Migalhas de Peso

De volta para o futuro: A responsabilidade penal dos pais e os veículos autônomos dirigidos (?) por crianças

A complexidade que permeia a dinâmica dos carros autônomos suscita diversos outros questionamentos que escapam desta estreita via reflexiva.

16/4/2021

Como já tivemos a oportunidade de abordar em trabalho anterior1, a interação entre direito e tecnologia, notadamente no que toca à inteligência artificial, é responsável por trazer à baila questionamentos importantes. Na esteira deste horizonte tecnológico, os estudos de caso envolvendo o paradigma dos carros autônomos têm fomentado discussões das mais interessantes, que até pouco tempos atrás pertenciam exclusivamente aos domínios da ficção.

A exemplo desta nova realidade que se aproxima, noticiou-se recentemente que duas adolescentes, de 14 e 15 anos, percorreram, entre os Estados norte-americanos da Carolina do Sul e da Flórida (USA), cerca de 563 km, em um automóvel da Tesla com direção autônoma (self driving car). Quando foram paradas pela polícia, alegaram como justificativa que, à despeito de não possuírem habilitação, o veículo dispensaria motorista2. Durante a blitz, verificou-se, curiosamente, que nenhuma das duas adolescentes ocupava o assento do motorista.

É importante sublinhar que, segundo as particularidades da legislação norte-americana correlata, nada obstante a extraordinária capacidade de processamento de dados e de reação de tais máquinas e, consequentemente, seu indiscutível aproveitamento na minimização de danos em comparação com a condução de veículo por qualquer ser humano, ainda sim é necessário que haja, no caso de sistemas de direção automatizada3 como o do Tesla Model 3 (Full Self-Driving)4, um condutor habilitado e atento na condição de motorista. Não se descure, pois, da indagação lançada pelos professores HELOISA ESTELITTA e ALAÔR LEITE como provocação à imersão no tema: “À falta de um condutor humano, surge a seguinte pergunta: como deve o veículo se comportar diante de uma situação dilemática em que a lesão à vida, à integridade física ou ao patrimônio do passageiro e/ou de terceiros faz-se inevitável?”5.

Enquanto tais tecnologias não são efetivamente desembaraçadas em nossas alfândegas, as discussões podem ser antecipadas no plano teórico de reflexão. Como o sistema de Justiça Penal brasileiro reagiria diante de situação análoga? Teria o ordenamento jurídico vigente instrumentos aptos para enfrentar o episódio? São questionamento que de fato ululam quando ousamos refletir dilemas penais aqui ainda abstratos – concretos em outros cantos do mundo – à luz de nossa legislação vigente.

Nessa breve reflexão trazida ao contexto nacional, com efeito, pode-se pensar a situação em apreço nos termos do artigo 310 do Código de Trânsito Brasileiro (CTB), segundo o qual constitui crime “Permitir, confiar ou entregar a direção de veículo automotor a pessoa não habilitada”6.

Sob o prisma do tipo objetivo, mutatis mutandis em relação aos veículos não autônomos a jurisprudência é assente no sentido de que “não é exigível, para o aperfeiçoamento do crime, a ocorrência de lesão ou de perigo de dano concreto na conduta de quem permite, confia ou entrega a direção de veículo automotor a pessoa não habilitada”7. Em consolidação ao entendimento de que o tipo em questão perfaz um crime de perigo abstrato, o Colendo Superior Tribunal de Justiça editou Súmula 575 estabelecendo que “constitui crime a conduta de permitir, confiar ou entregar a direção de veículo automotor a pessoa que não seja habilitada, ou que se encontre em qualquer das situações previstas no art. 310 do CTB, independentemente da ocorrência de lesão ou de perigo de dano concreto na condução de veículo”8.

Já sob a ótica do tipo subjetivo, por outro lado, há julgados em nossos Tribunais – também partindo de veículos não autônomos – considerando que os genitores não respondem criminalmente, na forma do art. 310 do CTB, se o veículo for pego pelos filhos sem autorização9.

Por certo, a complexidade que permeia a dinâmica dos carros autônomos suscita diversos outros questionamentos que escapam desta estreita via reflexiva (v.g. se o verbo dirigir encontra aderência na conduta do sujeito que apenas seleciona uma rota no navegador; se o dono do veículo, na condição de genitor, ocupa a posição de garante em relação à malversação por sua prole; etc.).

De toda forma, adotando como parâmetro a experiência havida com os carros não autônomos em nossa reiterada jurisprudência, pode-se dizer que o caso norte-americano retratado no pórtico deste artigo se enquadraria, objetivamente, no preceito primário abstrato prescrito no artigo 310 do CTB, porquanto, em tese, houve a permissão ou entrega de direção de veículo automotor a pessoa não habilitada, o que, inclusive, prescinde da ocorrência de dano concreto.

