Migalhas de Peso

Mulheres, força de trabalho e economia: Uma discussão de gênero à luz da covid-19

As relações de classe como integrantes da exploração econômica de homens e mulheres engloba as relações sociais de sexo.

31/3/2021

(Imagem: Arte Migalhas)

As análises das feministas marxistas concluíram, a partir de estudos realizados nas últimas décadas, que a posição da mulher nas relações de trabalho está no centro das formas de exploração que caracterizam a dominação de gênero – ou patriarcal. Para Kergoat (1989) o conceito de trabalho deve englobar o trabalho doméstico, o trabalho não remunerado e o trabalho informal, uma vez que a inclusão desses elementos permite evidenciar o trabalho invisível exercido pelas mulheres, o que chama a atenção para a dimensão sexual do trabalho.

As relações de classe como integrantes da exploração econômica de homens e mulheres engloba as relações sociais de sexo, que são entendidas como desiguais, hierarquizadas, assimétricas, de exploração e opressão entre as duas categorias de sexo socialmente construídas. Elas são indissociáveis e permitem a análise das relações antagônicas entre homens e mulheres.

A divisão sexual do trabalho advém de um sistema patriarcal capitalista que criou divisões hierárquicas entre os sexos, designando às mulheres um baixo prestígio social submetendo-as a trabalhos precarizados e desvalorizados.

Percebe-se que essa divisão não é algo natural, tampouco um acordo entre homens e mulheres, pelo contrário, trata-se de uma relação de domínio. Ela possui determinações sociais e atende interesses de classe, raça e sexo. Ela se impôs gradativamente como uma modalidade da divisão social do trabalho, da mesma forma que a divisão intelectual, manual e internacional.

Nas relações sexuais de poder, uma das principais características da divisão sexual do trabalho é situar os homens no campo do trabalho produtivo e as mulheres no trabalho reprodutivo. O primeiro possui forte valor social, participa da esfera pública, política, religiosa, entre outras; já o segundo, resta a esfera privada, as atividades da a casa, o cuidado da família, e consequentemente, os subempregos, a dependência e o baixo poder de compra, de decisão e atividade política. 

A produção capitalista explora o trabalho da mulher tanto na esfera produtiva, em que recebem baixos salários e são desvalorizadas, quanto na esfera reprodutiva, em trabalho remunerado, ou não, no qual as mulheres garantem a reprodução da força de trabalho ao cuidar da família – marido e filhos -, que posteriormente destinarão sua energia ao mercado, empenhando sua força de trabalho pelo capital.

A mulher trabalhadora, em geral, realiza sua atividade de trabalho duplamente, dentro e fora de casa, ou, se quisermos, dentro e fora da fábrica. E, ao fazê-lo, além da duplicidade do ato do trabalho, ela é duplamente explorada pelo capital: desde logo por exercer, no espaço público, seu trabalho produtivo no âmbito fabril. Mas, no universo da vida privada, ela consome horas decisivas no trabalho doméstico, com o que possibilita (ao mesmo capital) a sua reprodução, nessa esfera do trabalho não diretamente mercantil, em que se criam as condições indispensáveis para a reprodução da força de trabalho de seus maridos, filhos/as e de si própria (ANTUNES, 1999)

 Tecer análises sobre a divisão sexual do trabalho permite evidenciar as formas de exploração capitalista invisibilizadas pela naturalização das subalternidades como consequência da construção social de papéis de gênero e suas diferentes qualificações e especificações para homens e mulheres.

A feminização do trabalho na produção e reprodução do capital implica numa superexploração das atividades desenvolvidas por mulheres, tanto na esfera pública quanto privada. Sem o trabalho doméstico e de cuidado, por exemplo, o Estado teria que arcar com escolas públicas em tempo integral, creches, lavanderias, ou aumentar o salário mínimo para que o trabalhador pudesse pagar por serviços necessários à reprodução da sua força de trabalho.

Assim, o capitalismo se desenvolve tendo como base uma parcela significativa do trabalho exercido de graça por mulheres, sustentado pela ideia de que esse trabalho é um ato de amor, um atributo feminino, natural à mulher.  A elas cabe a responsabilidade do trabalho reprodutivo e consequentemente, de dedicação e sucesso da prole. É importante ressaltar que o trabalho doméstico é mais do que limpar a casa, mas dispor de forma física, emocional e sexual para os assalariados, preparando-os para o labor, gerando e cuidado de futuros proletariados, esse é um trabalho que sem o qual a sociedade não funciona.

No contexto da pandemia do Covid-19, os fenômenos da divisão sexual do trabalho se mostram mais evidentes, principalmente no que diz respeito ao trabalho reprodutivo, exercido em maioria por mulheres. O trabalho doméstico e de cuidado realizado de forma não remunerada no interior dos domicílios foi intensificado, e agora, ele passa de trabalho invisível e desvalorizado, para uma possível valorização e cuidado por parte do próprio mercado.

