Salta aos olhos de qualquer brasileiro e brasileira a situação de obras públicas paralisadas no Brasil, que se transformou em um verdadeiro canteiro de obras inacabadas. O vultuoso desperdício de dinheiro público decorrente de situações dessa natureza revolta até o mais apático cidadão, tornando este tema uma demanda política, para além de mera questão jurídica.
A causa deste fenômeno está associada a vários fatores, dentre os quais destacamos, para este artigo, a ultrapassada concepção dicotômica da teoria das nulidades presente na lei 8.666/93, que, apesar de superada por parte considerável da jurisprudência, ainda ecoa silente pelos canteiros de obra país adentro.
É que o art. 591 da referida lei impõe um regime mecanicista, binário e anacrônico de nulidades dos atos e contratos administrativos. Isto implica na existência de duas realidades aos atos: ou serão válidos e não terão obstáculos à sua eficácia; ou serão inválidos e deverão ser declarados nulos, situação que impede a produção de efeitos jurídicos futuros e desconstitui os efeitos já produzidos.
A origem desta racionalidade está no pensamento de Hely Lopes Meirelles, que sempre defendeu a ausência de distinção entre atos nulos e anuláveis no direito administrativo brasileiro2 e foi o redator do Decreto-lei 2.300/86, cuja redação de seu art. 49 foi integralmente aproveitada pelo art. 59 da lei 8.666/93.3
Trata-se de pensamento pautado exclusivamente na concepção formalista ou legalista de adequação de determinado ato ou procedimento às exigências prescritas em lei, de maneira que, sendo estas contrariadas, aqueles teriam de ser inevitavelmente anulados.
É como se a violação aos preceitos legais representasse um grau de reprovabilidade maior que qualquer consequência prática decorrente da suspensão da execução ou anulação de contratos administrativos. Coloca-se o equilíbrio dos interesses envolvidos em um patamar inferior à literalidade semântica das leis.
E é precisamente neste cenário que as paralisações de obras públicas se tornaram um problema sistêmico em nosso país, pois, uma vez constatado algum vício (nulo, anulável ou meramente irregular), a obra pode ser paralisada em decorrência da suspensão da execução do contrato ou da anulação da licitação que o precedeu.
Eis que em 2018 a lei 13.655/18 alterou o Decreto-lei 4.657/42, conhecido como lei de Introdução às Normas do Direito brasileiro (LINDB) e introduziu dispositivos que modificam expressamente a racionalidade mecanicista descrita acima.4
A LINDB passou a impor a consideração de consequências práticas das decisões, quando da invalidação de atos ou contratos administrativos (art. 20), bem como da indicação de condições para que o saneamento de eventuais irregularidades ocorra “de modo proporcional e equânime e sem prejuízo aos interesses gerais” (art. 21.).
O parágrafo único do art. 20, por sua vez, reforça o dever de motivação da decisão que pretenda invalidar atos ou contratos, sendo condição imprescindível a demonstração da necessidade e adequação da medida em face das possíveis alternativas. É dizer: o direito não mais pode sobrepor-se aos fatos, mas, sim, deve dialogar com eles, num movimento pendular entre a realidade fática e o arcabouço normativo.
Nesse sentido, as decisões não mais poderão partir de presunções como a que embasa a lógica mecanicista de nulidades, segundo a qual a violação a um preceito normativo sempre será mais reprovável do que a continuidade da relação jurídica originada do ato ou contrato analisado.
A regra geral, a partir de então, consiste na necessidade de analisar as possíveis consequências práticas da decisão para sopesar a seguinte equação: a violação a determinado preceito apresenta-se como mais reprovável, no caso concreto, do que as consequências práticas da anulação do ato ou contrato em análise? Em outras palavras, pode-se resumir a pergunta em: a continuidade da execução deste contrato ou ato administrativo é mais benéfica do que sua anulação?
A nova lei de Licitações (lei 14.133/21) não apenas supera a visão dicotômica da teoria das nulidades presentes na lei 8.666/93, como também verticaliza a análise imposta pela LINDB.
