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A capacidade postulatória do presidente da República e o sistema de precedentes

O autor analisa a recente polêmica envolvendo a propositura de ADI pelo presidente Jair Bolsonaro sem a representação pela Advocacia-Geral da União e os impactos no sistema de precedentes.

5/4/2021

(Imagem: Arte Migalhas)

O presidente Jair Bolsonaro ingressou, em 18/03/21, com ação direta de inconstitucionalidade (ADI) perante o Supremo Tribunal Federal (STF), tendo como objeto os decretos dos governadores do Rio Grande do Sul, da Bahia e do Distrito Federal, que versam sobre restrição de circulação de pessoas – entre outras medidas – para conter a pandemia de covid-19..

O que chamou a atenção da mídia – e da comunidade jurídica em especial – foi que a petição inicial estava firmada somente pelo presidente da República1.

Em 28/03/21, José Levi pediu exoneração do cargo de advogado-geral da União. A imprensa noticiou que o pedido de exoneração teria sido imposto pelo presidente da República em decorrência do seu descontentamento pelo fato de José Levi ter se negado a subscrever a peça inicial2.

O ministro Marco Aurélio, designado relator da ADI 6.764, havia indeferido a petição inicial, em 23/03/21, por entender que o presidente da República não possuiria capacidade postulatória. O relator, na sucinta decisão, afirmou que não se deve confundir legitimidade para a propositura da ADI com a capacidade postulatória. O presidente da República possuiria legitimidade para propor ADI, mas não ostentaria o ius postulandi, na óptica do relator3.

Em sequência, o relator afirmou que o presidente da República personifica a União e, assim, deve ser representado pela Advocacia-Geral da União (AGU).  O relator aparentemente fez confusão entre a figura do presidente da República e da União. A legitimidade estabelecida pelo art. 103, inc. I, da Constituição, é conferida ao presidente, e não à União. A AGU representa a União, e não o presidente da República (CRFB, art. 131; lei Complementar 73, art. 1º).

Constata-se, em primeira análise, que o ministro Marco Aurélio deveria ter concedido prazo ao presidente da República para a regularização processual atinente ao ius postulandi (CPC, arts. 76 e 321), em homenagem aos princípios da primazia do julgamento de mérito (CPC, art. 317) e da cooperação entre o juiz e as partes (CPC, art. 6º).

O ministro Marco Aurélio atribuiu a pecha de erro grosseiro ao fato de o presidente da República ter firmado a petição inicial sem a representação da AGU, o que tornaria o vício insanável. Com todo o respeito, a afirmativa do relator não merece guarida.

O STF, em precedente firmado na ADI 127-MC-QO-AL4, em 20/11/89, por unanimidade, estatuiu que os legitimados constantes no art. 103, incisos I a VII, da CRFB5, ostentam legitimidade e capacidade postulatória. Destarte, o presidente da República não necessitaria de representação judicial da AGU ou de advogado privado. A jurisprudência do STF pacificou-se nesse sentido.

Desse modo, o ato processual do requerente não poderia ter sido tachado de erro grosseiro, pois calcado em precedente vinculante (CRFB, art. 102, § 2º; CPC, art. 927, I e V). Havia legítima expectativa do presidente da República quanto à correção do seu ato, com fulcro no princípio da proteção da confiança, que deve pautar as relações entre o jurisdicionado e o Judiciário.

Ao ministro Marco Aurélio cabia o ônus argumentativo de demonstrar a distinção (distinguishing) ou a superação (overruling) para deixar de seguir precedente vinculante (CPC, art. 489, § 1º, inc. VI). Ao revés, na decisão monocrática, o relator não se submeteu ao dever de referência à jurisprudência do Tribunal.

O relator da ADI 127, ministro Celso de Mello, inicialmente, asseverou que o governador de Alagoas não possuiria capacidade postulatória. Contudo, não fulminou a exordial, mas concedeu prazo para o saneamento do vício. Ato contínuo, foi apresentada nova petição inicial firmada pelo governador e pelo procurador-geral do Estado. No julgamento pelo Plenário, o relator mudou o voto e aderiu ao entendimento dos demais ministros, tornando a decisão unânime, no sentido de atribuir capacidade postulatória aos legitimados do art. 103, incisos I a VII, da Constituição.

A bela metáfora desenvolvida por Ronald Dworkin6 permite visualizar a jurisprudência do STF como um “romance em cadeia”. Diversos ministros, ao longo dos anos, escrevem cada capítulo do romance, dando seguimento ao capítulo antecedente. A decisão monocrática em foco quebra essa construção colaborativa, pois interrompe a história narrada sem estabelecer integridade com os capítulos anteriores.

