Contam os historiadores que o evento conhecido como a “queima de livros e sepultamento de intelectuais” ocorreu durante a dinastia Qin (Chin) da China antiga, no período que abarca de 213 a 206 a.C., aproximadamente. Durante este período, todas as cem escolas de pensamento foram perseguidas.
Centenas de anos depois, no auge da idade média, era a religião que determinava os livros que poderiam ou não ser lidos pelo povo. Naquela época os livros classificados como “hereges” eram levados ao fogo e queimados como forma de bloquear o conhecimento da população. Umberto Eco, na obra O nome da Rosa retrata, de modo magistral, a história de um mosteiro beneditino do século XIV em que ocorriam diversas mortes misteriosas, até que no desenrolar da história, se descobre que a origem de todo o mistério daquelas mortes ocorria porque as páginas dos livros ditos “proibidos” haviam sido envenenadas pelos monges que controlavam a abadia.
Mais adiante, durante a época do nazismo na Alemanha, o Bücherverbrennung (queima de livros), é associado à ação propagandística dos nazistas de 1933 que ocorreu poucos meses depois da chegada de Adolf Hitler ao poder. Em várias cidades alemãs, foram organizadas, nesta data, queimas de livros em praças públicas, com a presença da polícia, bombeiros e outras autoridades. Tudo aquilo que fosse crítico ou desviasse dos padrões impostos pelo regime nazista foi totalmente destruído. Centenas de milhares de livros foram queimados, a maioria dos quais pertencentes às bibliotecas públicas, de autores oficialmente tidos como "não alemães" (undeutsch).
Ao longo da história, também foi possível observar a utilização de outros mecanismos que restringiam o acesso à informação. Nessa toada, cumpre relembrar que o próprio Direito Autoral tem em suas origens uma forma de censurar o acesso ao conhecimento (ainda que hodiernamente tenha seu escopo conceitual completamente modificado). A igreja, que antigamente era a controladora do fluxo das informações, foi fortemente impactada pela criação de Johannes Gutenberg (Século XV), ao estruturar o processo de impressão com tipos móveis de metal e deu ensejo ao barateamento de livros1. Isso fez com que, a Igreja motivasse a promulgação de lei na França com o intuito de controlar publicações de João Calvino em 13 de janeiro de 1535. A referida lei determinava o fechamento de todas as gráficas e decretava a pena de morte para quem fosse encontrado usando uma prensa. Porém, a investida veio a se tornar ineficaz posteriormente por conta do contrabando de livros impressos fora do país.
Conhecedora do fracasso francês em tentar controlar o que estava sendo impresso, a rainha da Inglaterra, Maria I (Bloody Mary), procurou uma solução que beneficiaria as gráficas para obter sua cumplicidade. Foi então desenvolvido um sistema de monopólio, por meio do qual a Liga de Livreiros de Londres, a Worshipful Company of Stationers and Newspaper Makers, teria o monopólio de todo o material impresso no reino, em contrapartida à aceitação da censura prévia, por parte da coroa, sobre o que seria impresso. entre os interesses do governo e da corporação se mostrou eficaz no combate à liberdade de expressão e na supressão de divergências político-religiosas. O monopólio foi concedido à Liga de Livreiros de Londres em 4 de maio de 1557, e foi cunhado de copyright2, de modo que modelo foi amplamente bem-sucedido como um instrumento de censura até o surgimento daquela que seria considerada a primeira lei de direito autoral no mundo, do Statute of Anne de 1709.
Mas, nos dias de hoje, será que ainda há espaço para a censura em pleno século XXI? Quais os interesses subjacentes? Como ela ocorre no Brasil?
De plano, cabe ressaltar que após nossa civilização ter passado por diversas revoluções sanguinárias ao longo da história da humanidade que culminaram com a Segunda Guerra Mundial, e depois de ter assistido aos horrores do holocausto, percebe-se que não é mais admissível (ou até mesmo tragável) que se queimem bibliotecas inteiras, que se envenenem pessoas por lerem aquilo que não deveriam, que se decrete pena de morte ou que seja admitida uma censura escancarada através do monopólio.
