Migalhas de Peso

Fundos de investimento e a Justiça do Trabalho

Esse amplo direcionamento do capital nacional para as sociedades empresárias por meio dos fundos de investimento não tem passado incólume pela Justiça do Trabalho.

5/4/2021

(Imagem: Arte Migalhas)

O mercado de capitais é um sistema de distribuição de valores mobiliários do qual fazem parte bancos, corretoras, bolsas de valores e outras instituições para proporcionar liquidez aos títulos emitidos por empresas e, dessa forma, capitalizá-las. É, portanto, uma das principais ferramentas de investimento e democratização do capital de qualquer economia, pois direciona os recursos financeiros da sociedade para atividades econômicas como comércio, indústria e serviços. Um dos instrumentos desse mercado são os fundos de investimento.

No Brasil, muito embora sua figura tenha surgido legalmente em 19591, os fundos de investimento demoraram a se consolidar. Somente com a estabilização econômica trazida pelo Plano Real em 1994 e, posteriormente, a lei 10.303/01 é  que ela adquiriu verdadeiro papel de destaque na economia, níveis de crescimento expressivos e se consolidou como um relevante meio de investimento do brasileiro. É o que mostra relatório da Fundação Getúlio Vargas2 que demonstra que o patrimônio líquido total sob gestão em todos os fundos de investimento no Brasil saiu de 900 milhões de reais em 2006 para mais de cinco trilhões de reais em 2020.

Tem se tornado cada vez mais comum encontrar execuções trabalhistas direcionadas aos fundos de investimento, seja para responsabilização direta destes pela satisfação dos créditos trabalhistas, seja para responsabilização dos seus gestores e administradores, e até mesmo de seus cotistas por meio do patrimônio que detêm em tais fundos. Ocorre que este é um mercado com regras bastante específicas, forte regulação e ainda distante do dia a dia dos Juízes do Trabalho, razão pela qual se observa ainda certa dificuldade destes em analisar tais questões.

Um equívoco comumente verificado, por exemplo, é o requerimento de aplicação, aos fundos de investimento, dos exatos mesmos conceitos utilizados ordinariamente com as sociedades empresárias em geral, sem atentar para as claras diferenças que existem entre as duas figuras. Tal generalização não apenas se mostra tecnicamente equivocada, como acarreta grave risco para a economia, na medida em que subverte conceitos legais claros relacionados ao mercado de capitais, criando, assim, imensa insegurança jurídica.

É esse, portanto, o objetivo do presente artigo: analisar os principais aspectos que entendemos estarem em discussão na Justiça do Trabalho atualmente em relação a fundos de investimento, especialmente (I) se é possível a caracterização de grupo econômico entre eles e as empresas investidas e (II) se é possível responsabilizar seus administradores e gestores por débitos trabalhistas das investidas por meio da desconsideração da sua personalidade jurídica destas.

1. Execução trabalhista – Grupo econômico, desconsideração da personalidade jurídica e medidas de constrição patrimonial

Como se sabe, a execução trabalhista prima pela efetividade e atua em nome de alguns princípios consagrados do Direito do Trabalho, como o da proteção do trabalhador e o da primazia da realidade. Com esse objetivo e a aplicação desses princípios, ela acaba por flexibilizar alguns conceitos jurídicos tradicionais e aplicá-los mesmo que estejam ausentes alguns dos seus requisitos. É o que ocorre, por exemplo, com a declaração de grupo econômico e com a desconsideração da personalidade jurídica.

Assim, antes de se avaliar a possibilidade de execução trabalhista de fundos de investimentos, seus administradores e gestores, é importante fazer breves considerações sobre os institutos citados e sua aplicação na Justiça do Trabalho.

1.1. Grupo econômico

A legislação trabalhista brasileira estabelece que as empresas de um mesmo grupo econômico são solidariamente responsáveis pelos débitos trabalhistas de seus empregados e determina que haverá grupo econômico sempre que “uma ou mais empresas, tendo, embora, cada uma delas, personalidade jurídica própria, estiverem sob a direção, controle ou administração de outra”. Também estabelece que a mera identidade de sócios não é suficiente para, por si só, caracterizar o grupo, sendo necessária também “(...) a demonstração do interesse integrado, a efetiva comunhão de interesses e a atuação conjunta das empresas dele integrantes3.

