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Nova lei de licitações: Em meio ao espírito punitivista, uma abolitio criminis

No que se refere ao preceito primário dos dispositivos penais, a nova lei, em sua maior parte, operou continuidade normativo-típica.

13/4/2021

Foi promulgada a nova Lei de Licitações e Contratos Administrativos — lei 14.133, de 2021. O inciso I do art. 190 da nova Lei determinou a revogação dos crimes previstos nos arts. 89 a 108 da lei 8.666, de 1993, e introduziu dentro do rol dos "Crimes Contra a Administração Pública" o Capítulo II-B intitulado “Dos crimes em licitações e contratos administrativos”. Assim, na nova Lei de Licitações e Contratos Administrativos não há mais previsões específicas quanto a crimes licitatórios, tal como dispunha a Lei n.º 8.666.

Foram inseridos onze tipos no Código Penal — arts. 337-E a 337-O —, mas apenas o último é novo tipo penal incriminador ("omissão grave de dado ou de informação por projetista"). Em relação às condutas que já eram criminalizadas pela Lei n.º 8.666 — arts. 337-E a 337-N —, a maioria sofreu modificações no preceito secundário, com o aumento das penas cominadas e alteração do regime de detenção para reclusão (novatio legis in pejus). Aliás, o crime de violação de sigilo em licitação (art. 337-J, CP) foi o único que manteve integralmente o preceito secundário da antiga redação, prevista na Lei n.º 8.666.

No que se refere ao preceito primário dos dispositivos penais, a nova lei, em sua maior parte, operou continuidade normativo-típica1, com a manutenção da incriminação das condutas criminalizadas pela lei 8.666. Consequentemente, permanece hígida a persecução penal dos fatos cometidos antes da vigência desses novos (já conhecidos) tipos penais.

A exceção ficou por conta do art. 337-E do Código Penal (“contratação direta ilegal”), que reproduziu apenas parcialmente a redação do art. 89 da lei 8.666 e, assim, opera-se a abolitio criminis da conduta de “deixar de observar as formalidades pertinentes à dispensa ou à inexigibilidade”.

Observe-se que o art. 89 da lei 8.666 criminalizava as condutas de “dispensar ou inexigir licitação fora das hipóteses previstas em lei, ou deixar de observar as formalidades pertinentes à dispensa ou à inexigibilidade”. Repare-se que o novo art. 337-E, introduzido no CP pela lei 14.133, criminaliza a conduta de “admitir, possibilitar ou dar causa à contratação direta fora das hipóteses previstas em lei”. O legislador, claramente, deixou de fora uma das condutas criminalizadas pelo revogado art. 89:

Art. 89.  Dispensar ou inexigir licitação fora das hipóteses previstas em lei, ou deixar de observar as formalidades pertinentes à dispensa ou à inexigibilidade:

Pena - detenção, de 3 (três) a 5 (cinco) anos, e multa.

Parágrafo único.  Na mesma pena incorre aquele que, tendo comprovadamente concorrido para a consumação da ilegalidade, beneficiou-se da dispensa ou inexigibilidade ilegal, para celebrar contrato com o Poder Público.

Art. 337-E. Admitir, possibilitar ou dar causa à contratação direta fora das hipóteses previstas em lei:

Pena – reclusão, de 4 (quatro) a 8 (oito) anos, e multa.

 

Para ficar ainda mais claro, sublinha-se que o art. 89 da lei 8.666 veiculava três tipos penais mistos alternativos, de ação múltipla ou de conteúdo variado (aquele em que a prática simultânea/sucessiva de mais de uma conduta configura crime único): (i) “dispensar”, (ii) “inexigir” licitação fora das hipóteses previstas em lei ou (iii) “deixar de observar as formalidades” a ela pertinentes2. A incriminação destas condutas foi mantida em sua maior parte no art. 337-E do CP.

Houve, porém, a abolitio criminis quanto à conduta omissiva própria de “deixar de observar as formalidades pertinentes à dispensa ou à inexigibilidade”. Disso decorre a incidência retroativa do art. 337-E do CP — na parte que descriminalizou a conduta — mesmo aos processos judiciais com sentença transitada em julgado, conforme determina o parágrafo único do art. 2.º do CP.

