Migalhas de Peso

Força executiva de instrumentos assinados eletronicamente sob a ótica do Poder Judiciário

Em razão do trabalho à distância, tornou-se ainda mais recorrente a utilização de ferramentas que possibilitam a assinatura eletrônica de contratos e outros instrumentos. A assinatura eletrônica, como se sabe, já estava inserida há alguns anos na vida empresarial pré-pandemia.

5/4/2021

É indiscutível que a pandemia da covid-19 tem sido uma das principais tragédias sanitárias vividas pelo Brasil e pelo mundo. Apesar de suas consequências ainda estarem longe de ser mapeadas e mensuradas, é também sabido que a crise, por outro lado, trouxe reflexões e melhorias nos hábitos das pessoas no ambiente empresarial.

Tanto é verdade que o mundo dos negócios foi incentivado no ano de 2020 a acelerar determinadas mudanças de hábito que já vinham ocorrendo de forma mais lenta nos anos anteriores, em razão de a pandemia impedir, de uma hora para outra, a reunião de colaboradores, parceiros, sócios e fornecedores em um mesmo local físico de trabalho.

Essas mudanças ocorreram em pontos importantes das relações negociais e administrativas, principalmente na forma da assinatura de contratos, atas societárias, notificações, etc. Nesse sentido, em razão do trabalho à distância, tornou-se ainda mais recorrente a utilização de ferramentas que possibilitam a assinatura eletrônica de contratos e outros instrumentos. A assinatura eletrônica, como se sabe, já estava inserida há alguns anos na vida empresarial pré-pandemia, mas, em razão dos novos tempos, a sua utilização foi acelerada em todos os setores da sociedade.

Assim que as empresas passaram a vivenciar a dificuldade e as dúvidas sobre como assinar tais instrumentos eletronicamente, principalmente os contratos celebrados ao longo da pandemia, uma série de perguntas passaram a ser feitas, por exemplo:

Assinatura eletrônica (gênero): é um conceito amplo, que abarca a assinatura digital (espécie)1. A assinatura eletrônica surge de formas variadas, a exemplo da assinatura mediante usuário/senha, SMS, token, código e etc 

Assinatura digital (espécie): utiliza o sistema de “chaves públicas” para garantir a identificação virtual do cidadão, regulado de acordo com a Infraestrutura de Chaves Públicas Brasileira (ICP-Brasil), criada pela Medida Provisória 2.200-2/01. É, portanto, a assinatura que faz uso de mídia credenciada pelo ICP-Brasil.

Outras dúvidas importantes também surgiram:

Todos esses questionamentos possuem respostas claras e objetivas. No entanto, focaremos em um questionamento que despertou a maior dúvida para advogados e juízes, qual seja: é considerado título executivo extrajudicial o contrato assinado eletronicamente pelas partes e duas testemunhas sem a utilização do certificado credenciado pelo ICP-Brasil?

Antes de responder diretamente ao questionamento, importante enfatizar que o Superior Tribunal de Justiça (“STJ”) já pacificou o entendimento2 de que, no caso do instrumento assinado digitalmente (com a utilização do certificado credenciado pelo ICP-Brasil), a ausência de testemunhas é suprida pelo fato de o documento eletrônico ter sido criptografado com certificação eletrônica e a assinatura digital aferida por uma Autoridade Certificadora legalmente constituída. O STJ entende, portanto, que a Autoridade Certificadora assume a posição das testemunhas e, com isso, a mera assinatura digital das partes já é suficiente para constituir o título executivo extrajudicial.

No entanto, no caso da assinatura eletrônica (sem a utilização do certificado credenciado pelo ICP-Brasil), ocorreria o mesmo? E se o documento fosse assinado eletronicamente sem tal certificado, mas com a assinatura de duas testemunhas?

Nessas hipóteses em que não há a assinatura eletrônica do contrato com o certificado credenciado pelo ICP-Brasil, mas há a assinatura por duas testemunhas, o Tribunal de Justiça de São Paulo (“TJ-SP”), em algumas oportunidades, posicionou-se pela insuficiência das assinaturas para a formação do título executivo extrajudicial, mesmo quando não houve oposição da parte contrária com relação à autenticidade e integridade da assinatura e do documento juntado aos autos.