A razão de tal entendimento é evidente: havendo essa atuação conjunta, a prestação de serviços por empregado de uma empresa acaba beneficiando todas as demais, de modo que não seria justo que ele deixasse de receber seus créditos quando o seu empregador está insolvente, se outras empresas do grupo que também se beneficiaram do seu trabalho, ainda que indiretamente, possuem meios de quitá-lo.

Ocorre que a solidariedade, como se sabe, não se presume. Deve decorrer de lei ou da vontade das partes, nos termos do artigo 246 do Código Civil. É necessário, portanto, que haja o enquadramento da situação no conceito de grupo econômico estabelecido pelo artigo 2º da CLT para que este seja caracterizado para fins trabalhistas e, assim, seja declarada a responsabilidade solidária. Do contrário, não há que se falar em solidariedade.

Não é, contudo, o que ocorre na Justiça do Trabalho. Em sua busca por efetividade na execução e pela satisfação dos créditos trabalhistas, em algumas oportunidades ela acaba por flexibilizar os conceitos da CLT e, assim, declarar o grupo econômico e executar empresa diversa do empregador, sem benefício de ordem, quando nem todos os requisitos previstos naquela Consolidação para a caracterização do grupo estão presentes. Esse é o maior risco quando se trata de fundos de investimento em execuções trabalhistas: no seu papel de investidores, podem deter participações nas empresas investidas, situação que pode ser facilmente confundida com os grupos econômicos das sociedades empresárias – o que já vem sendo requerido por alguns exequentes.

1.2. Desconsideração da personalidade jurídica

Muito embora já fosse aplicada anteriormente nos Tribunais e constasse do Código de Defesa do Consumidor (CDC), foi o Código Civil de 2002 que inseriu o instituto da desconsideração da personalidade jurídica no ordenamento de forma geral, estabelecendo em seu artigo 50 que “havendo abuso da personalidade jurídica, caracterizado pelo desvio de finalidade ou pela confusão patrimonial, poderão ser atingidos os bens particulares dos administradores ou sócios da pessoa jurídica”.

É pressuposto, portanto, para a desconsideração da personalidade jurídica, a ocorrência desses fatores: desvio de finalidade, os casos em que a sociedade é constituída já com o intuito de fraudar a lei, servindo como instrumento para obtenção de fins ilícitos ou confusão patrimonial, que inclui os casos em que a sociedade objetiva ocultar o real titular dos seus bens, servindo como fachada para inibir a responsabilidade pessoal deste4. Tais hipóteses, contudo, não são exaustivas: basta que seja verificado o abuso de direito na gestão da empresa para que seja possível fazer a sua despersonalização, como já constava mesmo antes do Código Civil de 2002, no artigo 28 do CDC5.

E isso porque a desconsideração da personalidade jurídica decorre na realidade da responsabilidade civil por ato ilícito e parte da premissa de que sócios, administradores ou outros indivíduos encarregados da gestão de uma empresa utilizaram-se dela para obter fins ilícitos e que devem, portanto, ser responsabilizadas com seus bens particulares. Demonstrado tal ato ilícito, portanto, lícita será a desconsideração. Por essa razão, para analisar a legalidade de utilização de tal instituto com fundos de investimentos, para se chegar a seus administradores e gestores, é a existência desse ato ilícito que deve ser verificada.

Feitas tais considerações sobre aspectos gerais dos institutos utilizados pela Justiça Trabalhista em execuções envolvendo fundos de investimento, é importante analisar o que é um fundo de investimento e quais as suas principais diferenças das sociedades empresárias para ser possível entender se a eles se aplicam os institutos citados.

2. Fundos de investimento

Não há como se avaliar a possibilidade de execução trabalhista de fundos de investimentos, seus administradores e gestores, por meio dos instrumentos jurídicos geralmente utilizados pela Justiça do Trabalho quando da execução de empresas, sem antes entender seus conceitos e partes.

