A saúde tem destaque na Constituição Federal (CF). É direito social (art. 6o, caput, CF), compõe o leque de variáveis que formam o salário mínimo (inc. IV do art. 7o, CF), o seu cuidado é de competência comum a todos os entes federados (art. 23, CF), sendo concorrente a competência legislativa (inc. XII, art. 24, CF).
Aliás, é causa de intervenção da União nos Estados e no DF a não aplicação do mínimo orçamentário na saúde (art. 34, VI, “e”, CF), bem como dos Estados nos municípios (art. 35, III, CF). A única acumulação permitida para cargos públicos é para profissionais de saúde, nos termos do art. 37, XVI, “c”, da Constituição Federal.
Trata-se de um “direito de todos e dever do Estado” (art. 196, CF). A política de saúde é regionalizada, hierarquizada e constitui um sistema único (art. 198, CF). A lei 8080/90 estabelece que o SUS é o conjunto de ações e serviços prestados por todos órgãos que compõem o sistema (art. 4o da lei 8080/90). A direção é única (art. 9o da lei do SUS e 198, I, CF), mas exercida por órgãos de cada ente federado, sendo o Ministério da Saúde o gestor no âmbito da União (art. 9o, I, lei do SUS).
O art. 16 da mesma lei estabelece que compete a direção nacional do Sistema – Ministério da Saúde – definir e coordenar o sistema de vigilância sanitária (art. 16, III, “d”, lei do SUS) no plano federal.
A lei orgânica do SUS é de 19 de setembro de 1990 e foi elaborada na gestão do Ministro Alceni Guerra (Presidência de Fernando Collor). A norma estabelece claramente que a vigilância sanitária está inserida no campo de atuação do SUS (art. 6o, I), sendo a vigilância sanitária “um conjunto de ações capaz de eliminar, diminuir ou prevenir riscos à saúde e de intervir nos problemas sanitários decorrentes do meio ambiente, da produção e circulação de bens e da prestação de serviços de interesse da saúde” (parágrafo 1o) e que abrange:
I - o controle de bens de consumo que, direta ou indiretamente, se relacionem com a saúde, compreendidas todas as etapas e processos, da produção ao consumo; e
II - o controle da prestação de serviços que se relacionam direta ou indiretamente com a saúde.
Em 1990, ano que foi publicada a lei do SUS, a vigilância sanitária era de competência da Secretaria Nacional de Vigilância Sanitária (SNVS) comandada pelo médico gaúcho Oscar Baldur Shubert. Porém, quase uma década depois, havia um enorme problema acerca da falsificação de medicamentos. O governo (gestão Fernando Henrique Cardoso) foi instado a dar uma resposta a toque de caixa. A solução encontrada foi a criação da ANVISA, que substituiu a SNVS. Uma das criticas à SNVS era de que o Secretário da pasta era trocado de maneira discricionária pelo Ministro da Saúde e o modelo de agencia reguladora resolveria essa questão, uma vez que seus diretores teriam mandato.
Porém, não houve a devida preocupação de como a ANVISA iria integrar o SUS e, assim, o novo modelo de vigilância sanitária foi desenhado sem a necessária inserção da agência ao SUS.
A ANVISA foi criada via Medida Provisória 1791, de 30 de dezembro de 1998, na gestão do Ministro Carlos Cesar de Albuquerque. O governo FHC deslocou o modelo de Estado Provedor - até então vigente - para o de Estado Regulador. Dessa maneira, apostou na criação de agencias reguladoras e a criação ANVISA inseria-se nesse contexto. A MP fora convertida na lei 9782/99. Assim, a vigilância sanitária foi transferida a ANVISA.
Na estrutura do MS ainda há a Secretaria de Vigilância em Saúde, (SVS), responsável pela vigilância, prevenção e controle de doenças transmissíveis, vigilância de fatores de risco para o desenvolvimento de doenças crônicas não transmissíveis, saúde ambiental e do trabalhador e também pela análise de situação de saúde da população brasileira. Mas é a ANVISA a responsável pelo controle sanitário da produção e comercialização de produtos e serviços, bem como o controle de portos, aeroportos e de fronteiras (art. 7o, lei 9782/99).
No plano formal, a lei 9782/99 (lei da ANVISA) não derrogou expressamente a lei 8080/90 (lei do SUS). Porém, a lei da ANVISA criou, para fins de vigilância sanitária, um órgão autônomo ao SUS.
O art. 1o da lei da ANVISA estabelece o Sistema Nacional de Vigilância Sanitária como o realizador das disposições sobre vigilância sanitária da L. 8080/90 (§ 1º do art. 6º e arts. 15 a 18). Dogmaticamente, quanto a este ponto especifico, a lei 9782/99 (lei da ANVISA) tem ares de Decreto regulamentador da lei do SUS. Porém, ao criar a agência, a lei da ANVISA inaugurou um modelo de vigilância sanitário próprio, paralelo, fechado em si mesmo e que não dialoga com o SUS.
