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O dano moral no Brasil. Uma reparação que não deu certo. De quem é a culpa?

Estamos a anos luz distante do caráter punitivo da indenização nos moldes do instituto dos danos punitivos (punitive damages) do direito norte-americano.

18/4/2021

(Imagem: Arte Migalhas)

O dano moral foi inserido na Constituição Federal de 1988 (art. 5º, incisos V e X “V - é assegurado o direito de resposta, proporcional ao agravo, além da indenização por dano material, moral ou à imagem; X - são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação; (BRASIL, 1988)[i], trazendo novas perspectivas nas relações e como alternativa de reparo às violações decorrentes das relações do dia a dia.

A lei 8.078/90 (Código de Defesa do Consumidor) regulamentou a defesa do consumidor reconhecendo em diversos artigos a sua vulnerabilidade no mercado do consumo, permitindo uma harmonização dessas relações e tipificando praticas comerciais consideradas abusivas e as possibilidades de reprimi-las. 

Não é necessário fazer um norteamento histórico para tratar do tema. Tão pouco buscar as orientações ditadas no Código de Hamurabi ou no Código de Ur-Mammu de meados de 2140 e 2040 a.C. Façamos uma retrospectiva dos dias atuais e do passado recente e saberemos por que a reparação do dano moral não deu certo no Brasil e de quem é a culpa.

A jurisprudência no Brasil firmou o entendimento de que aborrecimentos, frustações e outros embaraços do dia a dia configurariam mero dissabor.

E assim vem negando indenização por dano moral em casos que a internet não funciona, em que a seguradora não paga o seguro devido, em que o Banco bloqueia indevidamente o saldo de sua conta, em que a empresa de telefonia cancela a sua linha, ou diante da emissão indevida de um boleto bancário.

E quando a concede a arbitra em valores tão ínfimos, que o cidadão se sente frustrado e desprotegido.

Ao assim fazer estimula a prática de atos abusivos e nega ao cidadão um direito que está inserto na Constituição. Assim, a indenização não atinge o seu caráter pedagógico, nem reparador, nem punitivo.

Estamos a anos luz distante do caráter punitivo da indenização nos moldes do instituto dos danos punitivos (punitive damages) do direito norte-americano.

No sistema americano o cidadão é julgado por um júri popular formado por juízes leigos, que são orientados previamente por um juiz togado. O caráter punitivo está inserido no dano moral o que desestimula as praticas abusivas, tendo em vistas as indenizações milionárias que são arbitradas.

Constata-se que no Brasil a indenização por dano moral deve ser fixada num valor que desestimule novas práticas similares, cabendo o Magistrado estabelecer esses parâmetros.

Para o Superior Tribunal de Justiça “A aplicação irrestrita das “punitive damages” encontra óbice regulador no ordenamento jurídico pátrio que, anteriormente à entrada do Código Civil de 2002, vedava o enriquecimento sem causa como princípio informador do direito e após a novel codificação civilista, passou a prescrevê-la expressamente no art. 884 do Código Civil de 2002. O critério que vem sendo utilizado por essa Corte Superior na fixação do valor da indenização por danos morais, considera as condições pessoais e econômicas das partes, devendo o arbitramento operar-se com moderação e razoabilidade, atento à realidade da vida e às peculiaridades de cada caso, de forma a não haver o enriquecimento indevido do ofendido, bem como que sirva para desestimular o ofensor a repetir o ato ilícito (Ag 850273/BA).

Constata-se que no Brasil a indenização por dano moral deve ser fixada num valor que desestimule novas práticas similares, cabendo o Magistrado estabelecer esses parâmetros.

Não é o que ocorre nos Juizados Especiais e Tribunais Recursais no nosso país. Adotou-se a postura de indenizar em valores módicos ou não indenizar o dano moral com o objetivo de desestimular o acesso dos cidadãos ao Poder Judiciário e, consequentemente, desestimular as demandas.

Ignoram a teoria do desvio produtivo. Segundo essa teoria a desnecessária perda do tempo útil do consumidor para o reconhecimento do seu direito, imposta de forma abusiva, enseja indenização por dano moral. Vejamos trecho da decisão:

 "(...) 4. A jurisprudência tem privilegiado a Teoria do Desvio Produtivo, já adotada por Tribunais de Justiça e pelo STJ, que reconhece que a perda de tempo imposta ao consumidor pelo fornecedor, de modo abusivo, para o reconhecimento do seu direito, enseja indenização por danos morais (...). O que se indeniza, neste caso, é a desnecessária perda de tempo útil imposta ao consumidor, o qual poderia ser empregado nos afazeres da vida, seja no trabalho, no lazer, nos estudos ou em qualquer outra atividade, e que, por força da abusiva indiferença do fornecedor, é empregado para a tentativa de reconhecimento de direitos manifestos. (...). 5. Assim, na hipótese vertente, a excessiva resistência do fornecedor, que, por tempo demasiado, esquivou-se no atendimento dos reclames do consumidor, impondo a este, de forma abusiva, verdadeira via crucis para a reconhecimento do seu direito, suplanta o mero dissabor cotidiano, ensejando indenização, por danos morais.”

Acórdão 1152220, Relatora Juíza SONÍRIA ROCHA CAMPOS D'ASSUNÇÃO, 1ª Turma Recursal dos Juizados Especiais Cíveis e Criminais do DF, data de julgamento: 15/2/2019, publicado no DJe: 25/2/2019.

Por isso quero registrar a minha indignação, em nome de toda a classe de advogados, do voto proferido pelo juiz Alessander Marcondes França Ramos, do TJSP acompanhado pelas juízas Deborah Lopes e Flavia Bezerra Tone, julgando o processo 1019851-89.2020.8.26.0007, quando ao rejeitar recurso transcreveu texto do dito filósofo Luiz Felipe Pondé, adotando-o e achando ser essa a tendência atual do País.

O texto adotado pelo julgador, divagando de forma aleatória sobre o politicamente correto e adotando exemplos debochados, distante da realidade, e de forma desrespeitosa, diz que “o mercado jurídico cresce para os advogados que adoram esse inferninho. Se você pode ser processado por respirar para o lado errado, os advogados adoram. Já os juízes, não sei. Trabalhar como juiz numa sociedade de retardados mentais social não me parece a coisa mais fácil do mundo”.

Tal afirmação me leva responder a indagação contida no título do presente texto. A reparação do dano moral não deu certo no Brasil, não porque estamos diante não de uma sociedade de retardados mentais sociais, como afirma o Douto Julgador, mas, sim, se usarmos o exemplo de forma inversa, diante de alguns julgadores retardados mentais sociais, que se recusam a julgar e definir parâmetros para uma vida justa em sociedade, e ao assim fazer estimulam as praticas abusivas e alimentam as demandas judiciais que seriam evitadas se o consumidor fosse respeitado em seu direito mais fundamental.

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[i] BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF: Senado Federal: Centro Gráfico, 1988.

Maria Dionne de Araújo Felipe
Advogada, procuradora da Fazenda Nacional aposentada, especialista em Integração Econômica e Direito Internacional Fiscal pela FGV, diretora de Integração Social a Associação Nacional dos Advogados Públicos.

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