1. Introdução
O direito de retirada dos sócios de sociedade limitada é de extrema importância tanto para a continuidade da sociedade quanto para o sócio que a integra, devendo ser observado desde a sua constituição.
No presente artigo, a “retirada” é usada como sinônimo de “recesso”, o que é admitido em parte da doutrina, a citar o professor Sérgio Campinho, pedindo-se vênia para fazer breve introdução quanto a algumas caraterísticas da sociedade limitada que se relacionam ao direito de retirada do sócio.
A sociedade limitada sob o prisma concebido pelo Código Civil de 2002 tornou possível e conveniente a constituição jurídica e o prosseguimento das atividades econômicas tanto de empresas de micro e pequeno porte quanto serviu como ferramenta jurídica para empresas de grande dimensão e vultuoso investimento. Não é por acaso que se trata do tipo societário mais utilizado no País, agregando características que podem aderir tanto as da sociedade simples quanto as da sociedade anônima.
2. Desenvolvimento
Este tópico abordará algumas características da sociedade limitada, importantes para a análise do direito de retirada do sócio também a ser desenvolvida, em cotejo com as normas legais aplicáveis.
2.1 Características da sociedade limitada
O Código Civil de 2002 trouxe normas específicas para a sociedade limitada nos seus artigos 1.052 a 1.087, sendo que, dentre esses artigos, destaca-se o conteúdo do artigo 1.0531, que indicará, a maior aderência da sociedade limitada às regras da sociedade simples ou às regras da sociedade anônima.
Normalmente a aderência da sociedade limitada às regras da sociedade simples estará conectada com o caráter dessa sociedade ser de pessoas, enquanto que a aderência às regras da sociedade anônima se referirá a sociedade de capital, mas tal situação não é estanque e nem consiste em obrigação legal, podendo haver casos que abarcam elementos de ambas as naturezas, por poder demonstrar a sociedade limitada uma composição híbrida.
Nas lições de Fabio Ulhôa Coelho, constituem as sociedades de pessoas naquelas em que a materialização do objeto social depende mais dos atributos subjetivos dos sócios que da contribuição material destes. Por outro lado, essa contribuição material, no caso das sociedades de capital, tem mais relevância que as características individuais dos sócios.
Esta distinção na natureza da sociedade tem repercussão no que tange à alienação da participação societária (quotas ou ações), à sua penhorabilidade por dívida pessoal do sócio e ao regramento da sucessão por morte.2
Aduz-se, então que a sociedade limitada é contratual e híbrida, podendo ser de pessoas ou de capital, a depender do que dispuser o seu contrato social. Se o contrato social for omisso, a sociedade limitada indicará ser de pessoas, pois a regência supletiva das relações que envolvem a sociedade se dará pelas regras da sociedade simples (artigo 1.053 do Código Civil).
No entanto, se os sócios desejarem atribuir uma característica de sociedade de capital para a sociedade, o contrato social deverá expressamente prever que a regência supletiva será efetuada pela lei 6.404/76, nos termos do parágrafo único do artigo 1.053 do Código Civil.
Dito isto, considerando-se as diversas formas de organização que a sociedade limitada pode assumir, conclui-se que somente diante do caso concreto, no qual seja possível analisar as decisões dos sócios em relação a aplicação supletiva de normas, bem como a outras matérias de interesse da sociedade, haverá possibilidade de afirmar que se está diante de uma sociedade de pessoas ou de capital.
