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Método APAC: A justiça e a fraternidade no sistema prisional

O sistema prisional brasileiro necessita de método que possa garantir que a justiça seja feita sem ausentar-se a presença da fraternidade. Neste sentido a APAC passa ser uma alternativa para um cumprimento de pena com dignidade.

31/3/2021

No ano de 1972, na cidade paulista de São José dos Campos, o advogado Mário Ottoboni (falecido em 2019), reunindo alguns amigos com as mesmas suas preocupações, fundou uma entidade cuja sigla é APAC. Hoje esta sigla significa Associação de Apoio e Assistência aos Condenados, mas em sua origem significava Amando ao Próximo Amarás a Cristo. Esta segunda denominação ainda consta nos estatutos da entidade que, conquanto tenha mudado de nome, conservou seu espírito.

Oriunda da pastoral carcerária, a APAC é uma entidade parceira da Justiça que tem por objetivo cumprir os comandos da sentença criminal e promover uma mudança radical na vida do criminoso. Seu lema é “matar o criminoso e salvar o ser humano”. Para realizá-lo, precisa sondar os abismos dos presos e convidá-los a esse mesmo autoexame.

Dissemos convidá-los. É isso mesmo. A APAC não obriga, mas convida. Ainda que soe paradoxal, o tema da liberdade humana é imprescindível para a APAC em seu cumprimento da execução penal. O preso precisa conhecer a rotina, o método e o que será esperado dele antes de pedir seu ingresso na APAC. Depende de sua vontade.

A vontade, que comanda a ação, é primeiro guiada pelo intelecto que dá à pessoa razões para sua ação. Em resumo, a colaboração da vontade é fundamental mesmo nos casos de coerção, nos casos em que a liberdade humana exterior é tolhida.

Para realizar o que manda a execução penal – sempre em consonância com a Lei de Execução Penal e a Constituição Federal – a APAC aplica um método (chamado Método APAC, conforme nosso título) que tem doze fundamentos: a participação da comunidade; o recuperando ajudando o recuperando; o trabalho; assistência jurídica; espiritualidade; assistência à saúde; valorização humana; a família; o voluntário e o curso para sua formação; Centro de Reintegração Social – CRS; mérito; Jornada de Libertação com Cristo.

Tais fundamentos são considerados em seu conjunto para a aplicação e não isoladamente. Eles ainda podem ser lidos à luz da atual LEP sem qualquer incompatibilidade.

Não falaremos aqui de todos os fundamentos, mas daquele que foi considerado por Mário Ottoboni como a base do método: a valorização humana. É ela que permite a aplicação conjunta dos demais fundamentos e a unidade do método APAC. A comparação entre a valorização humana e dignidade não tarda a aparecer.

E assim o é porque a proposta de valorização humana do método APAC não é mais do que um modo de se expressar a dignidade que é própria de todos os seres humanos – independente de qualquer requisito exterior e arbitrário. Quando a dignidade encontra barreiras para ser reconhecida – seja a barreira de condutas mínimas exigidas, capacidades físicas e psíquicas ou até mesmo estágio de desenvolvimento humano (dissociação entre humanidade e pessoalidade) – é um sinal de que existe forte tendência para sua supressão na comunidade.

A APAC não é contrária a punição, mas sim a crueldade: tanto aquela praticada pelos criminosos quanto a que pode recair sobre eles no sistema prisional atual. A crueldade no sistema prisional não serviria para “punir melhor”, mas para aumentar o ressentimento de alguém que um dia retornará ao seio da sociedade (não há pena de morte nem prisão perpétua no Brasil) disposto a fazer pior do que antes.

Ao valorizar a dignidade humana a APAC é personalista, isto é, coloca a pessoa no centro de sua abordagem. De que modo isso se dá? Equilibrando, pela balança da equidade, as virtudes da justiça e da misericórdia.

Não se pode escapar à liberdade humana. O cumprimento dos requisitos legais da punição talvez não seja bastante para convencer o sujeito a não cometer novos crimes (tampouco tem conseguido dissuadir). É preciso que ele seja convencido a isso: a lei, em seu sentido próprio, é dirigida aos seres racionais e demanda participação no cumprimento. Com isso não se quer excluir o elemento coercitivo, mas dar-lhe um sentido próprio dentro de uma esfera maior de significado.

O tratamento digno – no contexto da punição – dá ao preso uma dimensão de sua própria personalidade e, como o pretende a APAC, também a da vítima. Um preso que passou pelo método APAC disse que lá, pela primeira vez, foi tratado feito gente. É assim como a APAC ilumina a inteligência e prepara a vontade do criminoso para uma reforma de vida: pelo convencimento.

Tal convencimento supõe ainda uma ideia importante que pode ser percebida tanto na gênese da APAC quanto no fundamento da valorização humana: a fraternidade. Esta ideia de que o outro é um igual – e que o direito começa numa relação de co-humanidade, conforme a expressão do professor Luis Fernando Barzotto – compreende todas as possibilidades humanas: da crueldade ao arrependimento. Por meio da fraternidade, a APAC lembra ao criminoso que ele ainda é pessoa; com isso, ela almeja que o criminoso também se lembre de que suas vítimas são pessoas.

Enfim, trata-se de um método que vem crescendo no Brasil e vem dando uma resposta a ressocialização do preso, ganhando com isto a pessoa humana e a nação.

Lafayette Pozzoli
Doutor em Filosofia do Direito pela PUC-SP. Professor na Faculdade de Direito da PUC-SP. Foi Coordenador do Mestrado em Direito e Pró-Reitor de Pós-Graduação, Pesquisa e Extensão no UNIVEM - Marília - SP. Advogado.

Gilmar Siqueira
Doutorando na UFPA. Mestre pela Univem, Marília. Integrante do Grupo de Pesquisa GEDs - Direitos Fundamentais à Luz da Doutrina Social - Direito e Fraternidade, cadastrado no Diretório de Grupos de Pesquisa do CNPq e certificado pela PUC-SP.

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