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Software padronizado - Imposição retroativa do ISS e insegurança jurídica

Injustificável que um contribuinte, fornecedor de software de prateleira/padronizado, que não tenha recolhido o ISS, em função de jurisprudência pacífica do STF, STJ e Tribunal de Justiça veja-se obrigado a recolher espontaneamente este tributo com acréscimos moratórios.

31/3/2021

No final de 2020, o STF julgou o mérito das ADIns 5.659 e 1.945 e decidiu que operações de licenciamento de software de qualquer natureza – padronizado, sob encomenda ou customizado – estão sujeitas ao ISS.

Os julgamentos foram norteados pelo voto do min. Dias Toffoli, que pode ser resumido pela transcrição dos seguintes trechos:

“(...) Não há dúvida de que o legislador complementar, amparado especialmente nos arts. 146, I; e 156, III, da Constituição Federal, buscou dirimir os conflitos de competência em matéria tributária envolvendo os softwares que surgiram. E o fez não se valendo daquele critério que o Supremo Tribunal Federal vinha adotando (isto é, de que só incidiria o imposto municipal no caso de o software ser encomendado) (...) Ou seja, considerando-se a LC nº 116/03 e o critério adotado pelo próprio legislador complementar, não vislumbro como se deixar de se aplicar o ISS às operações com programas de computador, notadamente tendo em vista o fato de que, ao meu sentir, o legislador não desbordou do conceito constitucional de “serviços de qualquer natureza”. (...) Associo a esse critério objetivo, positivado no direito nacional, a noção de que a elaboração de um software é um serviço que resulta do esforço humano, seja o software (I) feito por encomenda, voltado ao atendimento de necessidades específicas de um determinado usuário; (II) padronizado, fornecido em larga escala no varejo; (III) customizado, o qual contempla características tanto do software padronizado quanto do software por encomenda; (IV) disponibilizado via download, cujo instalador é transmitido eletronicamente de um servidor remoto para o computador do próprio usuário; (V) disponibilizado via computação em nuvem. (...) Não há como, a meu ver, desconsiderar esse elemento, ainda que estejamos diante de software que é replicado para comercialização com diversos usuários. E mesmo se considerando que, na operação com software padronizado, existe a transferência de um bem digital, que está consubstanciado, usualmente, no arquivo digital ou no conjunto de arquivos digitais, julgo que deve incidir sobre a operação o ISS.”

Em resumo, o voto vencedor conclui que:

Com relação ao licenciamento de software padronizado, portanto, houve um claro afastamento do entendimento, até então consolidado no STF e em todo o Judiciário, de que o ICMS incidia sobre essas operações1. Esta relevante modificação não passou despercebida pelo Min. Dias Toffoli, que reconheceu que o STF havia definido que somente o ICMS poderia ser cobrado sobre operações envolvendo software padronizado:

Como se sabe, no julgamento do RE 176.626/SP, sessão de 10/11/98, a 1ª turma da Corte concluiu pela possibilidade de o ICMS incidir sobre operações com software gravados em suporte físico e comercializados no varejo (softwares de prateleira). (...) No julgamento da medida cautelar na ADIn 1.945/MT, o Tribunal avançou e passou a considerar ser possível a incidência do ICMS alcançar o software comercializado por meio de transferência eletrônica de dados, o que inclui o download do bem via internet, não suspendendo, assim, dispositivo de lei estadual que continha previsão nesse sentido. (...) Do que foi exposto até aqui se depreende que a Corte tem considerado constitucional a incidência do ICMS sobre operações com software de prateleira (aquele comercializado no varejo com os consumidores em geral, gravado em um corpo tangível, como disquete, CD, DVD etc.). Também se depreende que a Corte vem sinalizando, por força do julgamento daquela medida cautelar, ser válida a cobrança do imposto em relação a operações com software comercializado por meio de transferência eletrônica de dados, na forma de download via internet. (...)

O min. Dias Toffoli descreveu sua interpretação como “evolutiva” e em consonância com as “novas realidades” do mercado de software. Trata-se, inegavelmente, de uma inovação.

A questão que se pretende analisar neste breve artigo é a insegurança causada às empresas que licenciam software padronizado em função da modulação dos efeitos das decisões exaradas nas ADIs 5.659 e 1.945. O STF optou por modulação que permite, como regra geral, a cobrança do ISS eventualmente não pago sobre o licenciamento de software, exceto no caso de empresas que recolheram o ICMS, bem como impede a cobrança retroativa do ICMS. As hipóteses são as seguintes:

Hipótese

Solução

Contribuinte recolheu somente o ICMS

Não há direito à repetição do ICMS e Município não pode cobrar ISS

Contribuinte recolheu somente o ISS

Confirmação de validade do pagamento do ISS e impossibilidade de cobrança do ICMS pelo Estado