A análise casuística da sociedade limitada e da sua ligação mais estreita às características das sociedades simples ou das sociedades anônimas, em que pese à dinâmica e diversidade que traz a análise dos operadores do Direito, de longe traz segurança jurídica e tranquilidade aos sócios, cumprindo trazer à baila o acurado entendimento de Marlon Tomazette acerca da matéria:
Em primeiro lugar, o ideal seria que a sociedade limitada possuísse toda uma regulamentação própria, não necessitando de socorro a nenhuma legislação supletiva. Em segundo lugar, as normas sobre as sociedades simples nem sempre se adequam à velocidade das relações empresariais da atualidade, na medida em que não foram feitas para disciplinar as sociedades empresárias. Ora, as sociedades simples não se destinam ao exercício de atividade empresarial, ao contrário das sociedades limitadas, que exercem basicamente tal tipo de atividade. Assim sendo, é um contrassenso buscar nas sociedades simples soluções para as sociedades limitadas. Melhor seria a inexistência de remissões, ou ainda, a remissão simplesmente à lei de sociedades anônimas, que melhor se coaduna com a natureza das atividades desenvolvidas na limitada. Além disso, a dualidade de regimes legislativos da sociedade limitada é extremamente perigosa, pois pode gerar uma grande insegurança, sobretudo no que diz respeito às relações da sociedade com terceiros, matéria que não está sujeita a disciplina pelos sócios, nem é disciplinada especificamente em relação às limitadas, e possui tratamento diverso nas sociedades anônimas e nas sociedades simples.3
Não obstante a correção do entendimento acima exarado, fato é que o sistema legal e jurídico se estabeleceu com a dualidade legislativa mencionada e a solução das demandas não se dará em outro contexto.
2.2 Direito de retirada do sócio em sociedade limitada
Importante a abordagem acima para contextualizar o direito de retirada dos sócios, pois entende-se que o caráter pessoal ou capitalista da sociedade limitada, bem como a aplicação supletiva das normas das sociedades simples ou das sociedades anônimas deveria ser decisivo na possibilidade de fruição irrestrita do direito de retirada pelo sócio, o que não se percebe no entendimento de grande parte da doutrina e nem na prática jurídica.
A leitura do artigo 1.077 do Código Civil4 não deixa dúvidas que o direito de retirada do sócio de sociedade limitada está expressamente previsto, abarcando apenas as hipóteses de modificação do contrato, fusão da sociedade, incorporação de outra, ou dela por outra.
Diversamente de entendimento amplamente difundido acerca do tema, acredita-se que o legislador, ao elaborar o artigo em questão, pretendeu propositalmente prever senão todas, a grande maioria das demandas que pudessem surgir nas sociedades limitadas relativas ao direito de retirada do sócio, o que se denota pela inserção da hipótese de “modificação do contrato” constante no texto do artigo, referindo-se diretamente ao contrato social com os seus requisitos legais e matérias que lhe tocam, conforme previsão do artigo 997 do Código Civil.5
Assim, com base em interpretação literal e até mesmo sistemática do referido dispositivo legal, com relação ao direito de retirada do sócio de sociedade limitada não há que se falar em incidência do disposto no artigo 1.0296, pela “brecha” prevista no artigo 1.053 do mesmo diploma legal, eis que claramente não há omissão do legislador com relação ao direito de retirada do sócio.
Além de prever expressamente que o sócio da sociedade limitada só pode exercer o direito de retirada nas hipóteses do artigo 1.077, que aliás, como vimos, podem ser inúmeras se considerarmos que “modificação do contrato” admite uma infinidade de situações nos termos do artigo 997 do Código Civil, o legislador também abriu a possibilidade da saída imotivada do sócio da sociedade limitada pela cessão das suas quotas, o que se deu através do disposto no artigo 1.057, que contempla, caso não exista previsão diversa no contrato social, a possibilidade de os sócios se retirarem da sociedade através da livre cessão de suas quotas, total ou parcialmente, a outro sócio ou a terceiro, se não houver oposição de titulares de mais de um quarto do capital social.
Em que pese se entenda que a legislação específica da sociedade limitada já seria suficiente para dirimir as demandas do direito de retirada do sócio, inclusive impedindo a fruição do mesmo em alguns casos, é fato que a doutrina e a jurisprudência adotam entendimento diverso, no sentido de que o princípio constitucional da livre associação é aplicável no direito societário se sobrepõe ao disposto no artigo 1.077 do Código Civil, permitindo a aplicação irrestrita do artigo 1.029 do mesmo diploma legal.
