Introdução.
O presente trabalho é uma análise do processo de eclosão do fenômeno conhecido como “Direito achado nas ruas”1 das favelas cariocas. A ideia central é mostrar porque seu surgimento não é alheio ao mundo jurídico, sendo, portanto, um escopo do estudo da sociologia do direito.
Inicialmente, será diferenciado o conceito de Direito formal e Direito informal a partir de uma análise sociojurídica. A partir dessa diferenciação, observar-se-á o Direito informal imperando em certas localidades, evidenciando a derrota do Direito formal em seu objetivo de ser o alicerce das relações sociais por todo o território nacional. Da mesma maneira, notar-se-á a necessidade da sociedade se organizar em torno de princípios reguladores das práticas sociais, ainda que sejam alternativos à estrutura legítima do Estado.
Posteriormente, o tema será abordado a partir de um aspecto histórico-cultural. Assim, será feito o estudo do surgimento desse Direito alternativo nas regiões precárias do Rio de Janeiro. Para este fim, serão considerados fatos históricos alheios à estrutura do Direito que contribuíram para tal organização.
Isto posto, avaliar-se-á a existência da jurisdição informal do crime organizado nas favelas do Rio de Janeiro na contemporaneidade. Dessa maneira, será observada a influência da organização da criminalidade nas comunidades cariocas, especialmente em torno do tráfico de drogas. Então, será explicado por que o tema é (ou deveria ser) alvo da Sociologia do Direito.
Direito Formal X Direito Informal.
Para iniciar é fundamental a diferenciação entre Direito formal e Direito informal. Em primeiro lugar, o Direito formal é todo o conjunto de normas advindas do Estado em suas três especificações: Poder Executivo, Poder Legislativo e Poder Judiciário. Todo conjunto de regras legítimo para a organização estatal é abarcado por esse conceito.
Nesse sentido, inclui-se em Direito formal todas as Constituições, desde a Federal até as Estaduais, todos os códigos, todas leis, federais, estaduais e municipais, todos os decretos e, até mesmo, todas as medidas provisórias com força legal. Ou seja, qualquer tipo de regra produzida pelo Poder Legislativo ou Executivo.
Não suficiente, considera-se também toda decisão judicial, seja monocrática ou colegiada, toda súmula vinculante, qualquer ação de controle de constitucionalidade, entre outras, proferidas em território nacional por autoridade competente. Assim, qualquer tipo de norma válida produzida pelo Poder Judiciário.
Entretanto, o Direito não se limita às regras explícitas em papéis legítimos para o Estado, com órgãos competentes para aplicá-las. Em segundo lugar, há o Direito informal, que se apresenta de maneira completamente diferente do primeiro. Este é qualquer tipo de regra nascida da convivência social, independentemente do Estado.
Para Weber, seriam os padrões de comportamento não regulamentados nascidos inconscientemente na sociedade, seja por simples uso, por hábito ou por tradição.2 Assim sendo, qualquer comportamento social que sirva como base para decisões futuras, estabelecendo um padrão de vivência, é abarcado no conceito de Direito informal.
Evidenciada a contraposição entre os dois, é indispensável uma reflexão. Na atualidade carioca, onde o Direito informal supera o formal como alicerce do comportamento humano?
A resposta é simples: nas áreas urbanas ignoradas pelo Estado. Ou mais simples ainda, nas favelas. O (histórico) descaso com as comunidades cariocas, marcado pela inexistência de qualquer auxílio estatal, fez se desenvolver, dentro das camadas mais pobres da sociedade, estruturas informais de normas rapidamente dominadas pelo crime organizado.
Portanto, verifica-se, que o Estado não é a única fonte de produção de Direito na atualidade3. Além disso, nota-se que em decorrência de uma história específica brasileira provedora de uma grande massa de subincluídos4 do Direito formal existe um cenário ótimo para o desenvolvimento de regras de convivência alternativas à legalidade estatal.
Análise histórico-cultural.
Compreendido que o Direito informal impera nas regiões marginalizadas da cidade do Rio de Janeiro, é preciso entender historicamente o porquê desse fenômeno. Evidentemente, tal cenário remonta o passado escravocrata brasileiro e seu posterior descaso com negros, ainda que já livres, durante toda a república.
