Migalhas de Peso

Importância da educação inclusiva para as pessoas autistas e o decreto 10.502/20 em debate no STF

As pessoas autistas, em específico, e as pessoas com deficiência, em geral, constituem sujeitos de direitos e devem ser beneficiários de políticas públicas voltadas à remoção de barreiras e oferta de oportunidades em todas as esferas da vida.

14/4/2021

(Imagem: Arte Migalhas)

Em 2 de abril comemora-se o Dia Mundial da Conscientização do Autismo, data definida pelas Nações Unidas, em 2007, com o objetivo de trazer discussões e esclarecimentos a respeito da pessoa autista. Autismo é uma condição da “neurodiversidade” humana. A expressão “espectro”, agregada em 2013, reconhece a amplitude de manifestações diversas dentro do autismo.

A lei 12.764/12 no Brasil trata da Política Nacional de Proteção aos Direitos da Pessoa com Transtorno do Espectro Autista. Para todos os efeitos legais, a pessoa autista é considerada pessoa com deficiência o que, no Brasil, tem peso constitucional, por força da ratificação da Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência da ONU. É que o tratado de direitos humanos foi incorporado ao ordenamento jurídico brasileiro com equivalência constitucional em 2009, nos termos da emenda constitucional 45/04.

O novo paradigma define pessoas com deficiência como “aquelas que têm impedimentos de longo prazo de natureza física, mental, intelectual ou sensorial, os quais, em interação com diversas barreiras, podem obstruir sua participação plena e efetiva na sociedade em igualdades de condições com as demais pessoas”. Reconhece que a deficiência é resultante da limitação funcional da pessoa versus o ambiente onde ela está inserida, na ótica do modelo social de direitos humanos.

Pela Convenção, não é a condição funcional do corpo que limita, mas a experiência deste corpo em interação com os demais. Os obstáculos à participação na vida em sociedade em igualdade de condições com as demais pessoas são produzidos pelo ambiente externo, que pode criar barreiras que agravam as limitações ou eliminar barreiras para possibilitar caminhos e garantir inclusão. 

As pessoas autistas, em específico, e as pessoas com deficiência, em geral, são sujeitos de direitos e devem ser beneficiários de políticas públicas voltadas à remoção de barreiras e oferta de oportunidades em todas as esferas da vida, seja na educação, no trabalho, na saúde, na promoção de sua autonomia e da vida independente.

Nesse contexto de titulares do direito à educação inclusiva constitucionalmente prevista, têm direito de acesso e permanência na escola. A diversidade e as múltiplas formas de ser e de estar no mundo demandam medidas diversificadas para a efetividade da inclusão escolar. Como apoio ao processo, e na perspectiva da educação inclusiva, há o Atendimento Educacional Especializado (AEE), previsto no art. 208, III da Constituição Federal, como ferramenta importante para a inclusão escolar e social da pessoa com deficiência, essencial para o desenvolvimento da criança com deficiência em diferentes aspectos da vida.

Para crianças autistas, por exemplo, é preciso que haja, entre outras medidas, um diálogo sobre a adaptação curricular, além de diagnóstico e ações para remoção de barreiras arquitetônicas para aqueles com dificuldades de locomoção, de barreiras sensoriais para os que têm dificuldades na comunicação social e precisam de apoio para lidar com sobrecarga psicossocial e, principalmente, de barreiras atitudinais que, no geral, impactam todas as pessoas com deficiência. Adaptações e tecnologias assistivas devem ser utilizadas no processo educativo para garantir a acessibilidade necessária como um direito ponte para o exercício do direito à educação pelas crianças e adolescentes autistas, dentro da escola comum, no ensino regular, em caráter complementar, em igualdade de oportunidades com os demais. 

Em sentido contrário ao extenso arcabouço jurídico a respeito da educação inclusiva, em outubro passado o governo federal editou o decreto 10.502/20 para instituir uma nova Política Nacional de Educação Especial no país. Esta proposta, com a alegação de que há pessoas com deficiência que podem não se beneficiar de um sistema educacional inclusivo e que deveriam ser escolarizadas em salas apartadas dos demais alunos ou em escolas especiais direcionadas apenas para alunos com deficiência, acabaria por induzir matrículas em escolas especiais ao invés da escola de ensino regular. A pedido do Instituto Alana, elaboramos parecer sobre o tema que analisou diversos argumentos e, ao final, concluiu pela inconstitucionalidade do ato normativo1

De fato, já houve um tempo em que segregar e excluir era legalmente permitido, acreditando-se que essa separação de crianças e adolescentes com deficiência daqueles sem deficiência seria uma solução benéfica para a sociedade. Mas contra esta discriminação se lutou e hoje a segregação de alunos com deficiência é patentemente vedada pelo ordenamento jurídico brasileiro, pela Convenção sobre os Direitos da Pessoa com Deficiência da ONU, pelas previsões da Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência – lei 13.146/15 - e por todas as demais normas que a preconizam como discriminação por motivo de deficiência.