Considera-se, nessa ótica, que o direito societário brasileiro está inserido em ordenamento jurídico mais amplo e regido pelos princípios e valores constitucionais basilares previstos na Constituição Federal, a exemplo da liberdade de associação, assegurada expressamente na Constituição Federal de 1988, em seu artigo 5º, incisos XVII e XX.
O inciso XX do artigo 5º da Constituição da República Federativa do Brasil7 estabelece que “ninguém poderá ser compelido a associar-se ou a permanecer associado” e, por se tratar de uma norma definidora de um direito fundamental, o § 1º do referido dispositivo legal prevê a sua aplicação imediata, que deve ser reconhecida em razão da supremacia constitucional e da superioridade das normas constitucionais dentro do ordenamento jurídico.
Vale trazer o entendimento de André Luiz Santa Cruz Ramos sobre o tema, no sentido de que “sendo um princípio constitucional, a liberdade de associação possui dois vetores, a saber: (I) positivo, que garante a todo e qualquer cidadão o direito de associar-se livremente, sem nenhuma restrição por parte do Estado e; (II) negativo, que assegura a todo e qualquer cidadão os direitos de não se associar e de se desassociar, sem nenhuma imposição por parte do Estado”8
Já Waldo Fazzio Júnior entende que o artigo 1.077 do Código Civil de 2002 apresenta o rol em numerus apertus, e, tendo como fundamento o princípio constitucional da liberdade de se associar ou se desassociar, o artigo 1.029, que regula o direito de recesso nas sociedades simples, seria subsidiariamente aplicável para disciplinar o direito do sócio de retirar-se da sociedade limitada de forma imotivada.9
Também se pede vênia para transcrever trecho da obra de Sérgio Campinho acerca da questão:
No Direito brasileiro preside, de há muito, o conceito de que o sócio não pode ser prisioneiro da sociedade. Não está ele obrigado a permanecer associado contrariamente à sua vontade. Em princípio, nos termos regulados pela lei ou pelo contrato social, pode o sócio despedir-se da sociedade mediante a cessão, a transferência de sua quota-capital, ocasião em que seria substituído na sociedade pelo cessionário respectivo. Estaria ele, assim, negociando sua participação social. Porém, é facultada ao sócio outra forma de afastamento da sociedade, diversa daquela na qual cede suas quotas a outro sócio ou a terceiro. Tem ele o impostergável direito de recesso, que o contrato social não pode nulificar ou obstruir. O direito de recesso se perfaz com a retirada do sócio da sociedade, mediante o pagamento, por esta, do valor de seus haveres sociais. Liquidar-se-á, na linguagem do Código Civil, a quota do sócio, com a resolução da sociedade em relação a ele. Utilizamos, nesta obra, os vocábulos “recesso” e “retirada” como sinônimos, pois para nós não há distinção. Querem refletir a despedida do sócio da sociedade por sua iniciativa. De todo modo, há quem proponha que o recesso traduza a despedida motivada; e a retirada, a imotivada. No caso de recesso ou retirada, portanto, ocorrerá a dissolução parcial da sociedade, fazendo jus o sócio retirante ao recebimento de seus haveres, apuráveis a partir da liquidação de sua quota-capital, devendo ser pagos pela sociedade diretamente ao sócio que dela se despede.10
Com efeito, desde a promulgação do Código Civil de 2002, grande parte da doutrina e a ampla maioria dos julgadores vêm entendendo que as regras das sociedades simples constituem regras gerais de direito societário e seriam aplicáveis a sociedade limitada, independentemente de previsão expressa da aplicação supletiva da Lei das Sociedades Anônimas no contrato social.
A distinção feita pela doutrina quanto a livre fruição do direito de retirada do sócio está adstrita apenas ao fato da sociedade limitada estar constituída por prazo determinado ou indeterminado, não importando se a sociedade tem perfil mais de pessoas ou de capital e nem se há previsão expressa no contrato social da aplicação supletiva da Lei das Sociedades Anônimas ou tácita das normas das sociedades simples.
