O mais novo mecanismo da justiça penal negociada, implantado em 2019 pelo polêmico pacote anticrime (lei 13.964/19), advém da necessidade de esvaziar as imensas pilhas de processos criminais e oferecer uma saída alternativa para demandas que envolvam delitos de baixo potencial lesivo, cometidos sem violência ou grave ameaça.
Para quem convive com a lentidão do judiciário, sobretudo na seara criminal, não haveria melhor recurso senão a aceitação de um negócio jurídico extrajudicial, que seria celebrado antes mesmo do oferecimento da denúncia e resultaria na extinção da punibilidade do agente, ou seja, nada constará em seus antecedentes criminais.
Com a resolução de tais demandas de forma antecipada, a economia de recursos financeiros, que seriam dispostos para a tramitação de autos por diversas instâncias da justiça, torna-se mais um ponto positivo para a implantação dessa ferramenta.
Este incrível instrumento está disposto no artigo 28-A do Código de Processo Penal, onde se identificam as características do acordo de não persecução penal e suas peculiaridades, dele se extrai as principais informações a respeito desta inovação.
Como ferrenha crítica do ANPP, peço para que você, caro leitor, evidencie o caput do artigo 28-A, especificamente no trecho onde se exige uma confissão formal e circunstancial da prática delitiva e, por fim, que se destaque também o décimo e décimo primeiro parágrafos do mesmo dispositivo.
Em síntese, para que o investigado se beneficie do referido, deverá confessar o delito e cumprir à risca as condições impostas pelo MP, que vão desde a reparação do dano ou a restituição à vítima, pagamento de multa, renúncia a bens e direitos provenientes do crime e prestação de serviços à comunidade, sob pena de rescisão do acordado e posterior oferecimento da denúncia. Havendo descumprimento, o parquet poderá manifestar-se nos autos deixando de oferecer a suspensão condicional do processo.
O primeiro e principal ponto a ser assinalado é a obrigatoriedade da confissão, tal condição vai contra o direito à não autoincriminação, exposto no artigo 5º, inciso LXII da Constituição Federal. Ademais, saliento que nenhuma outra medida da justiça criminal negociada (transação penal, suspensão condicional do processo e acordo de delação premiada) conta com tamanha exigência.
Tal premissa além de inconstitucional, poderá acarretar prejuízos processuais irreversíveis ao acusado, tornando-se uma ameaça clara ao devido processo legal.
Embora o acordo de não persecução penal não possua cunho judicial ou pretensão punitiva, o seu descumprimento resultara na propositura de uma ação penal, já munida de uma confissão formal, e mesmo que tenha sido colhida em caráter pré-processual, será inevitável a sua repercussão no entendimento do julgador.
Ainda que o termo de confissão e a sua homologação sejam desentranhados dos autos, o órgão ministerial poderá, fundado no não cumprimento do acordo, dispensar a benesse da suspensão condicional do processo. Em outras palavras, a declaração do Ministério Público é suficiente para poluir os autos e inconscientemente repelir a imparcialidade do magistrado.
Além desses apontamentos, o acordo de não persecução penal conta ainda com a suspensão do juiz de garantias, mais uma tribulação.
O mesmo julgador que homologa o ANPP, ou seja, teve acesso à íntegra da confissão, será responsável por julgar o acusado na propositura da ação penal fundada no descumprimento do dispositivo. Inclusive, o ministro Marco Aurélio em recente decisão, manteve o entendimento de que o juízo a se pronunciar sobre a homologação deveria ser o competente para supervisionar o inquérito e, em caso de descumprimento do acordo, julgar o processo-crime (PET 7.990/DF, publicação: 23/02/2021).
Neste cenário, há hipótese de sobrevivência de qualquer mínimo traço de neutralidade por parte do magistrado no momento de proferir sua decisão final?
Sabemos que não.
O papel a ser desempenhado pelo acordo de não persecução penal, consiste em atender os clamores da justiça criminal, não em demonstrar para sociedade a confissão ou culpa do agente, além de imoral tal medida me parece absurdamente ilegal nos termos da Constituição Federal.
Afora os pontos já assentados, o mecanismo vem enfrentando diversas outras questões a serem esclarecidas e pacificadas pelos tribunais superiores. Uso como exemplo a aplicação da sua retroatividade, o papel jurisdicional desempenhado pelo Ministério Público, o seu oferecimento em crimes culposos com resultado violento e a ausência do juiz de garantias.
A negociação na esfera criminal é necessária e vantajosa para ambas as partes, deve seguir sendo ampliada, haja vista que reduz os custos processuais, possibilita a reparação de danos e evita o aumento na população carcerária, contribuindo com a sociedade de diversas formas, mas para que atinja o seu principal objetivo, não poderá ferir direitos constitucionais e eximir-se de possíveis danos ao devido processo legal.