabalho. 15ª edição – São Paulo: LTr, 2018, p. 603.
2 A título de exemplo, recomenda-se a leitura dos precedentes a seguir enumerados, todos originários do Tribunal Regional do Trabalho da 3ª Região: 0010612-26.2020.5.03.0086; 0010298-48.2020.5.03.0129; 0010070-92.2020.5.03.0058; 0011182-78.2019.5.03.0043.
3 TRT 3ª Região, 0010897-88.2017.5.03.007, Primeira Turma, Relator Des. Luiz Otávio Linhares Renault, Disponibilização 7/3/18.