Para iniciar, a política de libertação dos escravos, conquistada formalmente com a lei Áurea, se mostrou completamente insuficiente para a conquista material de direitos de pessoas pretas ou pardas ex-escravizadas. A Carta, assinada pela Princesa Elizabeth, vedava, sim, o trabalho escravo e realmente “libertava” os cidadãos até então escravizados. Porém, em termos de políticas públicas para inclusão dessas pessoas que trabalharam a vida inteira como escravos, nada houve.
Essa grande massa da população foi jogada à sorte com uma libertação insuficiente desacompanhada de um assistencialismo (extremamente) necessário. Assim, sem a menor condição de vida digna começaram a se abrigar em conglomerados urbanos coletivos na zona portuária da cidade do Rio de Janeiro.
As habitações, conhecidas como cortiços, eram moradias populares, em que em um espaço de, às vezes, 50 m² moravam quatro ou cinco famílias inteiras.5 As condições sanitárias dispensam qualquer adjetivação.
Nesses novos conglomerados, já se observava o Direito informal imperando as relações sociais em detrimento das regras legais do Estado. Afinal, nenhuma regra de propriedade foi redigida pelo Estado, considerando a realidade dessas famílias. Desse modo, nenhuma delas era respeitada nessas localidades, dando vez às associações de moradores que juntos, não só, se protegiam da ilegalidade coletiva, mas também, estabeleciam métodos informais de ordenamento e registro da propriedade.
Em suma, desde os primeiros inchaços urbanos a formalidade cedeu a métodos alternativos de produção de Direito. Aquela parcela da população que fora jogada à própria sorte com uma libertação insuficiente, desenvolveu sua maneira particular de regulamentar a vida em comunidade. Assim, a omissão do Estado em zonas precárias da cidade propiciou uma conjuntura perfeita para o surgimento de um Direito alheio ao Direito formal.
O Direito da criminalidade carioca.
O vazio estatal nas áreas dos cortiços no início do século XX permaneceu na posterior verticalização das favelas nas encostas dos morros do Rio de Janeiro. Entretanto, a ausência do Estado nesses mais novos conglomerados urbanos, que antes propiciara a organização informal das Associações de moradores, favoreceu, agora, de mãos vazias, o domínio dos territórios pela criminalidade (muito bem) organizada.
Especialmente a partir da segunda metade do século XX, o tráfico de drogas se tornou um negócio muito lucrativo.6 Por isso, em se considerando que não havia presença estatal nas “zonas pardas”7 do espaço urbano, as facções criminosas conseguiram se estruturar facilmente. Foi nesse momento que a organização informal sobre propriedade das Associações de Moradores das comunidades cedeu espaço para a juridicidade violenta do tráfico de drogas organizado.
A grande questão é que a ausência do Estado em políticas de auxílio aos moradores era tanta que quando se haviam problemas imediatos, grande parte dos moradores só tinham os chefes do tráfico para recorrer. Então, com essa única válvula de escape, a criminalidade nas favelas se tornou, também, o Poder Judiciário dos mais pobres, estabelecendo, até mesmo, normas escritas de convivência como forma de sociabilidade.
Segue exemplo de um caderno escrito “Dez mandamentos da nossa facção comando vermelho” apreendido pela Polícia Militar do Rio de Janeiro.
Para fazer valer os mandamentos das facções, os criminosos utilizam da “lei mais dura”, sendo comum sanções “com penalidades severas e desumanas em sentenças irrecorríveis que levam frequentemente ao banimento da comunidade, à mutilação ou à morte”.8 E do outro lado da guerra, as forças policiais adentram as comunidades para combater essas organizações sob premissa - completamente errônea - de ilegalidade coletiva.
Dessa maneira, a violência policial contra setores populares se torna frequente nas missões de combate ao tráfico, reforçando, na população pobre, a repulsa contra a figura policial em virtude da figura do criminoso. No final das contas, todo morador é um suspeito e todo fardado é um alvo ambulante.
Para concluir, nota-se nas comunidades cariocas o verdadeiro embate - violento - entre o Direito formal e o Direito informal. Já que o (histórico) vazio do Estado, em políticas de auxílio, e a sua forte presença em políticas de repressão acarreta uma juridicidade baseada na violência exercida pelo crime organizado.
Porque o tema é objeto da sociologia jurídica.
Enfim, por que o Direito alternativo das comunidades cariocas é (ou deveria ser) objeto de análise da Sociologia Jurídica?