2.1. Conceitos

Fundos de investimento e sociedades empresárias possuem natureza jurídica diversas e são regidos por instrumentos legais distintos. Enquanto os primeiros são regidos por instruções específicas da Comissão de Valores Mobiliários (CVM)6, pelas regras estabelecidas em seus próprios regulamentos e, mais recentemente, pelo Capítulo X do Código Civil7, as segundas são regidas precipuamente pelo Código Civil e, no caso das sociedades anônimas, pela Lei das S.A. (lei 6.404/76).

Uma empresa é, em síntese, a atividade economicamente organizada para a produção ou circulação de bens e serviços8. Já um fundo de investimento é uma comunhão de recursos, constituído sob a forma de condomínio de natureza especial, destinados, a depender de seu tipo, à aplicação de recurso em ativos financeiros, bens e direitos de qualquer natureza9. São, portanto, condomínios nos quais pequenos e grandes poupadores se reúnem, assessorados por administradores e gestores profissionais, devidamente registrados e regulados pela CVM, para obterem lucro com suas aplicações, os quais são distribuídos proporcionalmente às suas cotas, assim como o são os prejuízos. Nesse contexto, os fundos de investimento não possuem personalidade jurídica própria, “são corpos de normas, objetivas e impessoais, exatamente porque as sociedades por ações, ou os fundos de investimento, constituem reuniões de capitais, representados por ações ou quotas, e não reuniões de pessoas determinadas’”10.

De tal conceito já se denota que há clara distinção e autonomia entre o patrimônio deste e o dos seus cotistas. As cotas dos fundos de investimento são de propriedade dos cotistas-investidores, que aportaram valores no condomínio. Serão de propriedade do fundo, por outro lado, os seus ativos financeiros, como as ações de companhias negociadas em bolsa de valores que sejam por ele adquiridas. Significa dizer que ganhos ou perdas de patrimônio do fundo são distribuídos proporcionalmente entre todos os cotistas, conforme a quantidade de cotas detidas por cada um, consagrando a ideia de interesse comum entre todos.

Assim, o que se observa é que os fundos de investimento são entes sem personalidade jurídica própria, não se enquadrando no conceito técnico de sociedade empresária dado pelo Código Civil, e são resultados de aplicações financeiras decorrentes do esforço comum de investidores, geridos por empresas especializadas, que não se confundem com os próprios fundos, com as figuras dos investidores e com as empresas nas quais esses fundos são aplicados.

2.2. Administradores e gestores

Tanto os fundos de investimento quanto as sociedades empresárias possuem as figuras do administrador e do gestor (que nas sociedades empresárias são equivalentes). No entanto, da mesma forma que fundos de investimento e sociedades empresárias não se confundem em seus conceitos e características, não há semelhanças entre administradores de empresas e administradores e gestores de fundos de investimento.

A diferença mais significativa entre essas figuras é o fato de não haver qualquer relação societária entre o administrador de um fundo de investimentos e o próprio fundo, mas tão somente um contrato de prestação de serviços de administração fiduciária. O administrador é a pessoa jurídica autorizada pela CVM para o exercício profissional de administração de carteiras de valores mobiliários11, contratado pelo próprio fundo para prestar um conjunto de serviços relacionados direta ou indiretamente ao seu funcionamento e manutenção12. É quem dá aos potenciais investidores a segurança de que o fundo de investimento no qual aportaram dinheiro possui uma administração profissional e especializada, que observa todos os requisitos regulatórios.

O administrador do fundo, portanto, não administra as sociedades nas quais o fundo investe seus recursos, mas apenas o fundo em si quanto a seus aspectos formais e regulatórios, sempre por conta e ordem de seus cotistas, mediante honorários previamente acordados e nunca em benefício próprio. É uma relação com caráter meramente contratual para prestação de serviços de administração, na qual o administrador não é destinatário direto dos rendimentos do fundo por ele administrado.

