Migalhas de Peso

Aspectos controvertidos sobre herança digital

Análise da apelação cível 1119688-66.2019.8.26.0100 do TJ/SP

9/4/2021

(Imagem: Arte Migalhas)

No mês de março deste ano, o Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo apreciou caso relativo à denominada herança digital. Trata-se da Apelação Cível 1119688-66.2019.8.26.0100, de relatoria do desembargador Francisco Casconi, da 31ª Câmara de Direito Privado, julgada por unanimidade.

O que diz o acórdão do TJ/SP?

Os autos versavam sobre o caso de uma mãe que, após o falecimento de sua filha, passou a utilizar o perfil da jovem no Facebook com o objetivo de recordar fatos de sua vida, além de interagir com amigos e familiares, uma vez que possuía acesso ao usuário e senha da conta, fornecidos em vida pela filha. No entanto, o perfil da filha foi repentinamente excluído pela plataforma sem qualquer explicação ou aviso prévio, o que levou a mãe a procurar a Justiça.

O Tribunal negou provimento à apelação da mãe, sob o fundamento central de que, ao criar seu perfil no Facebook, a filha aderiu em vida aos Termos de Serviço e Padrões da Comunidade da plataforma, que vedam o compartilhamento de senhas e a utilização do perfil por pessoa diversa do usuário ao qual se refere.

De acordo com o relator, a violação da obrigação de “Abster-se de compartilhar sua senha, dar acesso à sua conta do Facebook a terceiros ou transferir sua conta para outra pessoa (sem nossa permissão)”, por si só, justificaria a remoção do perfil em razão de denúncia ou mesmo de ofício.

Além disso, ressaltou que a plataforma também dispõe em seus termos sobre a opção de, em caso de morte, os usuários indicarem um contato herdeiro para cuidar da conta transformada em memorial ou excluir a conta permanentemente do Facebook. Dessa forma, se a usuária não tivesse optado pela exclusão após o falecimento, sua conta seria transformada em memorial, cujas funções são limitadas e pré-definidas pelo Facebook. Diante disso, entendeu o TJ/SP que o uso da plataforma nos termos pretendidos pela mãe esbarraria em vedações contratuais.

A decisão consigna, por derradeiro, a ausência de abusividade nos termos de uso da plataforma, concluindo que “devem prevalecer, quando existentes, as escolhas sobre o destino da conta realizadas pelos indivíduos em cada uma das plataformas, ou em outro instrumento negocial legítimo, não caracterizando arbitrariedade a exclusão post mortem dos perfis. Inexistente manifestação de vontade do titular neste particular, sobressaem os termos de uso dos sites, quando alinhados ao ordenamento jurídico”.

O dilema dos bens existenciais

A personalidade extingue-se com a morte do sujeito sendo, por definição, intransmissível. Não há de se confundir, contudo, a personalidade em si considerada, insuscetível de sucessão, com os bens que se relacionam aos direitos da personalidade, tais como fotos, cartas, diários. Esses bens, embora carreguem consigo importantes aspectos existenciais, não se confundem com a personalidade do falecido e são passíveis de sucessão, exatamente como ocorre no mundo analógico.

Para tentar contornar a sucessibilidade, a plataforma insere, unilateralmente e em contrato de adesão, disposições que objetivam imprimir à relação jurídica com o usuário feição personalíssima. Relações personalíssimas, a exemplo daquelas cujo objeto são obrigações de fazer infungíveis, não são passíveis de sucessão, por dependerem de atuação pessoal do de cujus.

A plataforma, a rigor, se arroga direito que é dos herdeiros, bloqueando o acesso a fotos e diálogos que devem ser entregues aos sucessores. Pelo modelo estruturado pela própria plataforma, a decisão acerca de aspectos relacionados a escolhas existenciais do falecido fica exclusivamente em suas mãos, e não do falecido ou, na falta de sua prévia determinação, da família. A plataforma decide que não haverá novas solicitações de amizade pelo contato herdeiro ou remoção de amigos, mas, paradoxalmente, o contato herdeiro pode aceitar novos amigos – só não pode tomar a iniciativa. E mais: a plataforma pode alterar todas essas condições ao longo do tempo, sendo ela a verdadeira gestora do acervo digital, pois a decisão final acerca dos poderes do usuário e de seus familiares é dela.

Idoneidade da manifestação de vontade

A manifestação de vontade da falecida não se deu, a rigor, de forma absolutamente livre, pois limitada à mera adesão aos termos do contrato já predefinidos pela plataforma. Daí resulta o reduzidíssimo poder de disposição dos usuários sobre o seu patrimônio digital após a sua morte, que, ou se submetem à exclusão permanente da conta, destruindo-se definitivamente todos os bens digitais a ela vinculados, ou à sua transformação em memorial, com severas limitações de acesso aos sucessores.

Não é dado ao titular, de forma alguma, decidir diversamente, não lhe sendo conferida a opção de transmitir a seus sucessores a titularidade da conta e conferir-lhes acesso irrestrito ao acervo digital. Há, em definitivo, inegável e injustificável restrição ao poder de disposição do titular.

Despontam, ainda, duas questões sensíveis: (I) seria a determinação de apagamento da conta disposição hereditária, a impor sua manifestação por meio de testamento ou, eventualmente, de codicilo?; (II) caso houvesse, por exemplo, a necessidade de apuração de crimes, o acesso poderia ser concedido aos herdeiros ou mesmo a terceiros?

As questões são, a toda evidência, complexas, a demandar do intérprete esforço hermenêutico no sentido de compatibilizar as normas existentes aos desafios impostos pelas novas tecnologias. Impõe-se verificar a concreta compatibilidade dos termos de uso das plataformas com as normas de direito das obrigações, de direito do consumidor, de direito das sucessões, e, sobretudo, com a Constituição da República.

Aline de Miranda Valverde Terra
Professora de Direito Civil da UERJ e da PUC/RJ. Sócia do escritório Aline de Miranda Valverde Terra Consultoria Jurídica.

Milena Donato Oliva
Professora de Direito do Consumidor e de Direito Civil da UERJ. Doutora e mestre em Direito Civil pela UERJ. Advogada sócia do escritório Gustavo Tepedino Advogados.

Filipe Medon
Doutorando e mestre em Direito Civil pela UERJ. Professor de Direito Civil na UFRJ e de cursos de pós-graduação e extensão. Membro da Comissão de Proteção de Dados e Privacidade da OAB/RJ e do IBERC. Coordenador e membro fundador do Laboratório de Direito e Inteligência Artificial da UERJ. Advogado e pesquisador do escritório Gustavo Tepedino Advogados.

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