A partir da metade da década de 90 o Estado iniciou um processo de modernização onde houve uma alteração de posição estatal de um Estado empresário para gerencial, podendo essa alteração ser verificada com base na intervenção do Estado na economia onde ele deixou de prestar diretamente o serviço para regulá-lo e o mesmo ser prestado de forma mais eficiente, com maior qualidade, menor burocracia e reduzindo os gastos do cofre público.
Para essa desestatização da atividade, uma das medidas implementadas foi a criação de agências reguladoras (processo de agencificação), ou seja, um grupo especial de autarquias cujo objetivo é regular determinados setores de forma autônoma1, independente, com discricionariedade técnica e garantias diretivas.
Além de sua criação por lei específica, estabilidade nos mandatos de seus dirigentes, poder normativo, discricionariedade técnica, as agências regulam a prestação de serviço público através de permissionário e concessionário dos principais setores da economia brasileira.
Ocorre que a ideia de agências reguladoras trazidas de outros países se amoldou ao sincretismo brasileiro e dele não evolui. Ou seja, no modelo hiperjudicializado e concentrado na figura do chefe do executivo, com intenso paternalismo presidencial, as agências criadas não possuem autonomia plena para regular e operar.
Não só as limitações técnicas dos dirigentes (devido ao fato destes terem pouca especialização dentro da multidisciplinariedade de assuntos em que deveria conhecer), mas as normativas e orçamentárias parecem limitar verdadeiramente o poderio regulatório que poderia ser o modelo brasileiro de regulação.
Na década de 30, após a grande depressão estadunidense que levou o Estado a interferir diretamente na economia, iniciou-se o movimento intervencionista com o fito de garantir o welfare state.
Essa intervenção estatal fez com que ele atuasse diretamente nos diversos setores da economia, sobrecarregando a máquina pública. Assim, após a intensa estatização, iniciou-se na década de 70/90 a privatização da economia com vista ao interesse público.
Importa dizer que a regulação buscava corrigir o mercado de suas assimetrias, externalidades e demais efeitos intervencionistas para garantir o bem-estar social na abertura de um mercado econômico à iniciativa privada.
Para garantir a lisura do que se objetivou com a criação das agências reguladoras elas precisam agir com a mais alta transparência, autonomia e imparcialidade.
Tendo como premissa que a finalidade da regulação é garantir o interesse público coletivo mantendo a prestação da atividade regulada de forma hígida e otimizada aos interesses gerais, quando ocorre a ruptura da autonomia e imparcialidade do regulador está-se diante da chamada "captura do agente regulador".
A referida captura da agência ocorre por influências políticas, econômicas, empresariais, dentre outras. Nas palavras de Marçal Justen Filho2:
"A doutrina cunhou a expressão 'captura' para indicar a situação em que a agência se transforma em via de proteção e benefício para setores empresariais regulados. A captura configura quando a agência perde a condição de autoridade comprometida com a realização do interesse coletivo e passa a produzir atos destinados a legitimar a realização dos interesses egoísticos de um, alguns ou todos os segmentos empresariais regulados. A captura da agência se configura, então, como mais uma faceta do fenômeno de distorção de finalidades dos setores burocráticos estatais"
A captura, além de desvirtuar a finalidade da regulação, tem um efeito reverso de diminuição da qualidade do serviço, da eficiência e gera instabilidade do setor regulado.
Por mais que se busque autonomia para as agências reguladoras, não se pode perder de vista que elas se inserem em um governo – que muitas vezes não foi o que nomeou seus dirigentes atuais – e, assim, são sujeitas às pressões políticas e midiáticas ao seu redor.
Constitucionalmente3 cabe ao Tribunal de Contas da União a fiscalização dos atos praticados pelas agências reguladoras. Neste passo, a atuação ativamente velada do TCU sobre as agências é uma forma de exercer controle sobre entes que deveriam ser autônomos.
Atualmente é possível verificar que a atuação do TCU vai além da fiscalização orçamentária (dentre outras constitucionalmente outorgadas como pode ser visto no art. 71 da CF), é posterior e prévia, financeira e operacional, de atividade meio e fim. Essa atuação extrapola as competências constitucionalmente conferidas ao TCU e descaracteriza o fim a que se destinam as agências reguladoras. Após 20 anos inexiste consenso teórico ou fático de uma teoria administrativa regulatória ou mesmo uma posição da agência sobre sua governança institucional, assim como, inexiste órgão externo fiscalizador, de forma que o TCU acaba subvertendo-se para regulador da agência reguladora.
Como exemplo pode ser citado a consulta do Ministério das Comunicações acerca das formalidades para utilização da FUST4; ou, o resultado do Acórdão 240/2015 onde o TCU avaliou matérias de governança interna das agências reguladoras de infraestrutura (inclusive nos aspectos operacionais)5.