Contribuinte não recolheu o ISS ou ICMS

Possibilidade de cobrança do ISS

Contribuinte recolheu ISS e ICMS, e não ajuizou ação

Confirmação de validade do pagamento do ISS e possiblidade de repetição do ICMS

Ação judicial movida pelo contribuinte para evitar o ICMS

Confirmação da incidência do ISS

Ação judicial movida pelo Estado para cobrar ICMS

Confirmação da incidência do ISS

Ação judicial movida pelo Município para cobrar ISS

Confirmação da incidência do ISS, exceto se o contribuinte recolheu o ICMS

Ação judicial movida pelo contribuinte para evitar o ISS

Confirmação da incidência do ISS

Como acima mencionado, a tributação de software era tema cercado de muitas incertezas, principalmente decorrentes das novas tecnologias e modalidades de licenciamento (como download, software as a service/cloud, assinaturas mensais, etc.). Uma das poucas certezas que as empresas do setor tinham era a firme orientação do STF no sentido de que o ISS não poderia incidir sobre software de prateleira ou padronizado.

Assim, muitas empresas que licenciavam software padronizado não recolhiam o ISS e tinham excelentes razões para não o fazer. Afinal, o STF já havia se manifestado inúmeras vezes sobre a incidência do ICMS sobre operações envolvendo software de prateleira2, assim como o STJ3 e o Tribunal de Justiça de São Paulo4.

A controvérsia, na verdade, referia-se à possibilidade de incidência do ICMS no caso de download, software as a service e outras modalidades de licença temporária/assinatura mensal.

A incerteza sobre a possibilidade de cobrança do ICMS nestas situações se justificava por vários motivos. Em primeiro lugar, não havia orientação firme e clara a respeito da possibilidade de incidência de ICMS sobre bem intangível não gravado em mídia (corpus mechanicum). Esta dúvida era alimentada pela decisão do STF nos autos do RE 176.626-3/98, em que pese houvesse decisão cautelar na ADIn 1.945/MT. O próprio fisco paulista aceitou por décadas que não haveria incidência de ICMS no caso de software entregue ao cliente via download5, sendo que esta orientação somente foi alterada em 20176.

Ademais, não havia lei complementar regulando o pagamento do ICMS nas hipóteses de download, em clara violação ao artigo 146, III da Constituição Federal. Na ausência de circulação física (porque o produto é intangível e transmitido eletronicamente), era necessário definir o local de ocorrência do fato gerador e a responsabilidade pelo pagamento do tributo, entre outros aspectos. Os estados tentaram suprir tal necessidade por meio do Convênio ICMS 106/17 (que tratou todas as operações como “internas”, exigiu que as plataformas eletrônicas se inscrevessem em todas as unidades federadas em que praticassem operações e determinou que o imposto fosse recolhido para a unidade federada onde se localizasse o usuário final). Entretanto, como estas não são matérias de convênio, a Brasscom – Associação Brasileira das Empresas de Tecnologia da Informação e Comunicação impetrou mandado de segurança contra a exigência de ICMS nos termos do referido Convênio e a Justiça de São Paulo lhe concedeu medida liminar e, posteriormente, a segurança7. O próprio STF vinha consistentemente confirmado a exigência de lei complementar para regular a cobrança de tributos e dirimir conflitos de competência (como no caso da incidência de ICMS em operações interestaduais destinadas a consumidores finais e do ITCMD sobre doações e heranças instituídas no exterior8).

Outras situações também não foram consideradas pela decisão do STF, como a da empresa que distribui software de prateleira no atacado, via subdistribuidores ou varejistas. Nos termos do Convênio 106/17, eram isentas do ICMS as operações que antecedessem o fornecimento do software ao consumidor final. Assim, é natural que as empresas nesta situação não tenham recolhido o ICMS. Ou então as empresas que licenciavam software padronizado via download (operação que até 2017 não era tributada sequer na opinião das autoridades estaduais, como visto acima).

Diante destes casos concretos, parece-nos claro que a modulação adotada pelo STF merece reparo.

É injustificável que um contribuinte, fornecedor de software de prateleira/padronizado, que não tenha recolhido o ISS, em função de jurisprudência pacífica do STF, STJ e Tribunal de Justiça veja-se obrigado a recolher espontaneamente este tributo com acréscimos moratórios (e multa, no caso de lançamento de ofício). Também é injustificável que a validação da cobrança retroativa do tributo que sempre foi tido como indevido seja baseada no não recolhimento do ICMS, na medida em que havia inúmeras razões para que este recolhimento não ocorresse.

Nos termos do Pronunciamento Técnico CPC 25, a empresa deve registrar provisão em seu balanço quando seja provável a saída de recursos para liquidar obrigação, desde que tal obrigação possa ser estimada9. A saída de recursos será provável quando a chance de ocorrência superar a chance de não ocorrência (ou seja, quando for superior a 50%)10. Quando não for provável que exista uma obrigação presente, a entidade divulga um passivo contingente, a menos que a possibilidade de saída de recursos que incorporam benefícios econômicos seja remota11.