Nesse sentido, os negacionistas podem até se apressar para dizer que não há mais qualquer tipo de censura no Brasil ou no mundo porque esses eventos mais extremados (e consequentemente mais fáceis de se enxergar) não acontecem mais. Da mesma forma que afirmam categoricamente não haver mais espaço para o fascismo, racismo, nazismo e os demais “ismos”.
Mas infelizmente o mundo não é tão cor de rosa assim, ele é cinza.
A censura, hoje, ocorre de modo muito mais sutil do que antigamente, apesar do interesse pelo controle ideológico e do discurso ainda fazerem parte da conveniência daqueles que detém o poder. Com a diferença de que o “controle” dessa informação é ainda muito mais perverso do ponto de vista psicológico.
Para começar, vivemos hoje em uma sociedade em que a informação se tornou uma ferramenta essencial para o desenvolvimento pessoal e coletivo do ser humano. E, por conseguinte, desempenha um papel cada vez mais central na nossa vida social, cultural e política.
A atual sociedade da informação é uma sociedade em que o uso, a criação, a distribuição, a manipulação e a integração da informação são indispensáveis. Os seus principais motores são as tecnologias de informação e comunicação (TICs), que resultaram em uma explosão da variedade da informação e de alguma forma estão mudando todos os aspectos da organização social, incluindo educação, economia, saúde, governo, guerra e níveis de democracia.
Não é por outro motivo que os dados são considerados o ativo mais importante da nossa civilização contemporânea. Como bem resume Yuval Noah Harari3:
“Antigamente a terra era o ativo mais importante do mundo, a política era o esforço por controlar a terra, e se muitas terras acabassem se concentrando em poucas mãos – a sociedade se dividia em aristocratas e pessoas comuns. Na era moderna, máquinas e fábricas tornaram-se mais importantes que a terra, e os esforços políticos focam nesse meio de produção. Se um número excessivo de fábricas se concentrasse em poucas mãos – a sociedade se dividiria entre capitalistas e proletários. Contudo, no século XXI, os dados vão suplantar tanto a terra quanto a maquinaria como o ativo mais importante, e a política será o esforço por controlar o fluxo de dados. Se os dados se concentrarem em muito poucas mãos, o gênero humano se dividirá em espécies diferentes.
A partir dessa premissa, advém mais um outro questionamento: se hoje os dados são muito mais “valiosos” e de muito mais fácil acesso do que eram antes, qual é o ponto de inflexão para que haja um “cuidado maior” com certos tipos de informação em sociedades ditas democratas que adotam o mantra da transparência pública e da liberdade de expressão?
Em primeiro lugar, o aumento exponencial da internet, advinda da revolução tecnológica, transformou o cidadão comum (antes sujeito passivo da notícia) em agente ativo na produção de conteúdo e dados na internet. Noutro giro, essa imensa capacidade de produção de conteúdo por parte dos internautas, obviamente, extrapolou a de verificação da informação (fact check).
Portanto, em meio a produção massiva de informações oriundas das mais diversas fontes, ficou evidenciada a incapacidade de se realizar um controle qualitativo dessas mensagens. O que denota um grande abismo que diferencia as informações de qualidade daquela massa de informações difusas na rede. Portanto, apesar da massa de dados ser de fácil acesso pela internet, a grande virada de chave está justamente na qualidade da informação.
Em segundo lugar, existem as informações governamentais e corporativas as quais o cidadão comum não tem acesso imediato, mas que não deixam de ser públicas, tal como ocorre com as questões que envolvem benefícios fiscais. Obviamente que aqui não se trata das informações sigilosas as quais são submetidas a temporariamente à restrição de acesso público em razão de sua imprescindibilidade para a segurança da sociedade e do Estado, tal como disposto no art. 4º, III da lei 12.527/11.
Frise-se que é imperiosa a necessidade de se garantir o exercício do controle social sobre recursos públicos transferidos ao setor privado (gastos indiretos do Estado) e o interesse maior de prevenção e combate à corrupção justificam que seja dada transparência em relação aos benefícios fiscais concedidos. Cumpre observar que a publicidade dada aos valores que deixam de ser arrecadados por meio de incentivos ou benefícios tributários que implicam em renúncia fiscal, além de contribuir para a gestão eficiente dos recursos públicos, é imprescindível para que haja controle social sobre a eficiência oriunda de tal prática, o que se coaduna com a transparência que um Estado Democrático de Direito deve almejar.
