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A aplicação da tabela progressiva da tarifa de água da CEDAE: o que está em jogo no TJ/RJ?

Entenda o pano de fundo do debate que hoje ocorre nos tribunais.

30/3/2021

Desde julho de 2020, tramita no Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro (TJRJ) um Incidente de Resolução de Demandas Repetitivas (IRDR) para tratar da forma de cobrança adotada  pela Companhia Estadual de Águas e Esgotos do Rio de Janeiro (CEDAE). Ou seja: trata-se de definir a forma de aplicação da chamada Tarifa Progressiva de Água e Esgoto, nos locais de abastecimento centralizado, isto é, em locais que contam  com apenas um hidrômetro instalado, que serve  para atender a diversas unidades.

Na verdade, a discussão é um desdobramento do julgamento do Superior Tribunal de Justiça no Tema Repetitivo 414, em que se debatia a possibilidade de cobrança de tarifa mínima de água, com base no número de unidades que utilizavam aquele hidrômetro único, desconsiderando portanto  o consumo nele efetivamente registrado. Na ocasião, a tese firmada foi a seguinte:

“Não é lícita a cobrança de tarifa de água no valor do consumo mínimo multiplicado pelo número de economias existentes no imóvel, quando houver único hidrômetro no local. A cobrança pelo fornecimento de água aos condomínios em que o consumo total de água é medido por único hidrômetro deve se dar pelo consumo real aferido.”

Para entender o que subjaz ao  IRDR ora tramitando no TJRJ, é preciso entender como se dá a cobrança da CEDAE pela água disponibilizada e consumida e pelo esgoto tratado ou destinado.

As tarifas de água e esgoto são cobradas, em regra, de forma espelhada. Como não há instrumento viável de aferição do volume de esgoto, há uma presunção legal  regulatória de que todo o esgoto gerado é o resultado do consumo de água, de modo que seus volumes se equivalem, em que pese a  existência de discussões jurídicas sobre esse entendimento, as quais no momento  fogem ao escopo temático do presente artigo. De todo modo, como regra geral, o valor a ser pago pelo esgoto é o mesmo valor apurado no procedimento de cobrança do consumo da água, e portanto equivale à tarifa de água.  

Contudo, o procedimento da cobrança da tarifa de água é complexo e depende de saber-se o  volume mensal de água utilizado pelo consumidor, para que se possa compor sua  base de cálculo. A fonte para o procedimento da cobrança da água consumida é o hidrômetro, cuja leitura é realizada mensalmente pela empresa concessionária do serviço de saneamento.  O hidrômetro  contabiliza o volume de água que passa por ele, informando a quantidade efetivamente utilizada pelo consumidor, usando como unidade   o metro cúbico (m3) . Cada metro cúbico equivale a 1.000 litros.

O valor cobrado pela água varia em função do próprio consumo. Isto é,  à medida em que o consumo é maior, o valor cobrado pelo  m3  também aumenta, fazendo com que o preço unitário da água seja mais caro conforme o maior volume consumido, sendo esse um mecanismo de combate ao uso indiscriminado ou desperdício da  água. E essa progressão se dá por incidência de diferentes tarifas que progridem em termos de custo em faixas de consumo, a chamada “Tabela Progressiva”, que institui patamares de consumo em faixas de cobrança, que variam a cada 15 m3 de volume aferido da água utilizada.

Ademais, há também uma previsão legal da cobrança de uma tarifa mínima, que seria a contraprestação remuneratória às empresas distribuidoras de água, pela mera disponibilização da água sob pressão e condições adequadas, ininterruptamente, independentemente do efetivo consumo pelo consumidor.  Essa tarifa mínima é cobrada integralmente numa faixa inicial, ainda que o consumidor não atinja o consumo mínimo estipulado pelo desenho regulatório. Na prática, se o hidrômetro marcar consumo igual ou inferior a 15m3 - para consumidores residenciais - e 20m3 - para consumidores comerciais -, será cobrada a tarifa mínima correspondente a esse consumo ficto.

Essa cobrança da tarifa mínima é legal e está prevista no regulamento tarifário. Inclusive, já há entendimento sumulado no STJ, conforme verbete 407, que assim determina:

“É legítima a cobrança da tarifa de água fixada de acordo com as categorias de usuários e as faixas de consumo.”

A despeito  do sistema idealizado, não são todos os imóveis que dispõem um hidrômetro individual para aferição de consumo, seja pela dificuldade técnica de instalação em construções antigas, seja pela eventual desídia das concessionárias de água ao longo de anos.

Então, surge um problema nos locais onde o abastecimento é centralizado, ou seja, em locais onde há apenas um hidrômetro para atender a várias unidades, sejam elas apartamentos de um condomínio residencial ou salas de um condomínio comercial.

Nesses locais  - onde só existe um hidrômetro para aferir o consumo de múltiplas unidades  é o caso da esmagadora maioria dos condomínios da cidade do Rio de Janeiro – existe um conceito legal chamado de “economia”, que pode ser definido como uma unidade-padrão, isto é, um apartamento ou uma sala comercial equivale a uma economia, salvo raras exceções. Ilustrando essa definição, um prédio residencial com 5 apartamentos, terá 5 economias do tipo residencial vinculadas ao hidrômetro centralizado. Já um prédio comercial com 30 salas comerciais, terá 30 economias do tipo comercial, vinculadas ao hidrômetro deste.

