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Rasteira no sistema de patentes

A questão do atraso na concessão de patentes no Brasil não é um problema recente.

9/4/2021

O julgamento da ação que questiona a constitucionalidade do parágrafo único do artigo 40 da Lei de Propriedade Industrial (ADI 5.529) pelo Supremo Tribunal Federal marcado para dia 7 de abril de 2021, foi retirado da pauta do STF em vista da necessidade urgente de apreciação de um processo relacionado à pandemia. Todavia, o ministro Dias Toffoli concedeu liminar que suspende o dispositivo legal em questão no caso de patentes relacionadas a produtos e processos farmacêuticos, até que ocorra o julgamento. Em linhas gerais, o artigo 40 estabelece que o prazo de proteção das patentes de invenção no Brasil é de 20 anos contados a partir da data do requerimento de proteção no Instituto Nacional da Propriedade Industrial (INPI). O parágrafo único do mesmo artigo, motivo da instauração da ADI 5.529, garante ainda que uma patente deve possuir vigência mínima de 10 anos. Portanto, esse dispositivo permite a ampliação do prazo de vigência das patentes brasileiras como forma de compensação quando há um atraso excessivo do INPI na concessão do título. Em outras palavras, caso o INPI demore muito tempo para examinar e conceder uma patente, esta será válida por 10 anos contados a partir da sua data de concessão. Portanto, o parágrafo único do artigo 40 deveria ser utilizado em situações de exceção para garantir um período mínimo razoável para a exploração do direito conferido ao titular da patente. Todavia, devido ao elevado acúmulo de pedidos de patente pendentes de análise no INPI, conhecido como backlog, um número expressivo de patentes foi concedido com o prazo de 10 anos da concessão no Brasil. De acordo com dados fornecidos pelo Instituto, quase metade das patentes atualmente vigentes no país foram concedidas com base nesse dispositivo legal, ou seja, aproximadamente 31.000 patentes. Nesses casos, o prazo original das patentes, que seria de 20 anos, pode chegar a 30 anos ou mais.

A questão do atraso na concessão de patentes no Brasil não é um problema recente. O INPI vem acumulando pedidos de patente há décadas devido a diversos fatores, destacando-se principalmente a falta de infraestrutura tecnológica e a quantidade reduzida de examinadores para analisar os pedidos acumulados. Essa situação se agrava ainda mais devido ao fato de que o Instituto não possui autonomia financeira sobre a sua arrecadação, o que impossibilita a resolução desses problemas de maneira rápida e suficiente. Entretanto, mesmo diante de vários obstáculos, o INPI lançou em 2019 o plano de combate ao backlog de patentes, que tem se mostrado eficiente na redução do estoque de pedidos de patente. De acordo com dados disponibilizados pelo Instituto, o backlog de 150.000 pedidos pendentes foi reduzido em 51,2% até dezembro de 2020. A meta final do órgão é reduzir em 80% o número de pedidos pendentes de decisão até agosto de 2021, além de diminuir o prazo médio de concessão para cerca de dois anos. Atualmente, o tempo médio de concessão de uma patente no Brasil é de cerca de 8 anos, podendo variar de acordo com a área tecnológica.

É inegável que todos os setores tecnológicos serão afetados caso o parágrafo único do artigo 40 da LPI seja extinto. Porém, as duas áreas que notoriamente terão o maior impacto são telecomunicações/eletrônica e farmacêutica. As empresas do setor de telecomunicações/eletrônica, o mais prejudicado pelo atraso na concessão de patentes no Brasil, perderiam quase 90% de suas patentes atualmente vigentes. No momento em que o Brasil discute temas relevantes ligados à essa área, tal como a tecnologia 5G, seria extremamente prejudicial ao país que as empresas detentoras dessas tecnologias tivessem seus diretos extintos após décadas de investimentos e espera pela concessão de patentes no país.