Frise-se que, em relação à conduta descrita na segunda parte do art. 89 da lei 8.666 não houve continuidade normativo-típica, tal como nos demais crimes em licitações agora previstos no CP. Isso porque, na vigência da lei 8.666, o tipo penal abolido incidia justamente quando se tratasse de uma situação que autorizaria a dispensa ou inexigibilidade de licitação, mas ao fazê-la o servidor público descumpria algum dos preceitos normativos previstos na lei de regência para proceder essa dispensa ou essa inexigibilidade3.

Vale dizer, aquele que deixa de observar as formalidades relativas à dispensa ou inexigibilidade de licitação não pratica a conduta de contratação direta ilegal. Assim, “deixar de observar as formalidades pertinentes à dispensa ou à inexigibilidade” não se amolda aos preceitos veiculados no novo art. 337-E - “admitir, possibilitar ou dar causa à contratação direta fora das hipóteses previstas em lei”. Deste modo, não é possível sustentar a manutenção da criminalização da conduta prevista no art. 89 da lei 8.666 pelo novo art. 337-E do CP.

Essa mudança em benefício do acusado é surpreendente se cotejada com o maior rigor empregado pela nova lei aos crimes em licitações de um modo geral. Repisa-se que nove das dez condutas que já eram criminalizadas pela lei 8.666 sofreram novatio legis in pejus, tendo suas penas aumentadas e/ou alterado o seu regime de detenção para reclusão.

À vista disso, embora a abolitio criminis da modalidade prevista na segunda parte do art. 89 da lei destoe do espírito punitivista que permeia as alterações promovidas nos dispositivos penais pela lei 14.133, a doutrina já há algum tempo posiciona-se pela inconstitucionalidade da criminalização4 ou mesmo pela irrelevância penal da conduta em questão5.

Mesmo no âmbito legislativo, a Comissão de Juristas destinada à elaboração do Anteprojeto de Código Penal no Senado - composta por Luiz Flávio Gomes e Luiz Carlos Gonçalves, sob a presidência de Gilson Dipp - também já debatia em 2012 sobre a necessidade de se estabelecer a desnecessidade de pena em relação à conduta de “deixar de observar as formalidades pertinentes à dispensa ou à inexigibilidade"6.

Natural que aventassem a desnecessidade de aplicação de pena ao agente público que praticasse essa conduta. Tomada a “higidez” da Administração Pública como bem jurídico tutelado pelo art. 89 da lei 8.666, o delito era classificado como de perigo abstrato7. Ao inexigir ou dispensar licitação quando a lei a impõe, o gestor público pratica uma ação que coloca em perigo a lisura e transparência na contratação pública que, se tivesse sido realizada por meio do procedimento licitatório tal como legalmente imposto, permitiria a ampla competição e a observância da isonomia concorrencial8.

Entretanto, na conduta abolida, a hipótese era mesmo de dispensa ou inexigibilidade de licitação. Vale dizer, são situações em que a própria lei excepciona a exigência do procedimento licitatório para a contratação pública, de sorte que a regra geral de exigência de licitação não teria sido ilegalmente suprimida com a prática da conduta. Simplesmente, o agente público descumpriu uma das formalidades estabelecidas para não licitar, o que não representa nem mesmo um crime de perigo abstrato ao bem jurídico tutelado.

Em suma, com a segunda parte do art. 89 da lei 8.666, o legislador criminalizava mero error in procedendo praticado pelo agente público que erra no aspecto formal da execução do ato administrativo9, o que é, evidentemente, um exagero. Eventual violação nesse sentido pode ser satisfatoriamente resolvida no plano administrativo, com a aplicação das sanções que lhe são próprias. Mais desproporcional ainda tal conduta ser sancionada com a pena de três a cinco anos, a mesma cominada às condutas em que não se realiza o procedimento licitatório nas hipóteses em que não é dispensado ou inexigível.