Como apontam Flávio Germano de Sena Teixeira Júnior e Marcos Nóbrega, em recente publicação, a nova lei de licitações materializa o que os autores chamam de “legalidade funcional”, à medida que o art. 146 da nova lei impõe a obrigatoriedade de se analisar pelo menos onze requisitos no momento de se decidir ou não pela suspensão da execução ou anulação de determinando contrato.5 A redação do art. 146 prevê que:
Art. 146. Constatada irregularidade no procedimento licitatório ou na execução contratual, caso não seja possível o saneamento, a decisão sobre a suspensão da execução ou anulação do contrato somente será adotada na hipótese em que se revelar medida de interesse público, com avaliação, entre outros, dos seguintes aspectos:
I – Impactos econômicos e financeiros decorrentes do atraso na fruição dos benefícios do objeto do contrato;
II – Riscos sociais, ambientais e à segurança da população local decorrentes do atraso na fruição dos benefícios do objeto do contrato;
III – motivação social e ambiental do contrato;
IV – Custo da deterioração ou da perda das parcelas executadas;
V – Despesa necessária à preservação das instalações e dos serviços já executados;
VI – Despesa inerente à desmobilização e ao posterior retorno às atividades;
VII – medidas efetivamente adotadas pelo titular do órgão ou entidade para o saneamento dos indícios de irregularidades apontados;
VIII – custo total e estágio de execução física e financeira dos contratos, dos convênios, das obras ou das parcelas envolvidas;
IX – Fechamento de postos de trabalho diretos e indiretos em razão da paralisação;
X – Custo para realização de nova licitação ou celebração de novo contrato;
XI – custo de oportunidade do capital durante o período de paralisação.
Parágrafo único. Caso a paralisação ou anulação não se revele medida de interesse público, o poder público deverá optar pela continuidade do contrato e pela solução da irregularidade por meio de indenização por perdas e danos, sem prejuízo da apuração de responsabilidade e da aplicação de penalidades cabíveis.
O que se vê da redação do dispositivo é a superação da ultrapassada teoria das nulidades contida na lei 8.666/93 pela adoção de uma teoria das nulidades que privilegia o dever de concretude em detrimento de formalismos.
A expressa permissão ao poder público de optar pela continuidade dos contratos – responsabilizando, obviamente, os particulares que derem causa às irregularidades – representa um verdadeiro destrave jurídico à situação das obras paralisadas, que nem chegarão a parar, de acordo com a redação do art. 146 da lei 14.133/21.
Não se trata, portanto, de chancela inconsequente às ilegalidades cometidas no bojo de processos licitatórios ou da execução contratual, eis que a responsabilização e aplicação de penalidades aos particulares, bem como a imposição do dever de indenizar por perdas e danos, são pressupostos para a continuidade dos contratos.
A prática ainda nos demonstrará se a intuição inicial gerada por esta alteração estará correta ou não. Certo é que, ao menos no plano teórico, o avanço é inegável.
1. Lei 8.666/93 Art. 59. A declaração de nulidade do contrato administrativo opera retroativamente impedindo os efeitos jurídicos que ele, ordinariamente, deveria produzir, além de desconstituir os já produzidos.
2. Segundo Hely Lopes Meirelles, em artigo publicado na RDA em 1964, “reconhecida e declarada a nulidade do ato, pela Administração ou pelo Judiciário, o pronunciamento de invalidade opera ex tunc, desfazendo todos os vínculos entre as partes e obrigando-as à reposição das coisas no statu quo ante, como conseqüência natural e lógica da decisão anulatória.” O autor prossegue, então, afirmando que “[E]m Direito Público não há lugar para os atos anuláveis (...) quando é de interêsse público - e tais são todos os atos administrativos - a sua legalidade se impõe como condição de validade e eficácia do ato, não se admitindo o arbítrio dos interessados para a sua manutenção ou invalidação, porque isto ofenderia a exigência de legitimidade da atuação pública.” MEIRELLES, Hely Lopes. Revogação e anulação de ato administrativo. Revista Direito Administrativo, Rio de Janeiro, v. 75, p. 31-35, 1964. p. 34-35. Disponível em: http://bibliotecadigital.fgv.br/ojs/index.php/rda/article/view/25736. Acesso em: 23 mar. 2021.
3. JUSTEN FILHO. Marçal. Palestra proferida na Escola da Magistratura do Estado do Rio de Janeiro (EMERJ) em 16. de ago. de 2019. Disponível aqui. Acesso em: 21 de mar. de 2021.
4. Apesar de a consideração de consequências práticas para fins decisórios não representar novidade no ordenamento jurídico brasileiro, vide a modulação de efeitos no controle de constitucionalidade. Neste sentido, ver: GABARDO, Emerson; SOUZA, Pablo Ademir de. O consequencialismo e a LINDB: a cientificidade das previsões quanto às consequências práticas das decisões. A&C – Revista de Direito Administrativo & Constitucional, Belo Horizonte, ano 20, n. 81, p. 97- 124, jul./set. 2020. DOI: 10.21056/aec.v20i81.1452.
5. TEIXEIRA JÚNIOR, Flávio Germano de Sena; NÓBREGA, Marcos. A Teoria das Invalidades na nova lei de Contratações Públicas e o equilíbrio dos interesses envolvidos. Revista Brasileira de Direito Público – RBDP, Belo Horizonte, ano 19, n. 72, p. 117-141, jan./mar. 2021. p. 131.