O gestor do fundo de investimento, por sua vez, é uma figura que pode ser subcontratada pelo administrador, para atuar na gestão profissional dos ativos financeiros integrantes da carteira do fundo e, quando contratado, a ele cabe a responsabilidade acerca dos investimentos realizados pelo fundo com base na política de investimento e demais disposições previstas em seu regulamento. Assim, muito embora tenha o poder decisório em relação à estratégia de investimento dos fundos, também não se confunde com a figura do administrador de empresas por ser mero prestador de serviços que o faz mediante contrato regulado pela CVM.

A despeito de tais diferenças, tem se tornado cada vez mais comum pedidos, em reclamações trabalhistas, de execução dos administradores ou gestores dos fundos em decorrência da desconsideração da personalidade jurídica de empresa insolvente na Justiça do Trabalho investida por eles. Será adequado tal pedido?

3. Fundos de investimento na Justiça do Trabalho – Reconhecimento de grupo econômico e desconsideração da personalidade jurídica

Diante de todo o exposto, pergunta-se: dos conceitos de fundos de investimento, do administrador e do gestor dos fundos e dos requisitos para reconhecimento de grupo econômico e para desconsideração da personalidade jurídica na Justiça do Trabalho, é possível - e tecnicamente correta - a responsabilização trabalhista dos fundos de investimento, seus gestores e administradores?

Inicialmente, é importante observar a distinção clara existente na Lei em relação aos requisitos necessários para a caracterização de grupo econômico, daqueles que levam à descaracterização da personalidade jurídica das empresas. Para o primeiro, deve se verificar uma situação de fato que é válida e legal: que as empresas formam um grupo econômico, nos termos estabelecidos pela Lei para caracterizá-lo. Tal caracterização, portanto, independe da ocorrência de qualquer ato ilícito ou da intenção de violar a legislação trabalhista pelos integrantes do grupo, pois decorre da presunção de que em um grupo econômico a prestação de serviços beneficia a todas as empresas que o integram.

A desconsideração da personalidade jurídica, por outro lado, depende da ocorrência de um ato ilícito. Apenas com a comprovação de um evidente abuso da personalidade jurídica, seja pela existência de desvio de finalidade, confusão patrimonial ou outra causa relevante, é que se torna possível violar a regra básica de existência autônoma da sociedade regularmente constituída, do seu capital e a limitação da responsabilidade dos seus sócios.

A análise da possibilidade de responsabilização trabalhista de fundos de investimento deve considerar, portanto, essa distinção: para que o fundo seja declarado solidariamente responsável em razão de integrar o mesmo grupo econômico do devedor principal, deve ser possível enquadrá-lo nos requisitos do grupo econômico previstos no artigo 2º, § 2º e 3º, da CLT, em conjunto com todas as demais normas aplicáveis.

Quanto ao grupo econômico, denota-se do seu conceito que para a sua configuração é necessário que haja pelo menos duas empresas e que estas desenvolvam atividades econômicas. Assim, de início já se mostra inviável o reconhecimento de grupo econômico com fundos de investimento, pois estes não têm natureza empresarial. Ainda que se considere que os condomínios possam ser equiparáveis com uma empresa em sentido amplo, se entendermos essa como atividade econômica organizada para produção de bens e serviços, é impossível atribuir-lhe personalidade jurídica própria sem desvirtuar sua natureza jurídica ou violar o texto legal.

Há inúmeras decisões da Justiça do Trabalho13 e até mesmo da Justiça Federal14 consagrando justo esse entendimento: o de que fundos de investimento, suas gestoras e administradoras não podem figurar no polo passivo de uma reclamação trabalhista.

Assim, o que se conclui é que apenas as sociedades podem se unir fática ou juridicamente para aa exploração de atividade econômica e os fundos de investimento não se enquadram em tal hipótese, na medida em que são instituições criadas para atender determinados interesses, sem personalidade jurídica e autorizada a praticar tão somente os atos jurídicos estritamente indispensáveis à realização de tais interesses. E mais: ainda que se ultrapassasse tal barreira essencial, há ainda a necessidade de que haja prova de interesse integrado, comunhão de interesses e atuação conjunta – o que dificilmente ocorrerá entre as empresas executadas em determinada ação e fundos de investimento que eventualmente detém alguma participação.