Controvérsia maior na doutrina não há quanto a retirada de sócios em sociedade limitada por prazo determinado, quando, em regra, o contrato celebrado por prazo determinado não pode ser extinto antes do transcurso deste, salvo por justo motivo, pois as partes se comprometeram a permanecer vinculadas durante todo o tempo estipulado e este vínculo deve prevalecer sobre a liberdade do sócio anuente.
Nas sociedades limitadas concebidas por prazo determinado, admite-se que o próprio sócio ao ingressar na sociedade tem conhecimento do limite temporal em que ele terá que ficar vinculado, pelo que a sua saída só poderia ocorrer no caso de uma quebra da legitima expectativa dos sócios, nos termos do artigo 1.077 do Código Civil. O dispositivo legal em si não faz distinção com relação a sua aplicação também para as sociedades limitadas por prazo indeterminado.
No que concerne às sociedades constituídas por tempo indeterminado, considerando não haver, por óbvio, prazo para a sua dissolução e diante dos princípios da liberdade de contratar, da não perpetuidade das relações contratuais e da livre associação, essa no sentido de não ser obrigado a permanecer associado, entende a doutrina que não se pode submeter os sócios a um vínculo eterno e, estes, por sua vez, terão a prerrogativa de extingui-lo a qualquer tempo, sem necessidade de fundamentação.
Para Fábio Ulhoa Coelho, às sociedades constituídas com prazo indeterminado é possível aplicar o disposto no artigo 1.029 do Código Civil de 2002, isto é, o sócio pode exercer o direito de recesso a qualquer momento, sob o fundamento de que ninguém pode ser obrigado a se manter associado, nos termos dos princípios constitucionais da autonomia da vontade e da liberdade de associação.11
No mesmo sentido, Sérgio Campinho assevera:
É assegurado ao sócio pelo artigo 1.029 do Código Civil de 2002 – de aplicação compulsória à sociedade limitada, visto sua implicação na resolução, ainda que parcial, do contrato da sociedade em relação ao sócio dissidente –, o direito de, além dos casos previstos na lei ou no contrato, poder retirar-se da sociedade, sempre que lhe aprouver
(sociedade com prazo indeterminado) ou quando for verificada justa causa (sociedade com prazo determinado).12
Os dois juristas acima parafraseados, como a maior parte da doutrina, entendem que, nas sociedades limitadas com prazo de duração indeterminado, o sócio pode exercer seu direito de recesso por simples manifestação unilateral de vontade, o que independeria, inclusive, da anuência dos demais sócios.
Há, portanto, nesse entendimento, possibilidade irrestrita de fruição do direito de retirada do sócio nas sociedades limitadas com prazo indeterminado, bastando invocar a aplicação do artigo 1.029 do Código Civil, que traz a consagração do princípio da autonomia da vontade, pois não se pode admitir que o sócio seja obrigado a se manter contratado, por prazo indeterminado, contra sua própria vontade.
Entende-se inviável impor a condição de sócio a uma pessoa, contra a vontade desta, o que configuraria uma violação à affectio societatis e ao princípio dispositivo constitucional da liberdade de associação (artigo 5º, XX, Constituição Federal), que, por se tratar de um direito fundamental, não deve ser interpretado restritivamente.
Não se releva nessa análise, sob qualquer aspecto, o caráter pessoal ou capitalista da sociedade limitada em questão, nem mesmo se há previsão expressa no contrato social da aplicação supletiva da Lei da Sociedade Anônima.
A jurisprudência aplica de forma pacífica o mesmo entendimento no sentido de que cabe ao sócio desassociar-se quando assim desejar, sendo um direito potestativo seu em sociedades limitadas por prazo indeterminado:
RECURSO ESPECIAL. AÇÃO DE DISSOLUÇÃO PARCIAL DE SOCIEDADE LIMITADA DE PRAZO INDETERMINADO. NOTIFICAÇÃO PRÉVIA. APURAÇÃO DE HAVERES. DATA-BASE. PRAZO DE 60 DIAS.