A ministra Rosa Weber, em substancioso voto, proferido no julgamento do HC 152.7527, em 04/04/18, teceu longa explanação acerca do princípio da colegialidade. A ministra votou em sentido contrário ao seu entendimento, curvando-se, no caso, a precedente vinculante.

Resta claro que o debate acerca da superação (overruling) do entendimento contido na ADI 127 deve ocorrer no Plenário, e não em sede de decisão monocrática. O ministro relator poderia ter sinalizado (signaling) – na ADI 6.764 – que o precedente estabelecido na ADI 127 mereceria ser debatido e, quiçá, superado pelo Plenário. Gize-se que o Plenário, nessa hipótese, poderia, por prudência, modular os efeitos da decisão, a fim de propiciar a segurança jurídica e prestigiar os princípios da proteção da confiança e da isonomia (lei 9.868, art. 27; CPC, art. 927, §§ 3º e 4º).

Restaria, então, a análise acerca da conveniência da superação (overruling) – não demonstrada na decisão monocrática em apreço.

Cumpre ressaltar que os legitimados do art. 103, incisos I a V, da Constituição, são os “presentantes”8 dos poderes Executivo e Legislativo nos âmbitos federal e estadual. A atribuição da capacidade postulatória a esses legitimados adviria justamente da condição de representantes diretos do povo.

De modo diverso, os legitimados dos incisos VI e VII, da CRFB, configuram pessoas jurídicas de direito privado (CRFB, art. 17, § 2º; CC, art. 44, I e V; Lei 13.488, art. 1º). A expressão da soberania popular reside no Legislativo, e não nos partidos políticos. Os demais entes privados, da mesma forma, não são titulares do poder político.

A respeito do procurador-geral da República e do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil não faz sentido perquirir-se acerca da capacidade postulatória.

A classificação acima proposta, fundamentaria a atribuição da capacidade postulatória aos titulares dos poderes Legislativo e Executivo – e não às confederações sindicais, às entidades de classe de âmbito nacional e aos partidos políticos.

No julgamento da ADI 127, os votos referem que a propositura de ADI pelos legitimados dos incisos I a V, do artigo 103, da Constituição, constitui “ato político”, próprio do processo objetivo de controle concentrado, que não se confunde com os processos subjetivos. Assim, no processo objetivo, esses legitimados não estariam jungidos às amarras das regras do Estatuto da Advocacia (lei 8.906, arts. 1º a 4º) ou do CPC (art. 103), que exigem representação por advogado9.

Os fundamentos da exigência da representação por advogado no tocante às pessoas jurídicas de direito privado – elencadas nos incisos VIII e IX da Constituição – não foram delineados no julgamento do leading case.

Na realidade, os votos não expuseram – de modo sistemático e convincente – classificação que diferenciasse os legitimados do art. 103 da Constituição e, assim, justificasse a atribuição da capacidade postulatória aos titulares do poder político, e não aos particulares.

O STF construiu classificação dos legitimados do art. 103 da Constituição, a fim de discriminar os legitimados universais - elencados nos incisos I, II, III e VII – dos legitimados especiais – elencados nos incisos IV, V, VI, VIII e IX. Os legitimados universais não necessitam demonstrar pertinência temática para a propositura de ADI. Em sentido oposto, os legitimados especiais devem demonstrar pertinência entre o interesse institucional do legitimado e o objeto da impugnação.

No julgamento da ADI 305-MC-RN10, em 22/05/91, o STF estabeleceu as bases da diferenciação entre os legitimados universais e os legitimados especiais. Na ocasião, o ministro Paulo Brossard divergiu, pois o constituinte teria equiparado todos os legitimados. Pode-se acrescentar a crítica de que o requisito de pertinência temática embaralha os requisitos do processo objetivo e do processo subjetivo, sendo que somente neste último seria exigido o interesse de agir (CPC, art. 17). Todos os legitimados do art. 103 da CRFB não agiriam movidos por interesse subjetivo, mas na defesa da integridade da ordem constitucional.

A preocupação, nos primeiros anos de vigência do texto constitucional de 1988, sobre a ampliação do rol de legitimados, centrou-se na provável avalanche de ações no STF. A fixação do STF do requisito de pertinência temática constituiria, nesse sentido, espécie de jurisprudência defensiva.

O STF vem abrandando o requisito da pertinência temática, como se constata no julgamento da ADI 3961-AgRg-DF, em 07/02/19. Na ocasião, o ministro Gilmar Mendes defendeu que o requisito de pertinência temática deveria ser totalmente extirpado. O abrandamento cada vez maior – ou o completo banimento – da pertinência temática vem sendo sinalizado em decisões do STF.

De modo oposto, em relação à capacidade postulatória, não há sinalização de mudança jurisprudencial, tampouco análise aprofundada e crítica do tema pela doutrina11.

