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O julgamento da parcialidade do ex-juiz Sergio Moro e a importância do respeito às regras do jogo

O STF concluiu, em 23-3-21, o julgamento de habeas corpus apresentado pela defesa do ex-presidente Lula, tendo reconhecido, por maioria de 3x2, a parcialidade do ex-juiz Sérgio Moro na condução da chamada “ação penal do Triplex”, anulando-se, por consequência, todo o processo.

31/3/2021

I – Introdução: Operação “Lava Jato”, “Vaza Jato” e Operação Spoofing

A “Operação Lava Jato”, já bastante conhecida no Brasil e no mundo, originou-se no ano de 20141, desenvolvendo-se em sucessivas fases ao longo dos anos, tendo culminado em mais de uma centena de sentenças penais condenatórias, que atingiram diversos empresários, políticos e agentes públicos outros, muitos dos quais poderosos no cenário institucional brasileiro2.

Mas como tudo na vida tem o seu início, meio e fim, esse último muitas vezes acelerado por fatores que refogem ao nosso controle, em junho de 2019 surgiram as primeiras reportagens do site “the intercept Brasil”3, divulgando diálogos tóxicos e pouco republicanos mantidos durante largo espaço temporal entre os integrantes da assim proclamada “força-tarefa de Curitiba” e o então juiz Sérgio Moro, responsável pelo julgamento de todos os feitos em primeira instância. Surgia, ali, o que se convencionou denominar de “Vaza Jato”.

Com a Operação Spoofing, deflagrada em julho de 2019 com o objetivo de investigar as invasões de hackers às contas do Telegram das autoridades responsáveis pela condução da “lava jato” (basicamente procuradores da república e o juiz Moro)4, demonstrou-se que de fato tais autoridades foram hackeadas e que houve a captação criminosa de dados (diálogos)5, posteriormente repassados para terceiros, vindo parar nas mãos do jornalista Glenn Greenwald6, que os divulgou sistematicamente e a conta-gotas em seu veículo de imprensa The Intercept Brasil, conforme dito anteriormente.

Pensando nesses marcantes acontecimentos, cujos reflexos para a dogmática criminal são de todo evidentes, o presente artigo tem o propósito de analisar brevemente a suspeição do ex-juiz Sérgio Moro em relação ao “processo do Triplex”, julgada recentemente pela 2ª Turma do STF (abaixo II), e as questões jurídico-processuais subjacentes à previsível incompetência do juízo de Curitiba para processar e julgar os casos que envolvem o ex-presidente Lula, sobre as quais há uma decisão monocrática também recente, proferida pelo min. Edson Fachin (abaixo III), concluindo-se que o dogma da imparcialidade do julgador precisa ser preservado, ainda que em razão disso o combate à criminalidade se torne inefetivo (abaixo IV).

II – A suspeição do ex-juiz Sergio Moro em relação ao processo do Triplex: julgamento da 2ª Turma do STF

A 2ª Turma do Supremo Tribunal Federal (STF) finalmente julgou o chamado “habeas corpus da suspeição” do ex-juiz federal Sergio Moro7. Trata-se do HC 164.493-PR, ajuizado pela defesa do ex-presidente Lula no longínquo ano de 2018, cuja apreciação foi iniciada em novembro daquele ano e interrompida por um pedido de vista do min. Gilmar Mendes quando o resultado parcial estava de 2x0 pelo não conhecimento do writ, com manifestações nesse sentido dos ministros Edson Fachin (relator) e Carmen Lúcia8.

