O advento da internet e as constantes evoluções da tecnologia na criação de jogos digitais levou o cenário desportivo mundial a um novo patamar, trata-se do fenômeno dos e-sports. Eles contam com um espetáculo que ultrapassa os campeonatos oficiais e estende-se para plataformas de vídeo e streaming, em que é possível ver jogos casuais entre jogadores – ou pro-players – famosos, receber dicas e interagir com personalidades icônicas do cenário, cativando cada vez mais aficionados ao esporte. No Brasil o cenário não é diferente, inclusive, nos últimos anos, clubes desportivos como Cruzeiro, Flamengo e Santos investiram em seus próprios times de e-sports.
Atualmente, vê-se uma vasta promoção das apostas esportivas, o que é impulsionado tanto por personalidades famosas do cenário como por alguns times, que possuem como seus patrocinadores sites de apostas.
Diante desse contexto, considerando que, no Brasil, jogos de azar e locais que os promovam – como bingos ou cassinos – são proibidos, este artigo tem por objetivo a análise das apostas esportivas no contexto dos e-sports e seu atual arcabouço regulatório.
A regulação brasileira sobre jogos de azar
No Brasil os jogos de azar foram proibidos por força do decreto-lei 9.215, de 30 de abril de 1946, que restaurou a vigência do artigo 50 e seus parágrafos da Lei das Contravenções Penais – decreto-lei 3.688, de 3 de outubro de 1941 –, que dispunha sobre a exploração de jogos de azar em lugar público ou acessível ao público. Conforme o supramencionado artigo, consideram-se jogos de azar: (I) o jogo em que o ganho e a perda dependem exclusiva ou principalmente da sorte; (II) as apostas sobre corridas de cavalos fora de hipódromo ou de local onde sejam autorizadas e (III) as apostas sobre qualquer outra competição esportiva.
Com a assinatura do decreto de 1946, que teve como principal fundamento o fato de que os jogos de azar eram nocivos à moral e aos bons costumes, todos os cassinos que operavam no Brasil foram fechados e tais estabelecimentos se tornaram ilegais. Igualmente, qualquer aposta feita sobre competição desportiva seria passível de punição, no caso, a pena cominada seria de prisão simples, de três meses a um ano, e multa, de dois a quinze contos de réis, estendendo-se os efeitos da condenação à perda dos móveis e objetos de decoração do local.
Apesar de tal proibição ser da década de 1940, é importante notar que a lei continua vigente e, consequentemente, jogos de azar continuam proibidos no Brasil. Dessa forma, torna-se passível de questionamento como tantas personalidades icônicas do cenário dos e-sports estão apostando nos resultados dos jogos abertamente, inclusive algumas vezes fazendo vídeos sobre as apostas.
Importante pontuar que o fato de a aposta ser realizada no ambiente virtual, ou seja, por meio da internet é o fator-chave que permite o atual cenário de apostas nos e-sports. Como visto, a lei que proíbe os jogos de azar no Brasil fora criada para uma determinada época, na qual os cassinos e estabelecimentos análogos eram considerados problemas à moral da época. De tal modo, é preciso reconhecer que os tempos mudaram e a lei tornou-se anacrônica, o que faz com que a redação da Lei das Contravenções Penais que dispõe sobre jogos de azar não seja muito clara para lidar com as situações da atualidade, principalmente quando se considera o surgimento da internet, situação que não poderia ser vislumbrada à época da assinatura do decreto de 1946.
Nesse contexto, é possível dividirmos as apostas em: (I) apostas legais, como a loteria controlada pela Caixa Econômica Federal e as corridas de cavalo organizadas em hipódromos autorizados; (II) apostas ilegais, como as conduzidas em cassinos e (III) uma modalidade de apostas que se encontra em um vácuo legislativo, visto que não há uma regulamentação clara, sendo essas as apostas esportivas feitas em ambiente virtual.