1. Ação distribuída em 18/12/09. Recursos especiais interpostos em 4/9/17 e 18/9/17. Autos conclusos à Relatora em 17/4/18.
2. O propósito recursal é definir a data-base para apuração dos haveres devidos ao sócio em caso de dissolução parcial de sociedade limitada de prazo indeterminado.
3. O direito de recesso, tratando-se de sociedade limitada constituída por prazo indeterminado, pode ser exercido mediante envio de notificação prévia, respeitado o prazo mínimo de sessenta dias. Inteligência do artigo 1.029 do CC.
4. O contrato societário fica resolvido, em relação ao sócio retirante, após o transcurso de tal lapso temporal, devendo a data-base para apuração dos haveres levar em conta seu termo final.
RECURSO ESPECIAL NÃO PROVIDO. (REsp 1.735.360/MG, Rel. Ministra NANCY ANDRIGHI, TERCEIRA TURMA, julgado em 12/3/19, DJe 15/3/19)
Certamente o princípio constitucional da liberdade de associação é por demais relevante e deve nortear as relações dos sócios entre si e perante a sociedade em que se juntaram.
3. Considerações finais
Entretanto, com a máxima vênia ao entendimento amplamente adotado pela doutrina e aplicado massivamente pelos tribunais, entende-se que, com relação a retirada do sócio de sociedade limitada por tempo indeterminado, caso nitidamente caracterizada a mesma como de capital, deveria haver uma relativização do princípio da livre associação, no que concerne, contrário senso, ao ato de desassociar-se, não se admitindo o direito de retirada como direito absoluto e imediato do sócio.
Defende-se aqui a garantia desse direito individual, mas não a qualquer custo e sem maiores perquirições específicas com relação aos efeitos da saída imotivada do sócio na sociedade.
Retornando ao já explanado quanto a sociedade limitada de caráter pessoal, com nítida presença da affectio societatis e com perceptível inclinação para a utilização de práticas e normas legais relativas às sociedades simples, não se milita em favor da imposição de quaisquer condições ou prazo para a livre retirada do sócio. Nesse caso, normalmente de ocorrência em empresas de menor porte, há a nítida relação pessoal entre os sócios e o bom andamento da sociedade exige um relacionamento harmonioso entre as partes que a compõem.
Tal situação, entretanto, não se verifica em sociedades limitadas, por exemplo, com grande número de sócios, concebida através de investimentos financeiros mais significativos e que optaram expressamente no contrato social pela aplicação supletiva das normas da sociedade anônima. O caráter estável da sociedade, na ótica ora defendida, não depende de a sociedade ter sido concebida por prazo determinado ou indeterminado, depende do “esqueleto” jurídico, estrutural, operacional e financeiro que lhe foi conferido pelos sócios.
Quanto mais capitalista e parecida com a sociedade anônima for a sociedade limitada em que o sócio deseja se retirar, mais criteriosa deve ser a análise do seu direito de retirada imotivada, eis que o sócio ao ingressar na sociedade, pessoa maior e capaz ou ainda pessoa jurídica devidamente representada, o fez ciente das regras societárias legais e contratuais.
Note-se que ao sócio da sociedade limitada já está garantido o direito de retirada nos termos do artigo 1.077 do Código Civil, abarcando as hipóteses de modificação do contrato, fusão da sociedade, incorporação de outra, ou dela por outra.
O legislador, ao elaborar o artigo em questão, pretendeu prever senão todas, a grande maioria das demandas que pudessem surgir nas sociedades limitadas relativas ao direito de retirada do sócio, o que se denota pela inserção da hipótese de “modificação do contrato”, referindo-se ao contrato social com os seus requisitos legais, conforme previsão no artigo 997 do Código Civil.