Ao debruçar-se sobre o HC 164.493-PR, que versa especificamente sobre a “ação penal do Triplex do Guarujá” movida pelo MPF de Curitiba contra Lula, a segunda turma do STF analisou os seguintes fatos, que denotariam suspeição, por parcialidade, do juiz Sergio Moro: 1) deferimento da condução coercitiva do paciente e de familiares seus no ano de 2016, o que causou uma grande espetacularização em detrimento dos direitos fundamentais do investigado; 2) indevida autorização para a interceptação de ramais telefônicos pertencentes ao paciente, familiares e advogados; 3) irregular divulgação, em 2016, do conteúdo de áudios captados em decorrência das interceptações; 4) momento histórico em que os atos judiciais objurgados foram exarados, envolvendo o processo de impeachment da então Presidente da República Dilma Rousseff; 5) condenação injusta do paciente; 6) atuação impeditiva por parte de Moro, que estava de férias em Portugal, quanto ao cumprimento de ordem de soltura do paciente prolatada por desembargador do TRF4; e 7) aceitação do convite feito pelo presidente eleito em 2018 para ocupar o cargo de Ministro da Justiça9. Além de tudo isso, mencionou-se reiteradamente nas sessões de julgamento a ilícita divulgação às vésperas do segundo turno das eleições de 2018 das tratativas de delação premiada do ex-ministro de Lula e Dilma Antonio Palocci, o que teria prejudicado o candidato do PT Fernando Haddad e beneficiado a eleição de Bolsonaro10.

Preliminarmente, uma questão jurídica deveras interessante trazida à baila por alguns ministros no julgamento aqui analisado foi a de definir se a suspeição poderia (ou não) ser discutida em sede de HC. Por maioria (3x2), contudo, com a mudança de voto da ministra Cármen Lúcia, decidiu-se que se há alguns precedentes no sentido de que o Tribunal pode reapreciar até decisões transitadas em julgado proferidas em revisão criminal11, com maior razão poderia sim discutir a suspeição pela estreita via do writ, desde que independa de dilação probatória12, embora o CPP traga em seu art. 95, inc. I, o instituto da exceção de suspeição, específico para tais situações. Nesse sentido, não há dúvidas de que a utilização do instituto do habeas corpus é fundamental para assegurar as posições jurídicas de liberdade do cidadão, o que nos faz lembrar da “doutrina brasileira do habeas corpus”13, que teve em Rui Barbosa um ardoroso defensor14.

Assim, julgando esse HC o STF reconheceu por 3 a 2 a parcialidade do ex-juiz Sergio Moro na condução da ação penal em apreço, o que implicou, do ponto de vista prático, na anulação de todos os atos processuais praticados, vale dizer, o processo deverá recomeçar do zero, nada se aproveitando15. Isso significa também que até mesmo as provas colhidas durante a investigação criminal (quebras de sigilo, buscas e apreensões, etc.) são imprestáveis. É bom ressaltar, ademais, que essa decisão não pode ser modificada pelo plenário do STF, sendo, portanto, definitiva. Lula, assim, nesse caso é inocente, porquanto a Constituição Federal de 1988 afirma, em seu art. 5º, inc. LVII, que “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória”.

III – A incompetência do juízo de Curitiba para processar e julgar os casos que envolvem o ex-presidente Lula: decisão monocrática do min. Edson Fachin

Nesse contexto, cumpre destacar que tramita ainda no STF um outro HC interposto pela defesa de Lula em 2020 (HC 193.726-PR), o qual cuida de questão jurídico-processual diferente, qual seja a incompetência da 13ª Vara Criminal Federal de Curitiba para processar e julgar as ações penais a que o ex-presidente responde, por não haver relação direta dos fatos investigados com os supostos desvios praticados contra a Petrobrás. Surpreendentemente, em 08 de março deste ano o min. Edson Fachin, relator do caso, proferiu decisão monocrática concedendo a ordem impetrada16, o que implicou na retirada de todos os processos contra Lula do juízo de Curitiba, declarado incompetente, com encaminhamento para o juízo do Distrito Federal, pois os fatos teriam sido praticados quando Lula era Presidente da República, justificando-se, assim, esse novo foro.

Todas essas questões são bastante relevantes e nos levam a esclarecer que suspeição e incompetência são institutos diferentes, com consequências jurídicas também diversas. Na incompetência os atos instrutórios podem ser convalidados pelo novo juízo, aproveitando-se provas e atos processuais outros, com a possibilidade de aceleração do novo julgamento. Ocorre que essa decisão monocrática do Min. Fachin será em um futuro próximo reavaliada pelo plenário do Supremo. Com efeito, se as coisas permanecerem como estão, todos os processos criminais contra o ex-presidente Lula serão julgados em Brasília, com a diferença de que em relação à ação penal do triplex todos os atos processuais obrigatoriamente terão que ser refeitos, pois apenas neste caso – pelo menos por enquanto – houve o reconhecimento da suspeição do juiz.