A despeito da falta de clareza do texto legal sobre apostas online, cumpre-nos notar que em 2015, a lei 13.155 modificou o parágrafo 2º do artigo 50 da Lei das Contravenções Penais, passando a dispor que incorre em pena de multa, de R$ 2.000,00 (dois mil reais) a R$ 200.000,00 (duzentos mil reais), quem é encontrado a participar do jogo, ainda que pela internet ou por qualquer outro meio de comunicação, como ponteiro ou apostador.
No entanto, a falta de clareza na lei permanece e, consequentemente, conduz a uma brecha interpretativa de que incorre na contravenção o local, físico ou virtual, que promova apostas no território brasileiro bem como o indivíduo que apostar nesses locais. Desta maneira, se o site estiver hospedado em um servidor no exterior, o apostador não estaria incorrendo em crime algum.
Oportunamente, é de se notar que no Direito Penal brasileiro adota-se, via de regra, o princípio da territorialidade, segundo o qual aplica-se a lei brasileira ao crime cometido em território nacional. Tal princípio, consagrado no artigo 5º do Código Penal, é também contemplado pelo artigo 2º da Lei das Contravenções Penais, segundo o qual a lei brasileira só é aplicável à contravenção praticada em território nacional. Para fins complementares, é interessante pontuar que o Código Penal traz exceções ao princípio da territorialidade, no qual crimes cometidos no exterior ficam sujeitos à lei brasileira – artigo 7º do Código Penal –, contudo, tais exceções restringem-se a crimes, de sorte que a extraterritorialidade não se aplica às contravenções penais praticadas em território estrangeiro, haja vista a delimitação territorial da jurisdição brasileira imposta pelo supramencionado artigo 2º da Lei das Contravenções Penais.
Ora, neste racional verificamos que a vedação imposta aos jogos de azar pela Lei das Contravenções Penais só é aplicável caso a aposta seja realizada em território nacional. No caso das apostas online, essas são efetuadas através de sites estrangeiros de apostas que têm como regente a legislação do país onde seus servidores estão sediados, no caso, países nos quais a aposta esportiva é legal. Nessa toada, para a análise penal em questão, a aposta reputa-se constituída no local onde o site é sediado, devendo a legislação desse país determinar a legalidade do ato, independentemente das disposições da lei brasileira.
A conclusão a que se chega é de que se o indivíduo está apostando em um site com servidor sediado em um país estrangeiro onde apostas são legalizadas, ele não estaria incorrendo em contravenção penal – a atividade seria análoga à do brasileiro que viaja para Las Vegas e utiliza seu cartão de crédito para apostar nos cassinos da região. Desse modo, embora os jogos de azar sejam ilegais no Brasil, tal proibição não se aplica ao brasileiro que, pela internet, aposta em um site estrangeiro sediado em um país onde a aposta é legalizada.
O futuro das apostas esportivas no Brasil
Após a análise do atual cenário regulatório das apostas no Brasil, resta claro que este deve sofrer modificações, a fim de tornar a legislação sobre apostas mais adequada à época atual, principalmente considerando a explosão que teve o mercado de apostas em e-sports no Brasil.
Nesse sentido, em 12 dezembro de 2018, o ex-presidente Michel Temer sancionou a lei 13.756, que dispõe sobre o Fundo Nacional de Segurança Pública (FNSP) e estabelece algumas prescrições sobre as apostas no Brasil. Conforme prevê o artigo 29 dessa lei, fica criada a modalidade lotérica, sob a forma de serviço público exclusivo da União, denominada “apostas de quota fixa”, cuja exploração comercial ocorrerá em todo o território nacional.
Com efeito, o parágrafo 1º do aludido artigo especifica que essa nova modalidade consiste em sistemas de apostas relativas a eventos reais de temática esportiva, em que é definido, no momento da efetivação da aposta, quanto o apostador pode ganhar em caso de acerto do prognóstico. Além disso, o parágrafo 2º do referido artigo estabelece que a loteria de apostas de quota fixa será autorizada ou concedida pelo Ministério da Fazenda e será explorada, exclusivamente, em ambiente concorrencial, com possibilidade de ser comercializada em quaisquer canais de distribuição comercial, físicos e em meios virtuais.
