A adoção do ENEM (Exame Nacional do Ensino Médio), em 2009, como porta de entrada para o ensino superior substituiu o tradicional vestibular em quase todas as universidades públicas do país. A prova, aplicada em todo o território nacional, contribuiu para aumentar a integração regional e tornar as Universidades públicas, estaduais ou federais, realmente nacionais.
Por meio da criação da plataforma SISU (Sistema de Seleção Unificado), o estudante pode, com a sua nota obtida no ENEM, concorrer às vagas disponibilizadas pelas universidades públicas no sistema, independentemente de haver realizado o vestibular específico da universidade. A partir de então, um jovem de Rio Branco, no Acre, poderia realizar o ENEM em sua cidade e concorrer, posteriormente, às vagas disponibilizadas pela Universidade de São Paulo no SISU, sem ter que se deslocar para São Paulo para prestar o tradicional processo seletivo.
O resultado da política foi excelente, haja vista que houve um grande aumento de integração regional. Passou a existir, a partir de então, um grande intercâmbio cultural, já que as universidades públicas passaram a conter não somente alunos da cidade, como também de muitos outros estados. Além disso, evitou-se a tão famosa prática de Universidades em estados vizinhos marcarem o vestibular em datas coincidentes, de modo a eliminar a concorrência externa de antemão.
Mas não somente isso: a expertise do Ministério da Educação passou a ser utilizada no ingresso ao ensino superior, e diversas universidades que não possuíam condições de organizar vestibulares por falta de recursos puderam lidar facilmente com esse problema. A seleção, a partir daquele ano, passou a ser de fato unificada, assim como já é realizada em países desenvolvidos como os Estados Unidos, que usa o exame SAT, e a França, que utiliza o exame BAC.
Em que pese o sucesso da política, esta foi resultado de reação por parte de diversas universidades públicas. A concorrência, ao ser agora nacional, gerou o aumento das notas de corte em diversos cursos, especificamente em Medicina. Tal cenário ensejou a mobilização de diversos grupos reacionários, sobretudo de donos de escolas particulares e de cursos preparatórios para o ENEM, que buscaram a adoção de medidas para que fosse obstado o acesso aos jovens de fora do Estado às universidades.
Em diversos casos, ao reportar que passou a existir uma elevada ocupação de estudantes de regiões adjacentes, isto é, “estrangeiros da terra”, houve a adoção de “políticas de inclusão regional” por parte de diversas Universidades públicas com o fito de, segundo essas, aumentar a participação de alunos da região.
Apesar da ausência de Legislação que autorize a criação de políticas de inclusão regional, ou na linguagem popular, “cotas regionais”, no âmbito do Direito as Universidades se baseiam na lei 12.711/12 para respaldar a medida. Esta, comumente conhecida como “lei de Cotas”, foi um dispositivo criado para reparar as desigualdades históricas tão presentes no tempo. Por meio da reserva de pelo menos 50% das vagas disponibilizadas pelas universidades públicas, aumentou-se a possibilidade de acesso a jovens pretos, pobres ou deficientes, oriundos de Escola Pública.
Acontece que, no dispositivo legal, o legislador tem sua finalidade cristalina: trata-se de uma norma para favorecer grupos socialmente excluídos e que, de fato, necessitam de uma medida que lhes torne materialmente iguais. Assim, criam-se vagas específicas destinadas para esses grupos, que passam a concorrer entre si.
No final, o saldo da lei de Cotas é muito positivo, uma vez que se aumenta a diversidade socioeconômica do corpo discente, e a universidade pública, que algum dia foi privilégio de jovens brancos de classes abastadas, também passa a ter grupos socialmente excluídos em suas carteiras.
No caso concreto, no entanto, não se verifica nada disso. Não há nenhuma reparação sendo feita, como a lei prevê, nem, tampouco a reserva de vagas aos grupos erigidos, isto é, pretos, pobres e pessoas com deficiência.
