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A LGPD e os limites da liberdade de imprensa

A Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD) não é aplicável ao tratamento de dados pessoais com fins jornalísticos. Mas o que isso quer dizer na prática? Os jornalistas seriam “imunes” à LGPD?

12/4/2021

A atividade jornalística é essencial à Democracia e por isso que esse é um debate tão complexo. Com a expansão da globalização, do desenvolvimento da tecnologia e do império das big techs, a notícia ficou mais acessível, mas a qualidade da informação ficou comprometida, o que deu vida a uma verdadeira pandemia de fake news. Além disso, dados pessoais têm circulado livremente na internet e, não raras vezes, a sua exposição é confundida com liberdade de expressão.

E aí nos deparamos com mais um impasse: o interesse público e a amplitude do seu significado. Precisamos debater o interesse público sob a perspectiva jurídica e o interesse público sob a perspectiva jornalística, conforme veremos a seguir.

O que pode ser classificado como interesse público?

O Princípio da Supremacia do Interesse Público, citado no Direito Administrativo, é um princípio implícito, decorrente das instituições adotadas no Brasil. Com efeito, presume-se que toda atuação do Estado seja pautada pelo interesse público.

Entretanto, a expressão interesse público é um tanto quanto abstrata e, por vezes, não reflete objetivamente a finalidade de determinadas decisões ou ações administrativas (se em prol da coletividade ou por mera conveniência política).

Nesse sentido, para Jean Rivero, a noção jurídica de interesse público está relacionada com a satisfação das necessidades da população, da coletividade. Mas, vale lembrar: essa satisfação só poderá integrar o conceito de interesse público se estiver relacionada a algum direito fundamental (intimidade, inviolabilidade do lar, liberdade de expressão etc.).

Por outro lado, no jornalismo o interesse público é encarado como uma justificativa moral para sustentar escolhas e rebater críticas. O próprio Código de Ética dos Jornalistas Brasileiros, em seu art. 2º, dispõe que “a produção e a divulgação da informação devem se pautar pela veracidade dos fatos e ter por finalidade o interesse público”.

Para a coordenadora e professora do bacharelado de Jornalismo da Escola Superior de Propaganda e Marketing de São Paulo (ESPM), Maria Elisabete Antonioli, em entrevista para o Portal Imprensa, "o interesse público e a liberdade de imprensa são condições inerentes para a afirmação de regimes democráticos. O jornalismo, para seu desenvolvimento absoluto, necessita ser livre e independente, e para que isso

ocorra é necessário ser praticado em uma cultura democrática, pois a informação não pode ser versão nem do estado, nem da iniciativa privada ou de outros organismos".

Liberdade de imprensa versus direito à privacidade

De um lado estão os profissionais da imprensa e, de outro, estão os direitos à privacidade, à honra e o direito de imagem. Com o advento da LGPD, a "liberação" da atividade jornalística esbarrou mais uma vez nesses direitos fundamentais e vice-versa, tornando frequente a colisão dessas normas, já que elas defendem interesses concomitantes.

Diante disso, é imprescindível a adoção de um critério de proporcionalidade para ponderar o conflito entre esses direitos. Mas essa não é uma tarefa fácil, vez que, ao sacrificar uma norma constitucional em detrimento de outra (lembrando que as normas constitucionais não possuem hierarquia entre si), tal decisão, aplicada ao caso concreto, pode ir contra a Constituição.

A discussão não é de hoje. Já dizia Norberto Bobbio: "uma definição mínima de democracia deve incluir não apenas o direito ao voto e a regra da maioria, mas as liberdades de expressão e de opinião, assim como o direito à informação – que não é um direito acessório à democracia, mas constituinte". Nesse contexto, a imprensa adquiriu liberdade no decorrer dos anos, porém não quer dizer que este seja um poder ilimitado, sobretudo quando fere alguns dos direitos fundamentais do ser humano, como a liberdade, a honra, a imagem e a privacidade, embora o direito à informação e a livre manifestação de pensamento estejam entre os pilares mais importantes do Estado Democrático de Direito.