Há um risco um pouco maior de se entender pela existência de tal caracterização nos casos de Fundos de Investimento em Participação (FIPs), posto que nesses a própria legislação autoriza uma maior influência dos fundos na gestão das investidas. De qualquer forma, mesmo estes não devem se enquadrar como grupo econômico, considerando que possuem as características básicas de qualquer fundo de investimento, sendo constituídos sob a forma de condomínio fechado (ou seja, com as quotas resgatáveis somente ao final do prazo do fundo), com objetivo de investir em sociedades brasileiras de capital aberto ou fechado e regulados pela CVM. São, portanto, meros veículos financiadores das empresas investidas que, ainda que participem da sua gestão na forma estabelecida pela CVM, não são os responsáveis pela parte operacional, administrativa e financeira - que fica a cargo dos seus administradores.

Além disso, há uma diferença quanto a consequência prática: o fundo de investimento não possui patrimônio próprio, sendo mera comunhão de recursos de terceiros. Assim, todo o seu patrimônio pertence aos investidores, de modo que em eventual reconhecimento de grupo econômico serão esses que acabarão sendo executados. Ou seja: em eventual responsabilização de um fundo de investimento por um débito trabalhista de uma empresa por ele investida, quem estará sendo executado por aquela dívida trabalhista são os cotistas daquele fundo – que nenhuma relação possuem com essas, além de, indiretamente, terem investido nelas.

Assim, o que se pode concluir é que não há como se responsabilizar solidariamente um fundo de investimento pela caracterização de grupo econômico se este não constitui uma sociedade empresária, não possui personalidade jurídica própria e se trata de mera comunhão de recursos de terceiros.

A desconstituição da personalidade jurídica é um pouco diferente. Como ela pressupõe um ato ilícito, uma tentativa de fraudar a legislação, não seria tecnicamente errado atingir o patrimônio de fundos de investimentos, administradores e gestores se comprovada a ocorrência de fraude. Esta, contudo, não pode ser presumida, devendo haver evidência concreta do abuso de personalidade jurídica para que se atravesse as suas camadas e se chegue a fundos de investimento, seus gestores ou administradores.

Não basta, portanto, a mera insuficiência de bens de determinada sociedade investida para que se autorize a execução do patrimônio de um fundo de investimento, do seu gestor ou administrador, pelo contrário: tal medida constitui verdadeira exceção, de modo que somente com essa tentativa comprovada de fraude é que se pode autorizar à Justiça do Trabalho flexibilizar o recorte dado à personalidade jurídica de cada empresa pelo Direito Civil. Foi o que ocorreu em decisão que entendeu pela responsabilização trabalhista de um fundo de investimento, mas consignou que esta não deve ser comum pelas peculiaridades de tal instituto, frisando que naquele caso específico ela era necessária por haver evidências de que o fundo acabou sendo o sócio controlador de diversas empresas com o intuito de se blindar em eventuais reclamatórias ajuizadas por empregados daquelas15. Neste caso, aplicou-se o Princípio da Primazia da Realidade e o fundo de investimento foi responsabilizado por débitos trabalhistas de uma sociedade investida. Tal entendimento é acertado.

A maior parte dos pedidos em processos trabalhistas para execução do patrimônio do fundo ou de seus gestores e administradores em razão da desconsideração da personalidade jurídica da executada, contudo, o faz com pressupostos equivocados, sem observar esses requisitos. Limitam-se a buscar a satisfação do crédito trabalhista mediante a inclusão do fundo, terceiro estranho à lide, com base tão somente na existência de relação entre esse e o real devedor – ainda que tal relação não enseje, pela lei, solidariedade ou qualquer outra possibilidade de responsabilização pelos créditos. Tal entendimento é equivocado e, por essa razão, geralmente rechaçado pelo Judiciário.

É vital que não se proceda dessa forma, sob pena de criar imensa insegurança jurídica que pode acabar prejudicando sobremaneira a própria economia brasileira. Deve haver, portanto, dilação probatória que comprove a utilização de determinado fundo de investimento para fins ilícitos para que este seja executado em razão de desconsideração da personalidade jurídica da executada, do contrário tal instituto também não será aplicável a eles.