Por definição, as ações afirmativas surgem para tornar equânimes as disputas entre desiguais, observando o Princípio Constitucional da Igualdade, que ordena tratar os desiguais na exata medida de suas desigualdades. No caso da Lei de Cotas, como já mencionado, abre-se mão da igualdade formal, entre todos, para obter a igualdade material entre grupos historicamente prejudicados.
De maneira quase contraditória, a lei de Cotas aqui é manuseada com a finalidade de beneficiar um grupo heterogêneo e que, por via de regra, é composto por estudantes de escolas particulares, já agraciados com boas condições materiais de educação e de desenvolvimento humano. Não há razão para que estudantes, já privilegiados, sejam tratados de maneira diferencial pelo simples fato de serem provenientes do Estado da Universidade pública.
Além disso, faz-se importante pontuar, que toda a dinâmica de reserva de vagas por modalidade do sistema de seleção se vê comprometida, já que há duas categorias de candidatos concorrendo às mesmas vagas da ampla concorrência: os candidatos “normais” e os “supercandidatos”, que ganham um acréscimo na nota que varia de 10% a 20%.
Não há, dessa forma, a destinação específica de um percentual de vagas aos candidatos da política de ação afirmativa regional, mas sim um cenário no qual, dentro das vagas da ampla concorrência, isto é, os alunos que não são cotistas, todos os candidatos podem ser oriundos do bônus. E, na prática, é exatamente isso que ocorre, tendo em vista que, nos cursos mais concorridos, a exemplo de Medicina, poucos décimos contam para aprovação.
De maneira análoga, é possível imaginar uma prova de Atletismo, de 100m rasos, entre atletas de todos os Estados da Federação. Acontece que, nessa prova, diferentemente da dinâmica convencional, os candidatos de Pernambuco, por exemplo, já iniciam a prova muito na frente, como se apenas tivessem de percorrer 50m dos 100m inicialmente acordados. Constitui-se um cenário no qual, por melhores que sejam os competidores da Paraíba ou de São Paulo, jamais conseguirão alcançar o pódio. O bônus compõe uma diferença intransponível.
É importante lembrar a máxima do filósofo Edmund Burke: “Quem não conhece a história está fadada a repeti-la”, que aqui nunca fez tanto sentido. Esforços como esse, para evitar que alunos de fora do Estado estudem nas universidades, encontram paralelo na dinâmica das legislações antissemitas da Europa no início do século XX. A adoção de “numerus clausus”, isto é, um número máximo de ocupação, nas universidades europeias, serviu para limitar ou até mesmo impedir os judeus de ingressarem no ensino superior da época.
Sob o prisma jurídico, a questão do “bônus regional” já foi objeto de diversas contendas na Justiça, por meio da impetração de Mandados de Segurança, pelas partes individuais, e de Ações Civis Públicas, pelo MPF e pela DPU. Em diversas Universidades, a exemplo da UFSC, em Santa Catarina, da Unipampa, no Rio Grande do Sul e na UFF, no Rio de Janeiro, o Poder Judiciário entendeu como ilegal a medida, e coibiu efetivamente a prática.
Com a manutenção da prática, que segue em alta, haja vista a contínua adoção de cada vez mais universidades, haverá um enorme prejuízo à sociedade como um todo. Essas instituições, criadas para serem ilhas do saber, onde seria possível congregar conhecimentos de origem diversas, com o fito de desenvolver a região e o país como um todo, agora serão destinadas somente aos estudantes do Estado. Toda a dinâmica do SISU, em consonância com as diretrizes do Ministério da Educação, visando a maior integração regional e nacional, ver-se-á destruída por essa política.
Uma política pública que almeja buscar o desenvolvimento regional jamais pode lançar mão de práticas xenófobas, de exclusão deliberada de candidatos de outros Estados da Federação, como a que aqui se verificam.
O Poder Judiciário e a Sociedade Civil não podem fechar os olhos ante essa terrível prática, que possui o condão de macular toda a unidade do sistema de ensino superior e gerar rompantes de discriminação e preconceito totalmente indesejáveis pela sociedade brasileira.
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