Há nítida incongruência entre o texto do decreto 10.502/20 e o tratado de direitos humanos ratificado no país. Além do artigo 24 da Convenção ser cristalino no sentido de que o sistema educacional deve ser inclusivo em todos os níveis, importa registrar que, no plano internacional, sua interpretação tem sido sistematizada pelo Comitê da Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, responsável pelo monitoramento da implementação dos direitos previstos no tratado. Em 2016, observando o cumprimento do dispositivo, o Comitê emitiu o comentário geral 4 para todos os países signatários acerca da educação inclusiva, reiterando de maneira inequívoca que práticas de inclusão não admitem segregação, caracterizada “quando a educação de estudantes com deficiência é oferecida em ambientes separados, concebidos ou usados para atender a uma determinada ou várias deficiências, isolados de estudantes sem deficiência”. É exatamente o que não pode que se pretendia. 

Por violar a Constituição Federal de 1988 e a Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, após a edição do decreto 10.502/20, duas ações judiciais foram interpostas no Supremo Tribunal Federal: a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental - ADPF 751/DF, pelo Partido Rede Sustentabilidade; e a Ação Direta de Inconstitucionalidade - ADIn 6.590/DF, pelo Partido Socialista Brasileiro.

Com o intuito de apoiar o julgamento com relevantes subsídios em defesa da educação inclusiva, 25 organizações de direitos de pessoas com deficiência, educação, direitos humanos e direitos da infância, com visões e atuações complementares, solicitaram a condição de amicus curiae ou “amigo da corte” junto a Suprema Corte, incluindo a ABRAÇA - Associação Brasileira para Ação por Direitos das Pessoas Autistas. A maioria delas faz parte da Coalizão Brasileira pela Educação Inclusiva, que congrega mais de 45 instituições entre organizações da sociedade civil, coletivos e redes representativas que se uniram para somar forças e intercambiar informações para esse litígio estratégico.

Nos autos da ADIn 6.590, monocrática e acertadamente foi concedida liminar pelo ministro do DIAS TOFOLLI, relator da ação. Em 18 de dezembro de 2021, o julgamento da liminar foi finalizado no plenário virtual do STF que referendou a decisão por 9 a 2 votos. Desde então, o decreto 10.502/20 está com seus efeitos suspensos. Aguarda-se do relator no momento a aceitação de todos os amici pleiteados para que o julgamento de mérito desta ação tenha a maior densidade possível e acolha essas contribuições e experiências representativas de instituições relevantes e atuantes em âmbito nacional e no sistema internacional de direitos humanos.

No mérito, espera-se que o STF reafirme, como ocorreu em 2015 no julgamento da ADIn 5.357/DF que discutia a constitucionalidade do § 1º do artigo 28 e artigo 30, caput, da Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência, o compromisso inegociável da nossa Constituição com a educação inclusiva. Desta jurisprudência, sublinhe-se a racionalidade lírica da questão exarada em trecho de voto do ministro EDSON FACHIN: “o enclausuramento em face do diferente furta o colorido da vivência cotidiana, privando-nos da estupefação diante do que se coloca como novo, como diferente. É somente com o convívio com a diferença e com o seu necessário acolhimento que pode haver a construção de uma sociedade livre, justa e solidária”.

Para que o convívio com a diferença e a inclusão de fato aconteça em sala de aula na escola regular é preciso investimentos na educação de qualidade com os apoios necessários. Ir simplesmente contra esta conquista com alicerces tão duramente construídos ao longo dos últimos 30 anos é uma perda sem tamanho para milhões de pessoas autistas e pessoas com deficiência em geral.

O Brasil é um exemplo para o mundo em termos de práticas, legislação e políticas públicas de inclusão. Não se pode admitir que a referência se inverta. Caminhos terão que ser construídos para conciliar os desafios existentes e permitir que se continue avançando, ouvindo e dialogando com a sociedade. Políticas segregadoras e normas que imponham modelos separatistas no campo educacional não encontram amparo em nosso ordenamento. A regra é clara: educação só pode ser inclusiva.

Que o espírito do novo mandamento constitucional trazido pela Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência - primeiro tratado de direitos humanos do século XXI - prevaleça nessa disputa no Supremo Tribunal Federal. Em matéria de direitos não se pode retroceder, nem transigir.

_________

1 LOPES, Laís de Figueirêdo.; REICHER, Stella Camlot. Parecer Jurídico – Análise do Decreto nº 10.502/2020 – Instituição da Política Nacional de Educação Especial – Avaliação sobre Retrocessos no Ordenamento Jurídico. São Paulo: Instituto ALANA, 2020. p. 1-83.

Laís de Figueirêdo Lopes
Doutoranda em Direito pela Universidade de Coimbra, em Portugal. Sócia do escritório Szazi, Bechara, Storto, Reicher e Figueirêdo Lopes Advogados. Foi assessora especial do ministro da Secretaria de Governo da presidência da República, de 2011 a 2016, tendo participado ativamente da elaboração da lei 13.019/14, do decreto 8.726/16.

Stella Camlot Reicher
Sócia do escritório Szazi, Bechara, Storto, Reicher e Figueirêdo Lopes Advogados. Mestre em Direitos Humanos pela USP. Participou da elaboração do relatório da sociedade civil brasileira para o Comitê da ONU de Monitoramento da Convenção em 2015.

Vinicius Fidelis Costa
Colaborador do escritório Szazi, Bechara, Storto, Reicher e Figueirêdo Lopes Advogados. Coordenador Adjunto do Núcleo São Paulo da ABRAÇA - Associação Brasileira para Ação por Direitos das Pessoas Autistas.

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