Não há que se falar então no sócio ser um prisioneiro da sociedade, eis que qualquer alteração prejudicial ao mesmo quanto às questões atinentes a denominação, objeto, sede e prazo da sociedade; capital da sociedade; a quota de cada sócio no capital social, e o modo de realizá-la; as pessoas naturais incumbidas da administração da sociedade, e seus poderes e atribuições; a participação de cada sócio nos lucros e nas perdas; pode ensejar uma saída motivada do sócio que dissentiu, nos termos do artigo 1.077 do Código Civil.
Além da saída por justo motivo, o sócio, nos termos do artigo 1.057 do Código Civil pode ainda, na ausência de previsão expressa em contrário no contrato social, ceder as suas quotas aos demais sócios ou até mesmo a terceiros caso não haja oposição de mais de um quarto do capital. Tal hipótese também confere ao sócio uma porta de saída da sociedade que não mais lhe convém permanecer.
Dessa maneira, uma vez não se colocando as hipóteses do artigo 1.077 do Código Civil para a saída motivada e nem uma saída negociada com um ou mais sócios ou ainda com algum terceiro, a saída imotivada do sócio se daria por questões menos significativas e que, em tese, lhe são menos impactantes na qualidade de sócio.
O ponto que se busca alcançar é de que o tema possui extrema relevância para a sociedade e outras partes envolvidas nas relações da empresa e não só para o sócio. Podem e devem as partes tentar prever a situação referente a retirada dos sócios, cientes de que pode ser extremamente danosa para a sociedade e levá-la a extinção. Nesse sentido, quanto mais detalhado for o contrato social, as hipóteses de saída do sócio e a forma de pagamento dos seus haveres, maior será a proteção à continuidade do negócio.
Mas não possui qualquer valia a melhor e mais completa elaboração do contrato social, de forma a proteger os interesses individuais dos sócios e o da sociedade se ao final de uma disputa societária houver uma simples e sumária aplicação dos princípios constitucionais da autonomia da vontade e da liberdade de associação, sem maior análise dos direitos coletivos que serão afetados pela saída repentina e imotivada do sócio.
Repita-se aqui que não se está a defender a anulação de tais princípios, mas sim a reflexão sobre a forma como os mesmos devem ser garantidos quando colidirem com outros princípios igualmente importantes e que afetam uma quantidade de pessoas muito maior que um único sócio.
Faz-se tal colocação porque atualmente se mostra cada vez mais presente e relevante a proteção à função social da empresa, essa na condição de ferramenta, quiçá principal, para garantia da dignidade da pessoa humana ao ser provedora de empregos e prosperidade econômica.
O conceito de função social da empresa engloba a ideia de que esta não deve visar somente o lucro, mas também preocupar-se com os reflexos que suas decisões têm perante a sociedade, seja de forma geral, incorporando ao bem privado uma utilização voltada para a coletividade; ou de forma específica, trazendo realização social ao empresário e para todos aqueles que colaboraram para alcançar tal fim.
De suma importância também é o princípio da manutenção da empresa, na medida em que a subsistência da sociedade empresária é condição prévia ao alcance de qualquer outro interesse. Dito isso, a continuidade de uma sociedade limitada que emprega pessoas e traz prosperidade econômica e social para a comunidade em que está inserida não pode ficar sujeita à vontade ou aos interesses de determinados sócios ou credores ou qualquer outro grupo, diante da relevância e amplitude de interesses que dependem da atividade empresarial para serem atendidos.
No ponto é válido trazer a observação de Calixto Salomão Filho, para quem a empresa é uma “instituição não-redutível ao interesse dos sócios”.
Tal afirmação, que é válida na atualidade para todas as sociedades empresárias, o é com maior razão em relação às companhias abertas, em face do seu caráter marcadamente institucional e “quase público”.13
Pode-se dizer então que nas disputas societárias, aqui incluindo-se a retirada imotivada de um sócio, devem ser analisados não só os direitos individuais dos sócios, mas também os inúmeros interesses que compõem a função social da empresa e de sua preservação, como parâmetros interpretativos das regras a serem aplicadas.