Não há dúvidas que a “operação lava jato” perdeu força ao longo dos anos e esse paroxismo influenciou no julgamento desses habeas corpus, com vitórias acachapantes para o ex-presidente Lula. Ao meu ver, a “lava jato” trouxe legados positivos, o principal dos quais, contrariamente ao efetivo combate à corrupção, como muitos ainda acreditam, foi demonstrar os riscos de um Estado autoritário, que utiliza o direito como instrumento de perseguição política contra inimigos (lawfare). Nesse cenário, o Congresso Nacional andou bem ao aprovar pelo menos duas leis muito importantes: 1) A Nova Lei do Abuso de Autoridade (lei 13.869, de 5-7-19); e, com sensíveis modificações, 2) O Pacote Anticrime (lei 13.964, de 24-12-19), que criou a figura do juiz das garantias.

Ocorre, porém, que infelizmente o juiz das garantias foi suspenso por prazo indeterminado (sine die) por decisão monocrática do min. Luiz Fux, proferida em janeiro de 2020 no âmbito das ADIs 6298, 6299, 6300 e 630517. O acumpliciamento entre procuradores da república e o juiz da causa, revelados pela “Vaza Jato” e pelos dados resgatados na Operação Spoofing, demonstra a corrupção do processo penal brasileiro pelos agentes estatais que conduziam a operação lava jato. Se tivéssemos a figura do juiz das garantias à época desses eventos, os riscos das arbitrariedades de Moro certamente teriam sido atenuados.

IV – Conclusão

Todos nós devemos lutar contra a corrupção, pois essa prática corrói o Estado Democrático de Direito. Contudo, a batalha não pode se dar com desrespeito às regras do jogo. A quebra do dever de imparcialidade gera inomináveis injustiças. Em outras palavras, não se deve reprimir o crime praticando crimes, como bem salientou o min. Gilmar Mendes. Mais que isso, o crime deve ser combatido sem que se cometa qualquer tipo de ilícito.

__________________________

1 Para uma rápida compreensão da Lava Jato, consulte-se: clique aqui.

2 Os resultados da Operação Lava Jato podem ser visualizados em: clique aqui.

3 O conjunto de reportagens pode ser acessado a partir do seguinte link: clique aqui.

4 Desde que veio a lume, o jornal Estadão tem publicado uma série de reportagens acerca da Operação Spoofing e dos seus mais importantes desdobramentos, as quais podem ser acessadas a partir do seguinte link: clique aqui.

5 O crime está descrito no art. 154-A (invasão de dispositivo informático) do Código Penal brasileiro, que diz: “Art. 154-A.  Invadir dispositivo informático alheio, conectado ou não à rede de computadores, mediante violação indevida de mecanismo de segurança e com o fim de obter, adulterar ou destruir dados ou informações sem autorização expressa ou tácita do titular do dispositivo ou instalar vulnerabilidades para obter vantagem ilícita: Pena - detenção, de 3 (três) meses a 1 (um) ano, e multa. (...) § 3º Se da invasão resultar a obtenção de conteúdo de comunicações eletrônicas privadas, segredos comerciais ou industriais, informações sigilosas, assim definidas em lei, ou o controle remoto não autorizado do dispositivo invadido: Pena - reclusão, de 6 (seis) meses a 2 (dois) anos, e multa, se a conduta não constitui crime mais grave. (...)”. Para acesso à íntegra da denúncia apresentada pelo Ministério Público Federal (MPF), consulte-se: clique aqui.

6 Em recente entrevista, concedida após a revogação da sua prisão preventiva, o hacker Walter Delgatti Neto detalhou os métodos utilizados para a obtenção criminosa dos diálogos. Disponível em: clique aqui.