Em decorrência lógica da captura do regulador, faz-se necessário o ativismo judicial dos atos administrativos da agência, neste passo destacam-se duas teorias, a Teoria dos Motivos Determinantes e a Teoria da Deferência dos atos judiciais.
Segundo a primeira teoria, o Judiciário estaria apto a rever toda e qualquer decisão administrativa para verificação da existência dos motivos que levaram a administração pública àquela dada decisão de forma a evitar ou rechaçar a captura do regulador, assim como, dar legitimidade à decisão administrativa, evitando ilegalidades e motivando a mesma.
O ponto negativo da aplicação dessa teoria é a incerteza do regulado, ou possível investidor, onde qualquer decisão administrativa pode ser revista pelo Judiciário, sendo comprovado que agência reguladora não seria autônoma, nem mesmo técnica o suficiente, uma vez que o Poder Judiciário (que constitucionalmente não deveria intervir nos demais poderes) seria verdadeiro fiscalizador e revisor dos atos reguladores não havendo estabilidade decisória da instituição.
A segunda teoria (determinante) é a de deferência dos atos judiciais onde o ato administrativo/judicial estaria ligado à capacidade técnica da agência, ou seja, o judiciário deve respeito (deferência) à decisão administrativa pois a agência tem alta especialização na técnica envolvida naquele assunto concreto. Neste caso, o judiciário seria incompetente para realizar uma revisão da decisão, e foi nesse sentido que se pautou o leading case6 de discricionariedade técnica nos Estados Unidos no caso Skidmore v. Swift & Co., onde foi reconhecida a experiência e expertise das agências reguladoras face a tais atributos dos magistrados/judiciário.7
Importante destacar que neste caso o controle judicial estaria vinculado estritamente à legalidade do ato discutido.
A FGV fez uma pesquisa8 sobre a revisão dos atos das agências reguladoras onde constatou-se que os regulados são os que mais buscam o Judiciário para reclamar o ato regulatório, sendo a revisão da regulação propriamente dita o pedido mais almejado. Entretanto os atos de fiscalização e sansão foram os mais revisados.
Nesta discussão entre legalidade e mérito, não parece demais o pensamento de que o direito administrativo não se atualizou à situação atual. Importa dizer, a delegação do poder de polícia e poder administrativo do Estado para as agências reguladoras não estava insculpido no poder constituinte de 1988 e nessa inovação regulamentar ocorrida em meados dos anos 90, as teorias, doutrinas e o próprio direito não se aperfeiçoaram, ficando obsoleto face às inovações da sociedade.
O assunto é altamente complexo por qualquer ótica singular que se olhe, por esse motivo deve-se verificar esse controle jurisdicional de forma muito mais profunda e concreta.
A regulação busca interferir na atividade econômica recorrendo a um equilíbrio dos interesses da sociedade, não se pode almejar, portanto, que essa interferência e judicialização sejam analisadas e tratadas de forma superficial, ou como se fosse algo simples. Nos casos de omissão da agência, geralmente o Poder Judiciário não faz as vezes da agência, ao revés, reafirma sua autonomia e competência para emanar, fiscalizar e regulamentar a atividade escopo dela.
Não é difícil encontrar erros normativos nas agências reguladoras, entretanto, esses erros estariam adstritos ao controle de legalidade. São pontos de destaque para a análise dos problemas adicionais na revisão judicial de decisões das agências reguladoras, in verbis: "(i) a supervalorização de questões processuais, (ii) a falta de conhecimento técnico, (iii) influência do direito privado, e (iv) resistência em analisar o aspecto material da política regulatória, recorrendo-se ao formalismo9".
É possível verificar que um dos motivos pelo qual foi conferida à agência reguladora autonomia é justamente em razão de sua alta tecnicidade no assunto por ela tratado, técnica essa, que inexiste no Judiciário, motivo pelo qual esse deve se abster de julgar decisões de natureza específica, entretanto impossível deixar de ressaltar que o grande cerne da discussão é que (aparentemente) o problema regulatório no Brasil é majoritariamente a qualidade da regulação e seu impacto. Dessa forma, não se escusa que a decisão regulatória deve vir embasada nos aspectos técnicos-jurídicos, importa dizer, baseada na proporcionalidade, razoabilidade e motivação, cumprindo o devido processo administrativo.