4. Conclusão

Assim como fundos de investimento não se confundem com empresas quanto a características e objetivos, a eles não podem ser aplicadas indiscriminadamente as mesmas regras que se aplicam às empresas. E nisso se inclui o reconhecimento de grupo econômico para fins de responsabilização solidária e a desconsideração da personalidade jurídica na Justiça do Trabalho. Ambos os institutos se aplicam a sociedades empresárias, sendo que o primeiro pressupõe o reconhecimento de uma situação de fato, lícita – dominação ou comunhão de interesses entre duas empresas – e o segundo a comprovação de abuso de personalidade jurídica, ou seja, de um ato ilícito visando fraudar a legislação trabalhista.

Do conceito de ambos, denota-se de imediato que a inclusão de fundos de investimento em execuções trabalhistas com base apenas na inadimplência do empregador e no fato deste ter recebido algum investimento do fundo é tecnicamente incorreta – para não dizer absurda. Para a solidariedade deve haver previsão legal e na previsão que estabelece a solidariedade entre empresas pertencentes a um mesmo grupo jamais se poderia enquadrar um fundo de investimento, já que este não é empresa, não possui personalidade jurídica própria e é uma comunhão de recursos de terceiros absolutamente estranhos ao devedor.

A desconsideração da personalidade jurídica, por outro lado, até poderia ocorrer, mas não com base nos pressupostos que são postulados na Justiça do Trabalho para fazê-lo. Para que seja possível ultrapassar a barreira conceitual e regulatória que impediria a execução do fundo ou de seu patrimônio por dívidas trabalhistas de suas investidas, seria necessária uma concreta comprovação de que aquele fundo se trata de mero instrumento para obtenção de fins ilícitos e que seus cotistas ou gestor ou administrador são na realidade beneficiários desse abuso de personalidade – o que é uma situação absolutamente rara. Se busca, em suma, solucionar alguns dos principais impasses jurídicos que tem se verificado na Justiça do Trabalho quanto à responsabilidade trabalhista de fundos de investimento, em razão do entendimento que a manutenção de tais impasses é capaz de gerar graves repercussões sobre o mercado de capitais e, consequentemente, sobre a própria economia brasileira.

_________

1 Portaria nº 309/1959

2 In clique aqui [disponível on-line em 5/10/20].

3 Artigo 2º, § 2º e 3º do da CLT.

4 BELMONTE, Alexandre Agra. Instituições Civis no direito do trabalho. 3 ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2004. p. 526, 527.

5 Art. 28. O juiz poderá desconsiderar a personalidade jurídica da sociedade quando, em detrimento do consumidor, houver abuso de direito, excesso de poder, infração da lei, fato ou ato ilícito ou violação dos estatutos ou contrato social. A desconsideração também será efetivada quando houver falência, estado de insolvência, encerramento ou inatividade da pessoa jurídica provocados por má administração.

6 Instrução CVM 555/14 (regra geral de fundos) e demais instruções CVM para fundos específicos.

7 Incluído pela Lei nº 13.874, de 20 de setembro de 2019 (Lei da Liberdade Econômica).

8 BELMONTE, Alexandre Agra. Instituições Civis no direito do trabalho. 3 ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2004. p.508,509.

9 Arigo 1.368-C do Código Civil e Instrução CVM 555/14.

10 Fundos de investimento e a necessidade de observância do direito de preferência na alienação de suas quotas in Revista do BNDES 37, junho 2012.

11 Artigo 2º da Instrução 555/14 da CVM

12 Instrução CVM 555/14: “Art. 80. O administrador, observadas as limitações legais e as previstas nesta Instrução, tem poderes para praticar todos os atos necessários ao funcionamento do fundo de investimento, sendo responsável pela constituição do fundo e pela prestação de informações à CVM na forma desta Instrução e quando solicitado.”