Em segundo lugar no ranking de patentes concedidas com atraso pelo INPI está a indústria farmacêutica, com mais de 70% das patentes em vigor se beneficiando do dispositivo legal em discussão. Especificamente no setor farmacêutico, existe um fator complicador adicional. Todos os pedidos de patentes relacionados a processos e produtos farmacêuticos precisam ser enviados à ANVISA (Agência Nacional de Vigilância Sanitária) para a obtenção de uma anuência prévia. Em suma, a Agência verifica se o objeto do pedido de patente inclui substâncias de uso proibido no país e, em caso positivo, solicita que o requerente da patente retire essas substâncias do escopo da invenção reivindicada. Além disso, a ANVISA pode ainda emitir pareceres que comentam a patenteabilidade de invenções relacionadas a substâncias de interesse do SUS (Sistema Único de Saúde). Todavia, esses pareceres são enviados ao INPI na forma de subsídios ao exame técnico que será realizado pelo Instituto, não tendo, portanto, a capacidade de impedir a concessão de patentes. Por mais que o trâmite de anuência prévia já tenha sido simplificado, é inegável que esse procedimento gera ainda mais atraso nas análises do INPI, que só pode iniciar seu exame técnico após receber o aval da ANVISA.

A liminar concedida por Toffoli acatando a solicitação da Procuradoria Geral da República (PGR) e suspendendo os efeitos do parágrafo único do artigo 40 da LPI afeta justamente as patentes farmacêuticas que, além do atraso habitual conferido pelo INPI, ainda necessitam ultrapassar a etapa de anuência da ANVISA. É importante mencionar que as patentes atualmente vigentes não são afetadas, pois a liminar não estabelece um efeito retroativo. Na prática, as patentes que não poderão gozar do direito mínimo de 10 anos de vigência estabelecido pela LPI são aquelas concedidas a partir de agora e até que o julgamento da ADI aconteça, provavelmente na próxima semana.  

Existem diversas decisões possíveis para esse importante julgamento, quer sejam a favor ou contra o sistema de patentes atualmente regido pela LPI. A primeira delas seria a manutenção da decisão proferida na liminar, mas abrangendo todos os setores tecnológicos. Uma segunda possibilidade seria a manutenção do artigo 40 na íntegra. Essa decisão manteria o cenário atual, mas é importante mencionar que devido aos resultados positivos do plano de combate ao backlog de patentes, a tendência no médio prazo seria a utilização do parágrafo único em caráter excepcional. Outra possível decisão, mas que não parece provável diante do escopo da recente liminar, seria a extinção desse dispositivo legal em caráter retroativo. Nesse caso, aproximadamente 31.000 patentes atualmente vigentes seriam extintas ou teriam seu prazo de vigência reduzido.

Engana-se quem pensa que o sistema de patentes apenas beneficia empresas multinacionais. Ao declarar inconstitucional o parágrafo único do artigo 40 da LPI, universidades e centros de pesquisa brasileiros, tais como UNICAMP, UFRJ, USP, Embrapa e FAPESP, perderiam inúmeras patentes atualmente vigentes e seu conteúdo estaria disponível para ser explorado livremente no país.

É indiscutível o fato de que o dispositivo legal julgado pela ADI 5.529 deveria ser utilizado em caráter de exceção, apesar de não ser isso o que ocorre na prática levando-se em consideração o cenário atual. Por outro lado, ao decidir pela inconstitucionalidade desse dispositivo, o STF estaria impondo ao próprio titular e, portanto, ao desenvolvedor das tecnologias que permitem o avanço da economia, o ônus da ineficiência do Estado. Essa postura desestimula a inovação e desacelera a economia, indo na contramão de sistemas patentários robustos, como dos EUA, Europa, Japão e China. Portanto, uma análise cuidadosa dos fatos que envolvem esse polêmico julgamento nos leva a crer que toda a sociedade perde quando decisões arbitrárias são tomadas sem levar em consideração todos os atores do ecossistema de inovação brasileiro.

 

Gabriela Salerno
Sócia da banca Montaury Pimenta, Machado & Vieira de Mello Advogados.

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