Acontece que o art. 200, I e II, da Constituição Federal, estabelece que compete ao SUS:
I - controlar e fiscalizar procedimentos, produtos e substâncias de interesse para a saúde e participar da produção de medicamentos, equipamentos, imunobiológicos, hemoderivados e outros insumos;
II - executar as ações de vigilância sanitária e epidemiológica, bem como as de saúde do trabalhador
Independentemente se é a ANVISA ou outro órgão quem tenha a competência legal para a vigilância sanitária, o fato é que há a necessidade constitucional de que a a vigilância sanitária integre o SUS.
Pela Constituição, o Sistema Nacional de Vigilância Sanitária criado pela lei da ANVISA, deveria ser parte integrante do SUS.
A independência administrativa (parágrafo único, art. 3o,, da lei da ANVISA) tem ares de inconstitucionalidade, uma vez que essa independência afasta a agência do SUS. Por ser uma agência reguladora, o § 2o, do art. 1º, do Decreto 3029/99 (regulamenta a lei 9782/99), estabelece que a ANVISA atuará como entidade administrativa independente. Independência de agências no Brasil real é uma verdadeira soberania, o que afasta mais ainda o modelo regulatório da vigilância sanitária do espírito da Constituição.
O § 6o, do art. 3o, do Decreto, diz que a ANVISA deverá pautar sua atuação observando as diretrizes da lei do SUS, mas no sentido da descentralização, não quanto a hierarquização (art. 198, CF), tanto que o Ministro de Estado da Saúde pode determinar a realização de ações de competência da ANVISA, desde que em casos específicos que impliquem risco à saúde da população. Assim, me parece nítido que o SNVS é, normativamente, paralelo e independente do SUS, em confronto com o dispositivo constitucional.
Uma vez que no Decreto não há qualquer vinculação ao SUS, o Decreto regulamentador da ANVISA criou, em verdade, um novo SUS para questões de vigilância sanitária (o SNVS), tanto que o § 4o, do art. 4o, estabelece que “A Agência poderá regulamentar outros produtos e serviços de interesse para o controle de riscos à saúde da população, alcançados pelo Sistema Nacional de Vigilância Sanitária”.
O Decreto, em verdade, pretendeu revogar a Constituição.
Quanto a autonomia financeira da ANVISA assegurada pelo parágrafo único do art. 3o da lei da ANVISA, apesar de fazer sentido no plano da gestão administrativa, frontalmente os critérios de rateio financeiro do SUS estabelecidos pela Constituição. Em outras palavras: se a ANVISA é SUS (deveria ser de acordo com a Constituição), não pode ter orçamento próprio, autônomo e independente.
Ademais, cabe a lei Complementar dispor sobre o rateio entre os recursos ao SUS (art. 198, § 3º, CF), o que torna a lei da ANVISA formalmente inconstitucional, pois o produto de sua arrecadação por taxas deveria ser rateado mediante disposto em lei complementar e não via lei ordinária, que é o caso da lei da ANVISA.
Quanto a forma de indicação dos membros da diretoria colegiada, isto é, indicação pelo Presidente da República e aprovação pelo Senado, para um mandato de 5 anos (parágrafo único, do art. 10, da lei da ANVISA), tal modelo fere a hierarquia do sistema único (art. 198, CF), uma vez que torna os diretores da ANVISA absolutamente soberanos e desassociados do SUS.
Dessa maneira, a lei criadora e o decreto regulamentados da ANVISA violam o art. 200, I e II, da Constituição Federal.
De tudo, a ANVISA foi criada para um problema pontual (falsificação de medicamentos) em um contexto de mudança de modelo de Estado (Provedor para Regulador), derivada de uma medida provisória, sem maiores discussões sobre seu enquadramento no SUS. O cotidiano burocrático foi se sedimentando sem que houvesse o devido enquadramento da agência ao SUS, o que acabou acostumando o sistema quanto a esse estado de inconstitucionalidade.
Não há enfrentamento no Supremo Tribunal Federal, nesse viés, dos incisos I e II, do art. 200, da Constituição, tampouco há debate maduro sobre o modo de como o SNVS deve ser atrelado ao SUS.
Os ataques de toda ordem ao SUS ajudaram a “empurrada para debaixo do tapete” dessa questão da ANVISA. Porém, com o fortalecimento da imagem do SUS nesse período de pandemia de covid-19, é necessário reviver a problemática da inconstitucionalidade da separação, autonomia e independência da ANVISA do SUS.