Diante da consolidada jurisprudência a respeito da não incidência do ISS sobre software padronizado, seria injustificável a constituição de uma provisão e talvez até da divulgação de um passivo contingente. Afinal, não seria de se estranhar a eventual classificação de que cobrança de ISS sobre software padronizado por qualquer prefeitura teria chances remotas de prosperar.  

No entanto, a recente decisão do STF na prática obriga as empresas fornecedoras de software padronizado a registrar passivo equivalente ao ISS não recolhido, acrescido de multa e juros (ainda que a multa possa ser evitada por meio de denúncia espontânea). Antes da sessão do STF, a possibilidade de cobrança de ISS sobre software padronizado, com relação a fatos passados, era remota. Ao final da tarde, passou a ser provável.

O respeito à jurisprudência consolidada é um dos mais importantes elementos para a concretização dos princípios da segurança jurídica, proteção da boa-fé e confiança (os quais são verdadeiros pilares do nosso ordenamento, refletidos na proteção ao ato jurídico perfeito, direito adquirido e coisa julgada, bem como no artigo 24 da LINDB e artigos 100, parágrafo único, e 146, do CTN).

Com relação aos efeitos das decisões judiciais, os artigos 927, parágrafo 3, do Código de Processo Civil e 27 da lei 9.868/99 buscam concretizar o princípio da segurança jurídica ao estabelecer que:

I. a alteração de jurisprudência dominante do STF e tribunais superiores ou daquela oriunda de julgamento de casos repetitivos pode ensejar a modulação dos efeitos da alteração no interesse social e da segurança jurídica;

II. quando da declaração de inconstitucionalidade de lei ou ato normativo em controle concentrado, o STF pode restringir os efeitos da referida declaração ou decidir que ela só tenha eficácia a partir de seu trânsito em julgado ou outro momento que venha a ser fixado, tendo em vista razões de segurança jurídica ou excepcional interesse social.

Em que pese seja louvável o esforço do STF em modular os efeitos de sua decisão, a aplicação retroativa do ISS baseada unicamente na inexistência de recolhimento de ICMS viola a segurança jurídica. Inexplicavelmente, os contribuintes que confiaram no consolidado entendimento de que o ISS não poderia incidir sobre o licenciamento de software padronizado agora se veem diante da cobrança retroativa deste tributo.

A mudança de entendimento do tribunal supremo já deveria ser suficiente para que o ISS somente pudesse ser aplicado para o futuro, no caso de software padronizado/de prateleira. Além disso, a utilização da inexistência de recolhimento do ICMS como critério para permitir a retroatividade dos efeitos da decisão é absolutamente infeliz, na medida em que (I) havia muitas dúvidas sobre a incidência do ICMS (em função da falta de lei complementar, inexistência de circulação jurídica e ausência de mídia física, entre outros aspectos), (II) a tributação concentrada na operação com consumidor final e (III) ações coletivas protegendo grande número de empresas do setor.

Embora o STF tenha afirmado que a existência de previsão de tributação pelo ISS na lista de serviços da LC 116/03, não se pode esquecer que o próprio STF validou em mais de uma oportunidade a incidência de ICMS sobre software padronizado mesmo na vigência dessa lei.

Houve simultaneamente a declaração de inconstitucionalidade da legislação que estabelecia a cobrança do ICMS sobre software padronizado e a alteração de jurisprudência consolidada, como forma de permitir a cobrança do ISS sobre tais operações. Independentemente de se tratar de controle difuso ou concentrado, de aplicação do artigo 927 do CPC ou 27 da lei 9.868/99, os princípios da segurança jurídica, proteção à boa-fé e confiança não podem ser violados pela modificação de jurisprudência dominante da Corte Suprema

Em conclusão, entendemos que a modulação proposta pelo STF merece reparos, para impedir a cobrança retroativa do ISS no caso de software padronizado, que podem ser provocados via embargos de declaração nos autos das ADIs 5.659 e 1.945. De qualquer maneira, os contribuintes podem se socorrer do Judiciário para que suas circunstâncias particulares sejam analisadas e que os princípios da segurança jurídica, boa-fé e confiança sejam aplicados nos respectivos casos concretos.

___________________

1 RE 176.626/SP e julgamento da medida cautelar na ADIn 1.945/MT.

2 RE 176.626-3/98, RE 199.464 e RE 285.870-6

3 REsp 1.23.022/97; 633.405/04; 32.547/11; 814.075/08, entre outros casos.

4 Huawei Serviços x Município de Campinas, TJSP, ADIn 0011467-20.2016.8.26.0000, Maio de 2016.

5 Resposta a Consulta 4.441/14.

6 Convênio 106/17 e Decreto no. 63.099/17. 

7 Processo Digital 1010278-54.2018.8.26.0053

8 RE 1287019 (tema 1.093), ADIn 5469 e RE 851.108/SP

9 CPC 25, item 14.

10 CPC 25, Item 23.

11 CPC 25, Item 23.

Marco Antonio Moreira Monteiro
Sócio de Veirano Advogados, bacharel em direito pela USP, pós-graduado em direito tributário pela FGV/SP e mestre em direito tributário pela Georgetown University.

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