Absolutamente acertada, portanto, a descriminalização da conduta de “deixar de observar as formalidades pertinentes à dispensa ou à inexigibilidade” prevista no art. 89, segunda parte, da lei 8.666, decorrente da nova Lei de Licitações. A razão consiste, basicamente, no fato de não se identificar na conduta descrita um bem jurídico punível pela mais grave das sanções, pelo uso do instrumento de ultima ratio, que é o Direito penal.

A conduta do agente público que comete erro administrativo, descrita na segunda parte do art. 89, não causa lesão ou colocação em perigo a bem jurídico algum — este entendido como “dados ou finalidades necessários para o livre desenvolvimento dos cidadãos, a realização de seus direitos fundamentais”10. Além de que, a respectiva conduta (se for o caso) sujeita-se às sanções da esfera administrativa, de sorte que buscar a sua evitação por meio da ameaça penal viola o princípio da subsidiariedade, em verdadeiro abuso do poder punitivo estatal.

________________

1 O mesmo ocorreu, v.g., com a revogação do art. 214 do CP (atentado violento ao pudor) e inclusão de seu conteúdo normativo-típico nos arts. 213 (estupro) e art. 217-A (estupro de vulnerável). Ver STJ, 5.ª T., HC 217.531/SP, rel. min. Laurita Vaz, DJe 2 abr. 2013.

2 BITENCOURT, Cezar Roberto. Direito penal das licitações. São Paulo: Saraiva, 2012. p. 143.

3 PRADO, Luiz Regis. Direito Penal Econômico. 8. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2019. p. 399.

4 Sobre a conduta incriminada na segunda parte do art. 89, comenta BITENCOURT: “A rigor, temos dificuldade em aceitar a constitucionalidade dessa criminalização, que peca pelo excesso, violando, em outros termos, o princípio da proporcionalidade, considerando-se que mero error in procedendo, além de indevidamente criminalizado, e' sancionado com pena de três a cinco anos de detenção e multa”. BITENCOURT, Cezar Roberto. Direito penal das licitações. São Paulo: Saraiva, 2012. p. 148.

5 Sobre a conduta incriminada na segunda parte do art. 89, comenta JUSTEN FILHO: “Se os pressupostos da contratação direta estavam presentes, mas o agente deixou de atender à formalidade legal, a conduta é penalmente irrelevante.” JUSTEN FILHO, Marçal. Comentários à Lei de Licitações e Contratos Administrativos. 17. ed. São Paulo: RT, 2016. p. 1399.

6 O tipo penal elaborado no Anteprojeto do Código Penal foi redigido da seguinte forma: “Art. 316. Deixar de observar as formalidades legais pertinentes à dispensa ou à inexigibilidade de licitação, quando cabíveis: Pena - prisão, de um a quatro anos. Parágrafo único. Nos casos em que não houve prejuízo concreto à Administração Pública, o juiz poderá, examinando a culpabilidade do agente, deixar de aplicar a pena por ser desnecessária.” Disponível em: clique aqui. Acesso 7 abr. 2021.

7 LEITE, Alaor. Dolo e o crime de dispensa ou inexigência ilegal de licitação (art. 89 da Lei 8.666/1993) interpretação restritiva do tipo penal, responsabilidade penal do gestor público e a relevância jurídica da opinião técnica da procuradoria do município (STF, Inq. 2.482/MG). Revista Brasileira de Ciências Criminais, vol. 104, p. 13-30, set-out. 2013.

8 BITENCOURT, Cezar Roberto. Direito penal das licitações. São Paulo: Saraiva, 2012. p. 132.

9 BITENCOURT, Cezar Roberto. Direito penal das licitações. São Paulo: Saraiva, 2012. p. 148.

10 ROXIN, Claus. O conceito de bem jurídico crítico ao legislador em xeque. Revista dos Tribunais, vol. 922, p. 291-322, ago. 2012.

Guilherme Brenner Lucchesi
Professor da Faculdade de Direito da UFPR. Doutor em Direito pela UFPR. Mestre pela Cornell Law School (EUA). Attorney-at-law inscrito no New York State Bar. Advogado sócio da Lucchesi Advocacia.

Maria Victoria Costa Nogari
Acadêmica de Direito da UFPR. Associada ao Instituto Brasileiro de Direito Penal Econômico. Estagiária da Lucchesi Advocacia.

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