7 As duas últimas sessões de julgamento (09-03-2021 e 23-03-2021) podem ser assistidas nos seguintes links: clique aqui e clique aqui.

8 Informações a esse respeito, incluindo a íntegra do voto do min. Fachin, podem ser conferidas em: http://portal.stf.jus.br/noticias/vernoticiadetalhe.asp?idconteudo=397584&ori=1.

9 A íntegra da inicial do “HC da suspeição” pode ser consultada em: clique aqui.

10 Para Ferrajoli, o requisito da imparcialidade do órgão julgador exprime que “o juiz não deve ter qualquer interesse, nem geral nem particular, em uma ou outra solução da controvérsia que é chamado a resolver, sendo a sua função decidir qual delas é verdadeira ou falsa”. Cf. FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão: teoria do garantismo penal. Trad. de Ana Paula Zomer Sica et al. 4. ed. rev. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2014, p. 534. Já a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão da Revolução Francesa de 1789 dispunha que todo ser humano tem direito a ser julgado por um tribunal independente e imparcial, ou seja, desinteressado quanto ao resultado do processo ou do julgamento. De igual modo estabelece o artigo 10 da Declaração Universal dos Direitos Humanos adotada e proclamada pela Assembleia Geral das Nações Unidas em dezembro de 1948.

11 Nesse sentido, veja-se HC 117055-MG, rel. min. Marco Aurélio, com a seguinte ementa: “HABEAS CORPUS – REVISÃO CRIMINAL – PRONUNCIAMENTO – TRÂNSITO EM JULGADO – NEUTRALIDADE. O fato de a decisão atacada haver transitado em julgado não é óbice a ter-se como adequada a impetração. RECEPTAÇÃO QUALIFICADA – CONFIGURAÇÃO”.

12 Nesse ponto, há vários precedentes: RHC 127.256/SP e 119.892/RO (Rel. Min. Gilmar Mendes); HC 77.622/SC (Rel. Min. Nelson Jobim). HC 102.965/RJ (Rel. Min. Celso de Mello); HC 94.641/BA (Rel. para acórdão Min. Joaquim Barbosa) e HC 86.963/RJ (rel. Min. Joaquim Barbosa), todos mencionados no voto do min. Lewandowski. No mesmo diapasão, segue ementa do HC 95.518/PR: “Processo Penal. Habeas Corpus. Suspeição de Magistrado. Conhecimento. A alegação de suspeição ou impedimento de magistrado pode ser examinada em sede de habeas corpus quando independente de dilação probatória. É possível verificar se o conjunto de decisões tomadas revela atuação parcial do magistrado neste habeas corpus, sem necessidade de produção de provas, o que inviabilizaria writ”.

13 A formulação ampla do texto constitucional permitindo o uso do habeas corpus para anular até mesmo ato administrativo que determinara o cancelamento de matrícula de aluno em escola pública, para garantir a realização de comícios eleitorais e o exercício de profissão, dentre outras possibilidades, deu nome à “doutrina brasileira do habeas corpus”. Cf. MENDES, Gilmar et al. Curso de direito constitucional. 6. ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2011, p. 466-467.

14 BARBOSA, Rui. Obras seletas, vol. 8. Brasília-DF: edição eBooksBrasil, fonte digital, Ministério da Cultura, 2000, especialmente as pgs. 327, 343 e 346, nas quais o autor faz questão de exaltar a utilidade dessa ação constitucional.

15 Vejam-se os votos dos ministros Gilmar Mendes e Ricardo Lewandowski em: clique aqui.

16 Disponível em: clique aqui.

17 O inteiro teor da decisão pode ser encontrado em: clique aqui.

Emetério Silva de Oliveira Neto
Advogado criminalista, sócio fundador do escritório Oliveira & Vasques Advogados, doutor em direito penal pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), mestre em direito pela Universidade Federal do Ceará (UFC), pós-doutorando pelo Programa de Pós-Graduação em Direito da UFC e professor de direito penal da Universidade Regional do Cariri (URCA).

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