Noutra raia, porém, subjetivamente, sua perfeita aderência dependeria da demonstração da existência de autorização, ainda que tácita, dos pais em relação aos filhos, configurando o elemento cognitivo e volitivo – não se desconhece aqui as modernas posturas doutrinárias acerca do dolo10. Isto se consubstancia no dolo de permitir, confiar ou entregar a direção de veículo automotor a pessoa não habilitada, caracterizadores dos verbos nucleares de um delito comissivo, o que no caso em comento não restou demonstrado no plano cognitivo dos proprietários do veículo autônomo utilizado pelas adolescentes.

Vale acrescentar que o tráfego é, em si, aquilo que se convencionou socialmente como um risco permitido11. Nessa medida, o fato do veículo ser ou não autônomo não significa um incremento desse risco. Tracejando-se um paralelo da proibição da condução de automotores por menores de 18 anos com o interdito de venda de etílicos a indivíduos abaixo dessa mesma faixa etária, não é o grau de álcool o fator determinante à incriminação, como não o será a espécie de automóvel, capaz de locomover-se autonomamente ou exigindo a direção humana.

Com relação à responsabilidade do programador tratamos no já citado artigo12. Mas, na situação das adolescentes, surge nova dúvida que será objeto de futura abordagem: o garante dividiria ou assumiria tal responsabilidade por eventos danosos? Afinal, o próprio conceito e alcance do crime culposo vem sendo repensado justamente em cenários como esse, de risco permitido13.

___________________

1 Responsabilização penal dos programadores de carros autônomos (self-driving cars): análise das escolhas trágicas sob o prisma do direito penal. In. Direito Penal e processo penal contemporâneos: discussões a partir da Escola Alemã de Ciências Criminais na Universidade de Gottingen. 1. ed. Belo Horizonte, São Paulo: D’Plácido, 2020. pp. 249/281.

2 Meninas percorrem 563 km em carro da Tesla com direção autônoma. Disponível em: clique aqui. Acesso em: 13.4.21.

3 Automated Driving Systems (ADS): Conditional Automation – “Driver is a necessity, but is not required to monitor the envionment. The driver must be ready to take controlo f the vehivle at all time with choices”. In. Automated Vehicles Comprehensive Plan. USDOT Automated Vehicles Activities. Disponível em: clique aqui. Acesso em: 13.4.21.

4 Tesla agora sabe ultrapassar sozinho e dirigir na completa escuridão. Disponível em: clique aqui. Acesso em: 13.4.21.

6 Código de Trânsito Nacional (lei 9.503/97). Art. 310. Permitir, confiar ou entregar a direção de veículo automotor a pessoa não habilitada, com habilitação cassada ou com o direito de dirigir suspenso, ou, ainda, a quem, por seu estado de saúde, física ou mental, ou por embriaguez, não esteja em condições de conduzi-lo com segurança: Penas – detenção, de seis meses a um ano, ou multa.

7 AgRg no REsp 1533052 MG, Rel. Ministro ROGERIO SCHIETTI CRUZ, SEXTA TURMA, julgado em 22/9/15, DJe 13/10/15.

9 Apelação Criminal 0414411-17.2016.8.21.7000/TJRS – Rel. AYMORÉ ROQUE POTTES DE MELLO.

10 GRECO, Luís. Dolo sem vontade (Portugal); VIANA, Eduardo; TEIXEIRA, Adriano. A imputação dolosa no caso do “Racha em Berlim”. Comentários à decisão do Tribunal de Berlim. In: Revista de Estudos Criminais. 73, abr./jun., 2019; Pérez Barberá, Gabriel. “Dolo como indiferencia? Uma discusión com Michael Pawlik  sobre ceguera ante los hechos e ignorancia deliberada” In: Em Letra. Derecho Penal, no prelo.

11 REALE Junior, Miguel, Lições Preliminares de Direito Penal. Rio de Janeiro: Forense, 2012. p.237.

12 Ob. cit.

13 ESTELLITA, Heloisa; LEITE, Alaor. “Há não muito tempo, por exemplo, a dogmática do crime culposo teve de ser parcialmente repensada em face da intensificação do tráfego viário, fenômeno portentoso e, ao mesmo tempo, perigoso”. Ob. cit.

Lucas Andreucci de Veiga
Advogado criminalista. Doutorando em Processo Penal na PUC-SP. Mestre em Direito Penal pela USP

Wagner Flores de Oliveira
Advogado criminalista. Especialista em Direito Penal Empresarial pela PUC-RS.

Eliakin Tatsuo Yokosawa Pires dos Santos
Advogado criminalista. Pós-Graduado em Direito Penal e Direito Processual Penal.

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