A crítica da atribuição da capacidade postulatória ao presidente da República poderia fundar-se no reconhecimento da nobreza da função do STF – no controle concentrado – e na participação da advocacia pública como filtro técnico à atuação do chefe do Executivo, mormente diante da característica da AGU como instituição de garantia. 

Ao contrário, acredita-se que a capacidade postulatória do presidente da República ressalta a nobreza do controle concentrado. A atuação do chefe do Executivo, nesse sentido, não poderia sofrer limitação. Atrelar, de modo imperativo, o presidente da República ao filtro técnico inicial da AGU pode, em momentos críticos – e que demandam urgência na propositura de ADI –, criar embaraços que o constituinte originário pretendeu afastar.

O caso que deu origem à polêmica aqui dissecada revela a tensão que pode existir nas relações entre o titular do Executivo e o titular da AGU.

Em caso mais antigo, no bojo da ADI 5084-RO, em 21/02/14, a relatora ministra Rosa Weber indeferiu a petição inicial por ilegitimidade de parte, pois a demanda foi proposta pelo procurador-geral do Estado, e não pelo governador. O governador manifestou-se – e expressamente – não ratificou a petição inicial.

Vale ressaltar que a falta de filtro técnico inicial pode ser suprida pela manifestação posterior da AGU (CRFB, art. 103, § 3º), do procurador-geral da República (CRFB, art. 103, § 1º), dos órgãos ou autoridades dos quais emanou o ato impugnado (lei 9.868, arts. 6º, 10 e 12), de amici curiae (lei 9.868, art. 7º) e por meio de audiências públicas (lei 9.868, art. 9º, § 1º).

O tema da capacidade postulatória do presidente da República exige maior atenção da doutrina. O imbróglio jurídico-político do momento talvez propicie o aprofundamento do tema. O alerta que deve ressoar é o de que o sistema de precedentes deve ser respeitado, especialmente após a entrada em vigor do CPC de 2015. A superação – parcial ou total – do precedente definido na ADI 127 poderá – ou não – vir a ocorrer. Deve-se concluir que a decisão monocrática em exame – de fundamentação rarefeita – não se ajustou ao sistema de precedentes em vigor.



1. https://oglobo.globo.com/brasil/contrariando-historico-agu-nao-assinou-acao-do-governo-contra-toque-de-recolher-nos-estados-24935007

2. https://oglobo.globo.com/brasil/bolsonaro-demite-jose-levi-advogado-geral-da-uniao-1-24946774

3. http://www.stf.jus.br/arquivo/cms/noticiaNoticiaStf/anexo/ADI6764Decisa771o.pdf

4. http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=AC&docID=266140

5. Art. 103. Podem propor a ação direta de inconstitucionalidade e a ação declaratória de constitucionalidade: I - o Presidente da República; II - a Mesa do Senado Federal; III - a Mesa da Câmara dos Deputados; IV - a Mesa de Assembleia Legislativa ou da Câmara Legislativa do Distrito Federal ; V - o Governador de Estado ou do Distrito Federal; VI - o Procurador-Geral da República; VII - o Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil; VIII - partido político com representação no Congresso Nacional; IX - confederação sindical ou entidade de classe de âmbito nacional.

6. DWORKIN, Ronald. Uma Questão de Princípio. 3. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2019.

7. http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=TP&docID=15132272

8. Expressão consagrada por Pontes de Miranda, que afirmava que os dirigentes ˜presentavam” as pessoas jurídicas. Os dirigentes, porém, poderiam outorgar poderes a terceiros, que passariam a ser “representantes” da pessoa jurídica. As pessoas jurídicas – a União é pessoa jurídica de direito público interno - não podem expressar vontade diretamente – diferentemente das pessoas naturais -, mas somente por meio de seus “presentantes”. (PONTES DE MIRANDA. Comentários ao Código de Processo Civil. V. I. Rio de Janeiro: Forense, 1974. p. 267)

9. A legislação vigente à época do julgamento da ADI 127 (1989) permitia o mesmo raciocínio jurídico ora exposto.

10. http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=AC&docID=346300

11. A doutrina somente repete que o STF não atribui capacidade postulatória a certos legitimados: MENDES, Gilmar; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de Direito Constitucional. 12. ed. São Paulo: Saraiva, 2017. posição 1055. SARLET, Ingo; MARINONI, Luiz Guilherme; MITIDIERO, Daniel. Curso de Direito Constitucional. 6. ed. São Paulo: Saraiva, 2017. posição 1790-1794; LENZA, Pedro. Direito Constitucional. 23. ed. São Paulo: Saraiva, 2019. posição 568-569. MORAES, Guilherme Peña de. Curso de Direito Constitucional. 10. ed. São Paulo: Atlas, 2018. posição 565.

Carlos Augusto Thomaz
Professor da Faculdade Nacional de Direito da UFRJ

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