13 Acórdão 20150533599, processo 00020691220145020041, Tribunal Regional do Trabalho da 2ª Região, 3ª turma, desembargador relator Nelson Nazar, julgado em 16 de junho de 2015; TRT-8, Processo 0000279-37.2017.5.08.0003, 3ª turma, relatora desembargadora Francisca Oliveira Fromigosa, julgado em 11 de dezembro de 2019, Publicado em 13 de dezembro de 2019; TRT-2. Processo: 0002165-78.2018.5.02.0079, 2ª turma, relatora: Jucirema Maria Godinho Gonçalves, julgado em 25 de julho de 2018; TRT-1 – Processo: 0101503-31.2016.5.01.0073, 73ª Vara do Trabalho do Rio de Janeiro, julgado em 24 de julho de 2017.

14 “O fundo de investimento não apresenta natureza jurídica compatível com a noção de grupo de empresas. Os recursos cedidos pelos investidores para aplicação no mercado de capitais formam um condomínio, com a entrega de cotas proporcionais à contribuição de cada um. Trata-se de instituição forjada para o atendimento de determinados interesses, sem que tenha personalidade jurídica em geral; está autorizada apenas a praticar os atos jurídicos estritamente indispensáveis à realização daqueles. A participação em grupo econômico não representa uma das possibilidades. Somente sociedades - modalidade de pessoa jurídica - podem se unir fática ou juridicamente para a exploração de atividade econômica. A legislação comercial, ao descrever "controlador" e "controlada", cogita de organizações empresariais autônomas (artigo 265 da Lei 6.404/1976). O fundo de investimento, na medida em que não detém patrimônio próprio e retrata simples comunhão de recursos, não dispõe de estrutura apropriada. Não deixa de ser uma parcela dos interesses dos investidores”. (TRF-3 Região, 2ª turma, AI: 17488/SP 0017488-89.2013.4.03.0000, relator: desembargador Federal Antonio Cedenho, Data de Julgamento: 9/12/14)

15 REDE DE CLÍNICAS ODONTOLÓGICAS. FUNDOS DE INVESTIMENTO. SOCIEDADE DE FINALIDADE ESPECÍFICA. GRUPO ECONÔMICO. CONFIGURAÇÃO. Na definição clássica de grupo econômico, este se caracteriza quando uma ou mais empresas, com personalidades jurídicas próprias, estiverem sob a direção, controle ou administração de outras (CLT, art. 2º, § 2º). Não se exige, necessariamente, que a prestação de serviços se dê diretamente ao responsável solidário, pois o fundamento jurídico da norma celetista transforma os integrantes do grupo em empregador único. A vetusta definição não deve, porém, ser interpretada dissociada de seu tempo, mormente quando se veem a cada dia novas e variadas formas de aglutinação de empresas, não havendo impedimento ao reconhecimento do grupo econômico pela simples ausência de verticalidade no comando do grupo. Embora não seja comum, não há qualquer impedimento a se reconhecer grupo econômico nos casos envolvendo fundos de investimentos e sociedades de finalidade específica, em que há mera aplicação de capital nas ações de determinada empresa. No caso, demonstrado que o encadeamento de empresas controladoras do capital social uma das outras - Pela posse majoritária das ações-, alcança o fundo de investimento controlador da rede de clínicas odontológicas integrada pela reclamada, conclui-se pela formação do grupo econômico, mormente quando a recorrida detinha 100% do capital social da sócia majoritária da empresa e dele se desfez pelo valor simbólico de u$1,00 (um dólar). Hipótese em que a segunda reclamada, sociedade de propósito específico, agiu como instrumento de blindagem, em prol exclusivo do fundo administrador da empresa falida, atraindo a corresponsabilidade econômica de todas as empresas que integram o grupo econômico, em face dos direitos do trabalhador. (TRT 10ª R.; RO 0000993-23.2011.5.10.0012; Rel. Des. Dorival Borges de Souza Neto; DEJTDF 9/8/13; Pág. 63 – g/n)

Flávia Azevedo
Sócia do departamento trabalhista do escritório Veirano Advogados.

Luiza Lemos
Associada do escritório Veirano Advogados.

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