De acordo com um artigo publicado no Observatório da Imprensa, "a liberdade de publicar prevalece quando são fatos de interesse publico, quando são relacionadas à atividade política e partidária, ou quando são sobre a vida social de artistas", fora estas hipóteses prevaleceriam a privacidade e a inviolabilidade da pessoa humana. Mas, na prática, sabemos que não é bem assim e, em tempos de pandemia, esse conflito de interesses ficou ainda mais evidente quando o assunto é divulgação de informações sobre saúde e vacinação contra a Covid-19: de um lado, a saúde pública e, de outro, a privacidade do indivíduo.

O que deve prevalecer: a privacidade ou o interesse público?

Uma situação que ilustra bem este questionamento é a polêmica envolvendo o presidente do Brasil, Jair Messias Bolsonaro, em junho do ano passado (2020), quando informou ter testado negativo para o novo coronavírus, mas recusou-se a apresentar o exame, invocando seu direito à privacidade e intimidade.

Nesse contexto, embora a LGPD ainda nem estivesse em vigor à época dos fatos, rendeu o debate em torno do conflito entre direito à privacidade e liberdade de imprensa ou interesse público. Ademais, existem várias discussões a respeito de medidas e ações adotadas pelas autoridades para o combate à covid-19 quando o assunto é proteção de dados (sobretudo dados pessoais sensíveis), embora existam normas que regulamentam o sigilo médico. É o caso da Resolução 1.605/00 do Conselho Federal de Medicina, que proíbe a divulgação de informações de prontuário ou ficha médica (exceto quando há o consentimento do paciente).

Por outro lado, a lei 6.259/75 determina a comunicação compulsória às autoridades sanitárias dos casos suspeitos ou confirmados de doenças que podem implicar em medida de isolamento ou quarentena, que é o caso da Covid-19. Ou seja, não há direito absoluto, devendo haver ponderação entre eles para que seja aplicado o mais adequado ao caso concreto.

Conclusão

Ao excluir o regramento de proteção de dados da atividade jornalística, certamente o legislador quis garantir que a LGPD não fosse vista como um instrumento de censura, muito embora a lei não seja clara quanto à amplitude do termo "fins jornalísticos". E é nesse sentido que devemos analisar cuidadosamente, na prática, os limites da liberdade de imprensa face aos direitos fundamentais do indivíduo.

Por isso que, ao passo que a LGPD busca o respeito à privacidade e a proteção dos dados pessoais do titular, por outro ela também preserva a liberdade de expressão, de informação e de opinião, consolidadas no artigo 2º:

Art. 2º A disciplina da proteção de dados pessoais tem como fundamentos:

I - o respeito à privacidade;

II - a autodeterminação informativa;

III - a liberdade de expressão, de informação, de comunicação e de opinião;

IV - a inviolabilidade da intimidade, da honra e da imagem.

Assim como o restante do ordenamento jurídico, não existe norma absoluta. O respeito aos direitos e garantias fundamentais do indivíduo à privacidade, à intimidade, à honra e à imagem, precisam coexistir em harmonia junto ao direito à informação e à liberdade de expressão e de imprensa.

Portanto, o impasse entre privacidade e liberdade de imprensa deve ser sempre bem ponderado, levando em conta a relevância ou não do interesse da coletividade, já que essa ponderação entre normas é o que faz uma sociedade justa, equilibrada e democrática.

_______________

ALEXANDRINO, Marcelo. PAULO, Vicente. Resumo de Direito Administrativo Descomplicado. 3ª ed. Rio de Janeiro. Editora Método. 2010.

ANTONIOLI, Maria Elisabete. A prática jornalística deve estar focada no interesse público, afirma Maria Elisabete Antonioli. Portal Imprensa. Disponível em: clique aqui. Acesso em 06 de abril de 2021.

BARTZEN, Jaqueline. Interesse público: discurso e prática jornalística. Revista Vernáculo, n. 17 e 18, 2006.

DANTAS, Bárbara Birney Silva. SIL, Vanessa Érica da. Bobbio, vida privada e liberdade de imprensa. Diretório Acadêmico do Observatório da Imprensa. Edição 621 de 21 de dezembro de 2010. Disponível em: clique aqui. Acesso em 30 de março de 2021..

RIVERO, Jean. Direito Administrativo. Tradução de Rogério Ehrhart Soares. Coimbra: Almedina, 1981.

Mariana Landim
Advogada de Proteção de Dados do escritório Caldeira, Lôbo e Ottoni Advogados. Secretária-adjunta da Comissão de Privacidade da OAB/DF. Consultora em LGPD e produtora de conteúdo (@advogandonanuvem).

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