Defende-se, portanto, que haja maior aprofundamento na análise do direito de retirada do sócio de sociedade limitada, não bastando para a sua fruição irrestrita ou não que a sociedade seja constituída por prazo indeterminado ou determinado.
Mesmo nas sociedades limitadas de prazo indeterminado, quando casuisticamente se verificar que a mesma possui feição mais assemelhada a uma sociedade anônima do que de uma sociedade simples, ou seja, quando for mais capitalista e a affectio societatis tiver menos importância, deve haver mecanismos para a proteção da sociedade em relação a retirada imotivada do sócio.
Tais mecanismos, na melhor das hipóteses, podem e devem ser previstos no contrato social e em eventual acordo de sócios e não terão o condão de impedir a retirada do sócio de forma definitiva, mas poderão propiciar que a sociedade postergue a sua saída por determinado período de tempo ou ainda o alongue o prazo para pagamento dos seus haveres de forma a não colocar em risco a continuidade do negócio.
Mas mesmo na ausência de tais previsões contratuais, ou seja, na hipótese de um contrato social sucinto e sem maiores avenças no particular, caso não ocorra uma composição amigável, acredita-se que deveria haver proteção judicial à empresa, demonstrando a empresa que a saída imotivada do sócio naquela determinada circunstância causará efeito nefasto que poderá levá-la à extinção.
Nesse caso, parece claro que, diante de demonstrada probabilidade de prejuízo grave aos demais sócios, empregados, fornecedores e demais partes envolvidas nas relações empresariais (stakeholders) poderia e deveria o julgador relativizar o direito de retirada do sócio, mitigando os seus efeitos na forma antes indicada de postergação da saída do sócio por determinado período de tempo ou ainda o alongamento do prazo para pagamento dos seus haveres de forma a não colocar em risco a continuidade do negócio.
A colisão de direitos sempre é complexa e não acomoda integralmente os interesses de cada parte, trazendo perdas de lado a lado. O que há de se buscar é o equilíbrio dessas perdas de forma a não anular completamente qualquer dos direitos envolvidos.
Se de um lado é inarredável o direito do sócio de retirar-se imotivadamente da sociedade com base no princípio da autonomia da vontade e da livre associação, de outro extremo o princípio da continuidade do negócio e a função social da empresa, ambos alicerces do princípio da dignidade da pessoa humana no mundo atual, também devem ser respeitados e protegidos.
Sem sombra de dúvida a maior proteção à empresa, na condição de ferramenta da sociedade capitalista contemporânea para a busca do progresso econômico e da dignidade da pessoa humana, aliada a garantia da preservação dos direitos individuais dos sócios norteará as partes a um caminho da tentativa de composição justa e razoável, preservando o cerne dos princípios e valores envolvidos.
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1 Artigo 1.053. A sociedade limitada rege-se, nas omissões deste Capítulo, pelas normas da sociedade simples. Parágrafo único. O contrato social poderá prever a regência supletiva da sociedade limitada pelas normas da sociedade anônima.
2 COELHO, Fábio Ulhoa. Curso de direito comercial: direito de empresa. V. 2, 14. Ed. São Paulo: Saraiva, 2010, p. 25
3 Tomazette, Marlon Curso de direito empresarial : teoria geral e direito societário – volume 1 / Marlon Tomazette. – 10. ed. – São Paulo: Saraiva Educação, 2019.p 382.
4 Art. 1.077. Quando houver modificação do contrato, fusão da sociedade, incorporação de outra, ou dela por outra, terá o sócio que dissentiu o direito de retirar-se da sociedade, nos trinta dias subseqüentes à reunião, aplicando-se, no silêncio do contrato social antes vigente, o disposto no art. 1.031.