Confira-se dois exemplos desse posicionamento jurisprudencial:

Apelação Cível

n.º 1026313-69.2018.8.26.0577
(julgado em 17.12.19)

Apelação Cível

n.º 1003531-41.2019.8.26.0510
(julgado em 16.7.20)

“(...) Tem-se, pois, que não restou demonstrada a  autenticidade das assinaturas digitais imputadas ao locador  autor, à locatária requerida e às testemunhas referidas no  ’Contrato de Locação Residencial’ em razão da ausência de credenciamento da entidade certificadora ao tempo da  contratação, daí porque não se havia mesmo falar no  reconhecimento de força executiva ao cogitado título por  não refletir obrigação certa, líquida e exigível, nos termos  do  artigo 783 do Código de Processo Civil (‘A execução  para cobrança de crédito fundar-se-á sempre em título de  obrigação certa, líquida e exigível’).”

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“(...) Todavia, observa-se que o contrato de locação eletrônico que lastreia a presente execução não atende aos requisitos necessários à sua admissibilidade como título executivo extrajudicial.

A admissibilidade do contrato firmado eletronicamente como título executivo extrajudicial pressupõe o prévio credenciamento da entidade certificadora junto à Infraestrutura de Chaves Públicas Brasileira - ICP-Brasil, a fim de se garantir a autenticidade das assinaturas digitais constantes no instrumento contratual.”

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O posicionamento do TJ-SP causa certa surpresa, pois: (I) a Medida Provisória 2.200-2/01, em seu artigo 10, § 2º, admite a utilização de “outro meio de comprovação da autoria e integridade de documentos em forma eletrônica, inclusive os que utilizem certificados não emitidos pela ICP-Brasil, desde que admitido pelas partes como válido ou aceito pela pessoa a quem for oposto o documento”; e (II) o Código de Processo Civil prevê em seu artigo 784, inciso III, que será considerado título executivo extrajudicial “o documento particular assinado pelo devedor e por 2 (duas) testemunhas”.

A indagação que fica é a seguinte: se as partes elegeram a plataforma de assinatura nos termos da Medida Provisória 2.200-2/01, tomaram o cuidado de colher a assinatura de duas testemunhas, bem como nenhuma delas se opôs à validade do documento quando requerido o cumprimento de uma obrigação nele transcrita, não teriam constituído um título executivo extrajudicial legítimo, justamente com base nos ditames legais acima referidos? A resposta parece ser positiva.

Se em casos tradicionais relativos à assinatura física de documentos, o STJ passou a entender que a assinatura posterior das testemunhas não invalida a constituição do título3, não faz sentido que se retire, de ofício, a executividade de um contrato assinado pelas partes e por duas testemunhas no mesmo ato, por meio de uma plataforma eleita por elas como de confiança e sem que haja qualquer alegação de problemas na autenticidade e integridade da assinatura e do documento.

Boa parte dos julgados estaduais que tratam do tema infelizmente não aprofundou a questão da assinatura eletrônica de modo suficiente e têm apenas replicado – de forma muito rasa e sem a devida atenção – o entendimento do STJ a respeito da necessidade da utilização de um certificado credenciado pelo ICP-Brasil. Os julgados estaduais estão, inadvertidamente, deixando de considerar o ponto mais importante para aplicação de um precedente ou de uma jurisprudência dominante: quais são os parâmetros fáticos sobre os quais a Corte Superior pacificou o seu entendimento sobre o tema.

Ao deixar de lado essa análise, as cortes estaduais passaram a gerar, desnecessariamente e sem qualquer justificativa, sérias dúvidas sobre a utilização de determinadas assinaturas eletrônicas. Também passam a alarmar as empresas sobre possível frustração de suas pretensões executivas, já que terão que perquirir seus respectivos direitos por meio de ações de conhecimento.

_______________________

1 Toda assinatura digital é eletrônica, mas nem todas assinatura eletrônica é digital

2 REsp 1.495.920-DF, Rel. Min. Paulo de Tarso Sanseverino, por maioria, julgado em 15/5/18, DJe 7/6/18.

3 Testemunhas seriam meramente instrumentárias: STJ, 3ª T., REsp 1.127/SP, rel. Min. Claudio Santos, j. em 07.11.1989, DJU 04.12.1989; STJ, 3ª T., REsp 8.849/DF, rel. Min. Nilson Naves, j. em 28.5.91, DJU 01.07.1991; STJ, 4ª T., REsp 541.267/RJ, rel. Min. Jorge Scartezzini, j. em 20.09.2005, DJU 17.10.2005.

Flávio Junqueira Volpe
Sócio do escritório Navarro & Nuevo Campos Advogados. Especialista em Direito Processual Civil pelo Instituto Brasileiro de Direito Processual (IBDP).

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