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A relativização do prazo decadencial da Administração Pública: A quem se exige a comprovação da má-fé prevista no art. 54, da lei 9.784/99?

Com o advento da autonomia do direito administrativo, esses institutos, tradicionalmente atrelados às relações civis, foram também positivados para reger as relações entre Estado e cidadão.

7/4/2021

Pode-se afirmar que a estabilidade das relações sociais é um dos fins de constituição do Direito. Por esse motivo, a regência dos institutos da prescrição e da decadência1 sempre acompanhou o percurso histórico dos direitos materiais, notadamente nos sistemas de civil law. Ou seja, não apenas a positivação do direito material em si para solucionar um conflito é suficiente para ordenar a vida social, mas o tempo para o exercício desse direito é igualmente necessário para atingir a mesma finalidade pacificadora.

Com o advento da autonomia do direito administrativo, esses institutos, tradicionalmente atrelados às relações civis, foram também positivados para reger as relações entre Estado e cidadão. O decreto 20.910/32 cuidou de regular a prescrição quinquenal das dívidas passivas e o direito de ação contra os entes federativos. Posteriormente, o decreto-lei 4.597/42 estendeu a sua aplicação às dívidas passivas das autarquias ou “entidades e órgãos paraestatais”. Já em relação à decadência, mais especificamente para a Administração Pública poder exercer a sua autotutela e rever atos eventualmente ilegais, a disciplina teve um caminho diferente.

Coube em grande medida ao Supremo Tribunal Federal, por meio da edição de enunciados de súmulas, estabelecer um norte à matéria. Primeiro, por meio da súmula 346/STF, aprovada em 13/12/63, em que se buscou estabelecer uma premissa essencial: a Administração Pública detém o poder de anular os seus próprios atos. Posteriormente, em 3/12/69, foi aprovada a súmula 473/STF, para complementar o enunciado anterior e dispor que os atos administrativos cuja confecção foi ilegal podem ser anulados (sem que deles se tenha originado direitos), ou podem ser revogados por motivo de conveniência e oportunidade, ressalvados eventuais direitos adquiridos.

A despeito disso, residia a celeuma a respeito do estabelecimento um prazo específico para o exercício desse poder, o que veio a ser definido por meio da lei 9.784/99, que, ao reger o processo administrativo, cuidou de dispor em seu artigo 54 que:

O direito da Administração de anular os atos administrativos de que decorram efeitos favoráveis para os destinatários decai em cinco anos, contados da data em que foram praticados, salvo comprovada má-fé.

Estabelecido o prazo de cinco anos de decadência, parece ter a norma assegurada a função pacificadora do instituto. Por outro lado, a exceção contida no final lança uma dúvida: quem precisa ter agido de má-fé para ressalvar a decadência? Apenas o beneficiário do ato, ou aquele que o confeccionou, ainda que o beneficiário não tenha tomado ciência de sua conduta?

De um lado, pode se ter a situação em que o próprio beneficiário do ato que se quer revisitar agiu de má-fé, e nesse sentido dúvidas não restariam de que a Administração Pública poderá rever a qualquer tempo.

Por outro lado, como se estabelece a situação quando o servidor que editou o ato, para auferir qualquer tipo de vantagem, agiu de má-fé, mas o terceiro que dele se beneficiou esteve de boa-fé?

Pode-se sustentar que a norma visa a proteger a própria Administração Pública, considerada a supremacia do interesse público em questão. Corrobora isso o fato de o ordenamento conferir especial proteção à Administração Pública, como o alargamento dos prazos processuais para a sua defesa2 e a imprescritibilidade das ações de ressarcimento3, de modo que seria possível extrair interpretação sistemática para afirmar pender mais o interesse da autotutela.

Ademais, o artigo 53 da lei 9.784/99 positiva o direito anteriormente reconhecido pela jurisprudência do STF na súmula 473/STF, ressalvando os direitos adquiridos. Todavia, tal como ocorrera na edição do enunciado sumular, poderia se afirmar que houve a opção por distinguir o ato de anular e o ato de revogar, sendo aquele mais gravoso e incapaz de produzir direitos, e este último a considerar os direitos adquiridos. Desse modo, a má-fé existente na confecção do ato é suficiente para inquinar a sua validade, independentemente de quem o praticou.

Entendemos, contudo, que essa posição não deve prevalecer.

Primeiro, a lei 9.784/99 não é mera norma protetora da Administração Pública, mas sim um regramento que estabelece procedimentos e visa a garantir segurança jurídica a todos que se relacionam com o Estado. Dito isso, há que se considerar que o regramento da decadência pressupõe o fim de se atingir a estabilidade das relações jurídicas. A única ocasião em que o ordenamento permite a perpetuação dos efeitos está previsto somente na Constituição Federal e, ainda assim, em hipótese restritíssima para ação de ressarcimento, cujos contornos têm sido dados pelo STF para estabelecer que somente aqueles tipificados na Lei de Improbidade Administrativa (Tema 889-RG). Assim, não há razões para amparar o pressuposto de máxima defesa da Administração, e, muito menos a sustentar uma equivocada interpretação ampliativa.