A Sociologia do Direito estuda todas as relações sociais que geram e que são geradas pela formalização do Direito. Desde a sua produção, nas instâncias formais legítimas do Estado, até a sua aplicação nos órgãos competentes. Dessa maneira, estuda, em todos os sentidos, a forma em que o Estado regula o convívio social e suas consequências. Mas não se limita ao Direito formal.
Para Maliska (2001) o Estado “não pode ser entendido como a fonte única e exclusiva de todo o direito”9. Então, embora não abarcado pelo Direito formal, as normas de coercibilidade produzidas espontaneamente pela sociabilidade devem ser entendidas, também, como uma maneira de regulação do convívio social.
Afinal de contas, às vezes, as normas informais, como fato social, podem apresentar, até mesmo, poder coercitivo maior do que as normas formalmente aprovadas e válidas para o Estado Democrático de Direito. E é o caso da juridicidade da boca de fumo10. De fato, para Durkheim, “os indivíduos somente são capazes de se sujeitar voluntariamente às normas quando reconhecem nestas a necessidade, a utilidade e a legitimidade social”11
Portanto, é alvo do estudo da Sociologia do Direito, pois é um mecanismo não oficial de regulamentação do comportamento e da convivência em sociedade.
E além disso tudo, o Direito informal ainda seria escopo de análise da Sociologia Jurídica pois, mesmo que não seja acatado pelo ordenamento jurídico estatal, influencia e, ao mesmo tempo, é influenciado pela norma jurídica formal. Então, seria objeto por ser mera consequência da existência e da aplicação do Direito formal.
Em suma, a juridicidade informal da criminalidade das favelas do Rio de Janeiro apresenta importância para a Sociologia do Direito porque (1) é um fato social que reflete alto poder coercitivo na comunidade moradora das “zonas pardas”12 do espaço urbano do Rio de Janeiro e (2) porque interfere na produção formal do Direito.
Conclusão.
Por fim, verifica-se como uma história particular de descaso jurídico com uma parcela da população provocou uma estruturação de normas de convivência alheias à formalidade. Desse modo, conclui-se que a sociedade exige meios de organização, que, caso não sejam desenvolvidos pelo Estado, serão concebidos pela própria população. No mais, nota-se que a ausência estatal propicia o domínio do regulamento social pelo crime organizado, que possui alto poder de coercibilidade. Então, é admissível concluir, que tal realidade seria evitada, com esforços governamentais no passado.
Por último, é compreendido porque devemos refletir sobre a temática dentro do campo de pesquisa da Sociologia Jurídica. Assim, constata-se como a juridicidade informal é um fenômeno extremamente complexo. Afinal, se trata da vida de centenas de milhares de brasileiros historicamente invisíveis ao Direito formal.
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1. Expressão utilizada por Roberto Lyra Filho.
2. WEBER, M. Economía y sociedad. México: Fondo de Cultura, 1984.
3. MALISKA, M. Introdução à sociologia do direito de Eugen Ehrlich. Curitiba: Juruá, 2001.
4. REIS, Jane. O Judiciário como impulsionador dos Direitos Fundamentais: Entre fraquezas e possibilidades. Revista da Faculdade de Direito-RFD-UERJ, Rio de Janeiro, p. 127-157, 2016.
5. FAUSTO, Boris. História concisa do Brasil. Editora da Universidade de São Paulo, São Paulo, 2001.
6. Disponível aqui. Acesso em 5 de abril de 2021.
7. O’DONNELL, G. Teoria democrática e política comparada. Dados, Rio de Janeiro, v. 42, 4, p. 655-690, 1999.
8. JUNQUEIRA, E; RODRIGUES, J. Pasárgada revisitada. Sociologia - Problemas e Práticas. Lisboa, 12, p. 9-17, 1992.
9. MALISKA, M. Introdução à sociologia do direito de Eugen Ehrlich. Curitiba: Juruá, 2001.
10. Termo de Eliane Junqueira e José Augusto Rodrigues. 1992.
11. DURKHEIM, É. L’éducation morale. Paris: Librairie Félix Alcan, 1934.
12. O’DONNELL, G. Teoria democrática e política comparada. Dados, Rio de Janeiro, v. 42,4, p. 655-690, 1999.
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LOBOSCO, Talles. Direito alternativo: a juridicidade nas favelas. São Paulo, 2014.
LIRA, Ricardo. Direito formal e informal nos centros urbanos brasileiros. Alemanha, 2014.
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