É de se notar que a lei 13.756 representa um grande avanço no mercado de apostas brasileiro. No entanto, tal diploma não chegou a especificar os detalhes referentes às apostas esportivas, como a definição das concessões e outros tópicos essenciais ao tema, em vez disso, dispôs, no parágrafo 3º do artigo 29, que o Ministério da Fazenda regulamentaria em um prazo de dois anos, prorrogável por até igual período, a contar da data de publicação da referida lei, o disposto no aludido artigo.
Ora, apesar de nos últimos anos o tema ter sido objeto de estudo para a elaboração da regulação das apostas de quota fixa no Brasil, com a abertura de uma consulta pública no ano de 2019, até o atual momento, ainda não houve a regulamentação do assunto por parte do Ministério da Fazenda.
O prazo encerra-se em dezembro de 2022 e, enquanto não é realizada tal regulação, os sites estrangeiros continuam dominando o mercado das apostas esportivas no Brasil e, consequentemente, captando recursos de apostadores brasileiros que poderiam ter destinos como, a seguridade social, o FNSP, as entidades e unidades executoras de escolas públicas, entre outros, previstos no artigo 30 da lei 13.756 – que trata sobre a destinação do produto da arrecadação da loteria –, caso a loteria de apostas fosse brasileira e regulamentada nos moldes do que prevê o supramencionado artigo 29.
É inegável que quanto mais o Governo Brasileiro prorroga a regulamentação das apostas esportivas no Brasil, maior é o ganho que ele deixa de ter. Os dados apontam que as apostas esportivas online movimentam bilhões de dólares por ano, sendo esse valor totalmente remetido ao exterior. Embora o Governo Brasileiro cobre Imposto de Renda dos apostadores sobre os rendimentos obtidos com apostas online no exterior, tal valor é ínfimo perto dos benefícios que poderiam ser obtidos caso as apostas acontecessem aqui no Brasil – ainda mais se considerarmos não apenas os impostos que incidiriam sobre as empresas de aposta, mas também a geração de empregos e todo o valor que deveria ser revertido para a sociedade como produto da arrecadação da loteria.
Outro fator a ser levado em conta é que a regulamentação das apostas esportivas contribuiria para coibir golpes em sites de apostas e manipulação de resultados que, além de lesar o apostador, corrompem a essência dos campeonatos desportivos.
Apesar de ser de interesse dos grandes sites de apostas que não haja manipulação de resultados nos esportes, uma vez que o interesse do apostador em realizar a aposta advém justamente de sua pretensão de ganhar o prêmio acertando seu palpite, é pertinente observarmos que são diversos os casos de manipulação dos resultados já ocorridos em partidas de e-sports. Tal prática é ruim tanto para o desporto quanto para os sites de apostas, e certamente poderia ser mais bem coibida com a regulação das apostas esportivas no Brasil.
Conclusão
Diante do exposto, conclui-se que a efetiva regulamentação das apostas no Brasil, considerando o atual contexto, é mais do que necessária e deve ser realizada o quanto antes. É pertinente observar que as apostas esportivas só aumentaram nos últimos anos e, enquanto não há sua regulação, os sites estrangeiros consolidam-se no mercado nacional.
Qualquer atividade deste setor nascente no Brasil já começará em desvantagem frente aos grandes concorrentes estrangeiros. Todavia, é possível conceber que a regulamentação das apostas poderia afetar as empresas estrangeiras também, que eventualmente teriam que obter licenças do Governo Brasileiro para operar no Brasil, bem como seguir as demais disposições legais, inclusive no que concerne à distribuição do produto da arrecadação conforme o artigo 30 da lei 13.756.
Em última análise, apesar de o cenário já estar desfavorável à indústria nacional que sequer existe, ainda é possível que o Governo e a sociedade consigam se beneficiar das apostas esportivas. O que não é concebível é a permanência do atual cenário, no qual todos os recursos são destinados ao exterior.