Segundo, o referido artigo 54 está em diretamente ligado ao princípio da confiança para com a Administração Pública, de modo que se garante ao beneficiário de boa-fé que efetivamente acredite na estabilidade do ato administrativo, inclusive podendo, decorridos os cinco anos, desfazer-se de eventuais documentos que poderiam ser apresentados para a defesa de seus interesses.

Terceiro, o STF, embora não tenha enfrentado diretamente esse tema, em outras ocasiões o tangenciou para afirmar que o ato volitivo a ser comprovado é apenas daquele que se beneficiou4: “A decadência pode ser afastada caso configurada a má-fé do interessado, o que deve ser analisado em procedimento próprio, com o respeito às garantias da ampla defesa e do devido processo legal”.

Mais recentemente, a Suprema Corte, ao julgar o RE 817338 (Tema 839-RG) que tratava da possibilidade de anular o ato mesmo após o transcurso de cinco anos, analisando a revogação das anistias concedidas a cabos da aeronáutica atingidos por portaria do ministro da Aeronáutica que, teve a oportunidade de colocar um ponto final sobre isso. Contudo, o debate fugiu um pouco sobre quem recairia a ressalva, uma vez que naquele caso a motivação do ato administrativo originário (Portaria 1.104/64) foi reconhecido como “exclusivamente política”, não tendo sido bem delimitado no acórdão se houve ou não má-fé dos beneficiários diretos pelos atos subsequentes, bastando, para o entendimento majoritário da Corte, o fato de que as situações “flagrantemente inconstitucionais” não podem ser consolidadas pelo decurso do tempo.

Ou seja, se o ato administrativo contrariar frontalmente a Constituição Federal (e naquele caso contrariava o artigo 8º do ADCT), o prazo poderá ser relativizado, independentemente do aspecto volitivo.

Por sua vez, extrai-se importante consideração trazia pelo Ministro Edson Fachin em seu voto vencido ao afirmar que, naquele caso, não se cogitaria a má-fé do beneficiário, motivo pelo qual deveria ser afastada a ressalva final do artigo 545. Como a questão central do julgamento, entretanto, caminhou para fixar a tese de que a inconstitucionalidade chapada seria suficiente para afastar a decadência (ponto este que restou vencido), não é possível ainda afirmar que a Corte afastou esse argumento. Aliás, se considerar o acima citado RMS 31.027, julgado pelo Ministro Dias Toffoli (que foi o relator vencedor do RE 817338), é possível afirmar que a tendência, nesse ponto específico, é de o STF um dia considerar que o beneficiário direto é quem tem que ter agido de má-fé.

Assim, a melhor aplicação desse dispositivo é por meio de interpretação restritiva, de modo que a ressalva do prazo deve recair tão somente ao próprio beneficiário do ato que agiu de má-fé, ou, em último caso, somente se o ato dispuser frontalmente contra a Constituição Federal (importante ressaltar que deve ser afronta direta, não podendo se falar em mera afronta a princípios da Administração Pública, por exemplo).

__________

1 Para rememorar, a prescrição diz respeito à perda da pretensão de obter a reparação por um direito violado, enquanto a decadência diz respeito à perda do direito em si. Enquanto na prescrição o prazo pode ser interrompido ou suspenso, o mesmo não se aplica à decadência (artigo 207 do Código Civil).

2 Cf. artigo 183 do Código de Processo Civil.

3 Cf. artigo 37, § 4º, da Constituição Federal.

4 RMS 31027 ED, Relator(a): DIAS TOFFOLI, Primeira Turma, julgado em 26/6/12, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-181 DIVULG 13/9/12 PUBLIC 14/9/12 (sublinhado não original).

5 RE 817338, Relator(a): DIAS TOFFOLI, Tribunal Pleno, julgado em 16/10/19, PROCESSO ELETRÔNICO REPERCUSSÃO GERAL - MÉRITO DJe-190 DIVULG 30/7/20 PUBLIC 31/7/20

Thiago Luiz da Costa
Advogado Mestre em Constituição e Sociedade (Direito Constitucional) pelo Instituto Brasiliense de Direito Público - IDP. Pós-graduado em Direito Processual Civil pelo Instituto Brasiliense de Direito Público - IDP. Graduado em Direito pelo Centro Universitário IESB. Integrante do escritório Trindade & Reis Advogados Associados.

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