5 Art. 997. A sociedade constitui-se mediante contrato escrito, particular ou público, que, além de cláusulas estipuladas pelas partes, mencionará: I - nome, nacionalidade, estado civil, profissão e residência dos sócios, se pessoas naturais, e a firma ou a denominação, nacionalidade e sede dos sócios, se jurídicas; II - denominação, objeto, sede e prazo da sociedade; III - capital da sociedade, expresso em moeda corrente, podendo compreender qualquer espécie de bens, suscetíveis de avaliação pecuniária; IV - a quota de cada sócio no capital social, e o modo de realizá-la;
V - as prestações a que se obriga o sócio, cuja contribuição consista em serviços; VI - as pessoas naturais incumbidas da administração da sociedade, e seus poderes e atribuições; VII - a participação de cada sócio nos lucros e nas perdas; VIII - se os sócios respondem, ou não, subsidiariamente, pelas obrigações sociais. Parágrafo único. É ineficaz em relação a terceiros qualquer pacto separado, contrário ao disposto no instrumento do contrato.
6 Art. 1.029. Além dos casos previstos na lei ou no contrato, qualquer sócio pode retirar-se da sociedade; se de prazo indeterminado, mediante notificação aos demais sócios, com antecedência mínima de sessenta dias; se de prazo determinado, provando judicialmente justa causa.
7 Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:
[...]
XX - ninguém poderá ser compelido a associar-se ou a permanecer associado;
8 RAMOS, André Luiz Santa Cruz. Liberdade de associação. In: COELHO, Fábio Ulhoa; NUNES, Marcelo Guedes (Orgs.). Princípios do direito comercial. Grupo de Estudos Preparatórios do Congresso de Direito Comercial. São Paulo, 2011, p. 17
9 FAZZIO JÚNIOR, Waldo. Sociedades limitadas: de acordo com o Código Civil de 2002. 2. Ed. São Paulo: Atlas, 2007, p. 169.
10 CAMPINHO, Sérgio. Direito de empresa / Sérgio Campinho prefácio de Sylvio Capanema de Souza. – 15. ed. – São Paulo: Saraiva Educação, 2018. p 117-118.
11 COELHO, Fábio Ulhoa. A sociedade limitada no novo código civil. São Paulo: Saraiva, 2003, p. 103.
12 CAMPINHO, Sérgio. O direito de empresa à luz do novo código civil. Rio de Janeiro: Renovar, 2003. P. 209/210
13 SALOMÃO FILHO, Calixto. O novo direito societário. São Paulo: Malheiros Editores, 2002. p. 31
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BRASIL. CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL DE 1988. Disponível clicando aqui Acesso em: 15 maio 2020
BRASIL. LEI 10.406 DE 10 DE JANEIRO DE 2002. CÓDIGO CIVIL BRASILEIRO. Disponível clicando aqui Acesso em: 15 maio 2020.
CAMPINHO, Sérgio. O direito de empresa à luz do novo código civil. Rio de Janeiro: Renovar, 2003.
CAMPINHO, Sérgio. Direito de empresa / Sérgio Campinho prefácio de Sylvio Capanema de Souza. – 15. ed. – São Paulo: Saraiva Educação, 2018.
COELHO, Fábio Ulhoa. Curso de direito comercial: direito de empresa. V. 2, 14. Ed. São Paulo: Saraiva, 2010.
FAZZIO JÚNIOR, Waldo. Sociedades limitadas: de acordo com o Código Civil de 2002. 2. Ed. São Paulo: Atlas, 2007.
RAMOS, André Luiz Santa Cruz. Liberdade de associação. In: COELHO, Fábio Ulhoa; NUNES, Marcelo Guedes (Orgs.). Princípios do direito comercial. Grupo de Estudos Preparatórios do Congresso de Direito Comercial. São Paulo, 2011,
SALOMÃO FILHO, Calixto. O novo direito societário. São Paulo: Malheiros Editores, 2002.
TOMAZETTE, Marlon Curso de direito empresarial : teoria geral e direito societário – volume 1 / Marlon Tomazette. – 10. ed. – São Paulo: Saraiva Educação, 2019.