Em terceiro lugar, a censura não ocorre somente com a ocultação de dados governamentais e/ou corporativos. Mas também ocorre no espectro da liberdade de expressão, pois não são somente os livros que podem conter informações e/ou ideologias indesejadas. O audiovisual (leia-se obras cinematográficas e/ou vide fonográficas) e a música também veículos comumente censurados em períodos obscuros da nossa história. Uma das canções mais relacionadas ao tema é Apesar de Você, censurada logo depois do seu lançamento, em 1970. Nela, Chico Buarque de Hollanda trazia a ideia de um futuro diferente, sem a repressão do regime militar.
E agora cabe a resposta para a última questão que ainda não foi enfrentada ao longo do texto: como a censura ocorre hoje no Brasil?
Uma ferramenta usualmente utilizada pelo Estado contemporâneo é excesso na utilização de tipos penais incriminadores. Ao invés de ser entendido através do princípio norteador da última ratio, o direito penal vira quase que uma “única ratio”. De maneira que há um enquadramento excessivo nos tipos penais correlatos dos crimes contra a honra (injúria, calúnia e difamação), violação de sigilo funcional (para servidores públicos que acessam documentos que contém informações governamentais e corporativas as quais o cidadão comum não tem acesso imediato, mas que não perdem a sua natureza pública) e supostos crimes contra a segurança nacional, com base na lei 7.170/83.
Assim, sob o famoso mantra da impunidade cria-se o Estado punitivista, no qual a imprensa se encarrega de pré-julgar e pré-condenar o acusado antes mesmo de se defender judicialmente. E isso ocorre porque um dos efeitos do excesso de informação é a “corrida” para ser o primeiro a dar a notícia. Já não se trata mais de buscar a verdade. Não importa quem magoe ou destrua. O que importa mesmo é ser o primeiro!
Portanto, o problema não é somente a tipificação penal, mas é a execração pública. Ainda que os réus de tamanha injustiça sejam absolvidos, o estrago já foi feito. É o castigo que deixa de ferir o corpo e passa a ferir a alma e a sua imagem. Nesse sentido, alertava Michel Foucault em Vigiar e Punir4:
Se não é mais ao corpo que se dirige a punição, em suas formas mais duras, sobre o que, então, se exerce? A resposta dos teóricos — daqueles que abriram, por volta de 1780, o período que ainda não se encerrou — é simples, quase evidente. Dir-se-ia inscrita na própria indagação. Pois não é mais o corpo, é a alma. À expiação que tripudia sobre o corpo deve suceder um castigo que atue, profundamente, sobre o coração, o intelecto, a vontade, as disposições.
Nesse diapasão, não é demais lembrar o desastre que um juiz suspeito ou um procurador podem fazer com um réu que não teve direito ao devido processo legal (aquela mera filigrana jurídica).
Já no que tange a questão cultural que envolve as obras musicais e audiovisuais, há um verdadeiro estrangulamento dos mecanismos de incentivo à cultura. Assim, com a justificativa do combate à corrupção (com narrativa bastante semelhante à da guerra ao terrorismo), é determinada uma paralisação completa no fomento público às obras, gerando uma defasagem e um empobrecimento cultural sem precedentes.
Ora, é evidente que se deve combater os casos pontuais de fraudes e de corrupção, mas isso jamais pode fundamentar a paralisação completa de um setor sob pena de acarretar na falência de empresas e um desemprego estrutural. Mas não é preciso dizer que não se deve arrancar um braço para curar um ferimento nos dedos.
Finalmente, para aclarar a escuridão, cabe reproduzir os dizeres de Chico Buarque de Hollanda: “apesar de você, amanhã há de ser outro dia” ...
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1. VIEIRA, Alexandre Pires. Direito Autoral na Sociedade Digital. Ed. Montecristo Editora. Edição do Kindle. p.19.
2. Idem. p.23.
3. HARARI, Yuval, 21 Lições para o Século 21, São Paulo, Companhia das Letras, 2018. p. 107.
4. Foucault, Michel. Vigiar e punir: nascimento da prisão; tradução de Raquel. Ramalhete. Petrópolis, Ed. Vozes, 1987. p. 64.