De acordo com dados da pesquisa “Sem parar: o trabalho e a vida das mulheres na pandemia”1, das 2.641participantes, sendo mulheres de todas as regiões do Brasil, 49% das entrevistadas disseram ser responsáveis pelo cuidado de alguém, especialmente de idosos e crianças. Entre elas, as mulheres negras indicaram possuir menos apoio externo para realizar o trabalho em suas casas e o cuidado de filhos e demais familiares.

A pesquisa evidencia que no Brasil a maioria das trabalhadoras domésticas são mulheres negras, que antes e durante a pandemia são marcadas pela informalidade de seus trabalhos. São as mães solos que dependem de instituições públicas e rede de cuidado como apoio para manter seus empregos.

A divisão sexual e racial do trabalho não apenas organiza a distribuição desigual do cuidado nas casas, entre homens e mulheres, mas também, entre as mulheres. O não funcionamento de creches e escolas acarreta na insegurança alimentar de crianças, e intensifica as tarefas relacionadas diretamente ao cuidado – monitoramento, auxílio em atividades, alimentação, brincadeiras, afeto e saúde básica.

Tudo isso demonstra o quanto as relações de gênero, raça e classe estão imbricadas na organização do trabalho doméstico e de cuidado, e assim, da sociedade e da economia, sendo 64,4% das mulheres, de acordo com a pesquisa supracitada, prejudicadas pela sobrecarga do trabalho doméstico e de cuidado diante do trabalho remunerado. Além disso, elas estão também na linha de frente dos hospitais, abrigos, casas de repouso, serviços essenciais como supermercados e farmácias, colocando em risco sua própria saúde e de seus familiares.

Durante o isolamento social, as mulheres não desfrutam de tempo livre e lazer, pelo contrário, elas estão mais sobrecarregadas com as várias atividades realizadas em suas casas ou de terceiros e com o cuidado, o que acarreta no aprofundamento da desigualdade da divisão sexual do trabalho, uma vez que os estereótipos sociais atribuídos ao sexos/gênero feminino são reforçados nesse momento.

A pandemia evidencia que a possibilidade de contágio pelo coronavírus não é o único problema para as mulheres, mas também o desemprego, a diminuição de renda ou a falta dela, o adoecimento físico e mental, a sobrecarga do trabalho advinda da dedicação integral aos familiares e as tarefas domésticas, são pontos a serem discutidos e que precisam de uma resposta da sociedade e do Estado.

Apesar do isolamento ter modificado o mundo do trabalho produtivo, o trabalho doméstico e do cuidado permanecem como atributo feminino e reforçando o lugar das mulheres nas relações sociais, mas agora visíveis ao sistema capitalista, a preocupação com os impactos socioeconômicos que a pauperização feminina e como será o retorno dessa força de trabalho para seus postos de trabalho em meio ao isolamento intensificado se mostram presentes no debate sobre a divisão sexual do trabalho e a economia.

 _________

1. O trabalho e a vida das mulheres na pandemia - Relatório de pesquisa SEM PARAR. Disponível em: <http://mulheresnapandemia.sof.org.br/wp-content/uploads/2020/08/Relatorio_Pesquisa_SemParar.pdf>. Acesso em: 20 mar. 2021.

__________

ANTUNES, Ricardo. Os Sentidos do Trabalho: Ensaios sobre a afirmação e negação do trabalho. São Paulo: Boitempo, 1999.

CISNE, Mirla. Feminismo e consciência de classe no Brasil [livro eletrônico] – São Paulo: Cortez, 2015.

CISNE, Mirla; SANTOS, Silvana Mara Moraes dos. Feminismo, diversidade sexual e Serviço Social. São Paulo: Cortez, 2018.

KERGOAT, Danièle. Da divisão do trabalho entre os sexos, in HIRATA, Helena (org.). DIVISÃO CAPITALISTA DO TRABALHO. Tempo Social., São Paulo, v. 1, n. 2, p. 73-103, Dec.  1989.   Disponível em: <_http3a_ _www.scielo.br2f_scielo.php3f_script="sci_arttext&pid=S0103-20701989000200073&lng=en&nrm=iso">. Acesso em:  20 Mar.  2021.

Mônica Thaís Souza Ribeiro
Mestra em Direito e Políticas Públicas pelo UniCEUB. Professora. Advogada.

Joyce Siqueira Santos
Bacharela em Serviço Social - Universidade Católica de Brasília. Pós-graduada em Violência Doméstica - Faculdade Unyleya Pós -graduada em Gênero e Direito - Escola da Magistratura do DF

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