O importante papel do judiciário ao buscar diminuir as consequências da captura é visível em casos como a Apelação Cível nº 342.73910 do TRF 5 onde restou decidida a ilegalidade da nomeação de conselheiro da Anatel que já tinha ocupado cargo para o concessionário regulado. A Ação Civil Pública foi proposta pelo Ministério Público Federal e fundamentou-se na proteção dos usuários do serviço público e na sociedade, destaca-se uma breve passagem que caracteriza o animus de captura:
"'diante de um conflito envolvendo interesses contrapostos da sociedade e das prestadoras de serviço de telecomunicações, a sua atuação estaria comprometida com os interesses deste último segmento. Necessário, pois, para que alguém represente a sociedade, não esteja comprometido com um segmento específico desta, a fim de que possa ter uma atuação imparcial em prol do bem comum'
[...]
A nomeação dos apelantes como membros do Conselho Consultivo da ANATEL representa o que a doutrina estrangeira e alguns doutrinadores brasileiros têm denominado de captura da agência pelos interesses regulados. Ocorre a captura do ente regulador quando grandes grupos de interesses ou empresas passam a influenciar as decisões e atuação do regulador, levando assim a agência a atender mais aos interesses das empresas (de onde vieram seus membros) do que os dos usuários do serviço, isto é, do que os interesses públicos. “É a situação em que a agência se transforma em via de proteção e benefício para setores empresariais regulados".
Tendo em vista o acórdão acima transcrito, seria possível concluir que a regulação de um setor é uma coalisão de interesses de seus agentes, portanto, existente a captura desde a criação das agências ou a captura é um sintoma da alta complexidade social do país?
Na atribuição de regular determinado setor da economia as agências reguladoras foram dotadas de autonomia e alto grau de capacidade técnica com fulcro no atendimento do interesse público.
O uso restrito da capacidade em regulação ocasionou uma diminuição de qualidade da atividade e de união aos pressupostos de interesse público que resultaram na captura do regulador frente a influências políticas e econômicas.
Para combater a captura, o Judiciário é chamado a atuar de forma a harmonizar os interesses postos sob tutela deste poder. Aplicando a deferência, restringe-se a análise de questões de legalidade do ato administrativo.
Em que pese o problema de a captura poder ser explicado sob diversas frentes, particularmente (com a devida vênia) concluo tal adversidade como externalidade negativa da complexa sociedade em que nos inserimos.
Diante de tal adversidade, frente ao risco a que se almeja prevenir – como uma das frentes de prevenção - o TCU foi veladamente invocado a atuar perante essas instituições objetivando reduzir a ocorrência de ilegalidades, abusos e da própria captura. Entretanto, sob esse argumento o Tribunal tem-se mostrada altamente intrusivo nos atos regulatórios das agências. A instabilidade do setor e o receio dos regulados frente ao poder do TCU, inclusive no apenamento pessoal dos envolvidos traz cada vez mais pavor da revolução de controle dos Tribunais aos atos ditos "autônomos" das agências
Ao revés do que se objetivava resguardar, o próprio sistema regulatório se subverteu a usurpação da política do lucro e o TCU à do controle.
1- Vide Decreto-lei nº200 de 1967, art. 5º, inciso I.
2- JUSTEN FILHO, Marçal. O direito das agências reguladoras independentes. São Paulo: Dialética, 2002, PP. 369-370
3- Art. 71. O controle externo, a cargo do Congresso Nacional, será exercido com o auxílio do Tribunal de Contas da União, ao qual compete:
[...] IV - realizar, por iniciativa própria, da Câmara dos Deputados, do Senado Federal, de Comissão técnica ou de inquérito, inspeções e auditorias de natureza contábil, financeira, orçamentária, operacional e patrimonial, nas unidades administrativas dos Poderes Legislativo, Executivo e Judiciário, e demais entidades referidas no inciso II;
4- PEREIRA NETO, Caio Mário da Silva; LANCIERI, Filippo Maria; ADAMI, Mateus Piva. O Diálogo Institucional das Agências Reguladoras com os Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário: uma proposta de sistematização. Sundfeld, Carlos Ari; ROSILHO, André Janjácomo. Direito da Regulação e Políticas Públicas. São Paulo: Malheiros, 2014.
5- Disponível aqui.
6- WANG, Daniel; PALMA, Juliana; COLOMBO, Daniel. Controle judicial dos atos regulatórios: uma análise da jurisprudência in SHAPIRO, Mário Gomes (org.). Direito Econômico Regulatório. São Paulo: Saraiva, 2010.
7- Vide ainda a decisão do STJ onde entendeu-se que "a tutela jurisdicional concedida em juízo sumário de delibação adentrou a análise de questões técnicas relativas ao serviço público de energia elétrica, configurando, a princípio, interferência judicial indevida na seara administrativa". AgRg no REsp 1.570.188/PE, Rel. Ministro MAURO CAMPBELL MARQUES, SEGUNDA TURMA, julgado em 10/03/2016, DJe 16/03/2016.
8- Idem referência 7.
9- Dados da pesquisa FGV mencionada anteriormente
10- Disponível aqui.