A quantidade de economias está inserida no cadastro de cada matrícula, ou seja, no cadastro de cada condomínio-consumidor. Com a informação cadastral do número de economias vinculadas a cada hidrômetro, a CEDAE pode calcular o valor da cobrança, e o faz em etapas sucessivas conforme a própria empresa divulga em seu site:

Primeiramente, a CEDAE verifica o Tipo de Cobrança, se será pelo Mínimo ou pelo Efetivamente Medido.  Se o consumo aferido no hidrômetro superar o patamar mínimo daquela matrícula, a cobrança será feita pelo volume efetivamente medido. Contudo, se o consumo aferido for inferior a esse patamar, mesmo que zero, esse consumidor será faturado pela tarifa mínima.

Em seguida, a CEDAE verifica a faixa do consumo, que varia a cada 15m3, a fim de verificar a tarifa base aplicável à cobrança. Como já explicitado acima, as tarifas variam em faixas de 15m3 de modo que o valor do m3 de água na cobrança do consumidor que consome 35m3 de água é maior que a o valor do m3 do consumidor que consome 25m3, pois este aquele está na terceira faixa da tabela progressiva, enquanto esse está no patamar da segunda.

Nos locais onde só há um hidrômetro para aferir o consumo de água, a CEDAE multiplica o consumo mínimo e as respectivas faixas de consumo pelo número de economias, tanto para fixar a faixa de consumo mínima e consequente incidência da tarifa mínima a ser cobrada, quanto para fixar a tarifa aplicável em função da tabela progressiva, isto é, a faixa de consumo que se aplica ao consumidor. Portanto, a multiplicação pelo número de economias tem repercussão tanto no tipo de cobrança – se Tarifa Mínima com base consumo mínimo para ou ou efetivamente medido -, quanto no valor da tarifa base – aumento proporcional das faixas de consumo da tabela progressiva.

Como mencionado  no início deste artigo, o STJ já fixou a  tese, em julgamento de Tema Repetitivo, de que não é lícita a cobrança de tarifa de água no valor do consumo mínimo multiplicado pelo número de economias existentes no imóvel.

Contudo, os consumidores que conseguiram a tutela jurisdicional para afastar a multiplicação da tarifa mínima na fase de conhecimento do processo, estão encontrando resistência da CEDAE em dar  cumprimento à sentença, com base em  tese inovadora da empresa. Isto é, na fase de cumprimento de sentença, nos  julgados que envolvem o tema da tarifa mínima em condomínios - apesar da clareza do dispositivo da tese firmada, que considerou somente a ilicitude da multiplicação na cobrança com base no consumo mínimo - a CEDAE passou a impugnar os cálculos dos consumidores, alegando que esses estariam superestimados. Na visão da empresa, o STJ teria afastado a possibilidade de multiplicar pelo número de economias também para fins de se mensurar a faixa de consumo aplicável, ou seja, as faixas de consumo da tabela progressiva não aumentariam de forma proporcional na tabela progressiva.

Na prática, a CEDAE entende afastada a multiplicação do consumo, tratando o condomínio como se fosse uma residência, tanto no que tange à cobrança da tarifa mínima, quanto à aplicação da Tarifa Progressiva.

Contudo, os consumidores alegam que o STJ não afastou a multiplicação pelo número de economias, fazendo-o tão somente para verificação da tarifa mínima de modo que a tabela progressiva continua a incidir em patamar proporcional à quantidade de economias, o que se denomina “progressividade híbrida” pela própria empresa. Na hipótese, para fins de cálculo, os consumidores sugerem a divisão do consumo total do condomínio pelo número de economias no cadastro da matrícula, para aferição de qual faixa de consumo e, por sua vez, qual tarifa básica aplicável.

 Assim, , os casos começaram a ser enfrentados pelo Tribunal de Justiça do Rio e culminaram na instauração do IRDR acima mencionado, já admitido pelo pleno do TJRJ, para enfrentar as duas teses, que são: quando há várias unidades e um só hidrômetro, “a aplicação da tarifa progressiva deve ser feita, após a aferição do consumo, com a divisão pelo número de economias para inserção na tabela de progressividade” ou “a aplicação da tabela progressiva deve ser feita pelo consumo aferido, sem divisão pelo número de economias.” 

Apesar da discussão que hoje está tramitando no TJRJ, parece claro que o Tema Repetitivo 414 do STJ apenas enfrentou a questão da ilegalidade da cobrança de tarifa de água com base no consumo mínimo,  não tendo enfrentado  a questão das faixas de consumo. Afinal, como dito anteriormente, a cobrança da CEDAE tem, pelo menos, duas etapas, sendo a primeira a verificação do tipo de cobrança – se tarifa mínima ou efetivamente medido –, para, em seguida, fixar a tarifa aplicável com base na tabela progressiva de consumo.

Portanto, o julgamento do Tema Repetitivo 414 somente versa sobre a primeira etapa, sendo absolutamente inovadora e desprovida de embasamento legal a tese adotada pela  CEDAE, de que o julgado de Brasília alteraria as faixas de consumo da Tabela Progressiva. Isto porque:  em primeiro lugar, o objeto das ações que serviram como  paradigmas do Tema Repetitivo 414 é adstrito à tarifa mínima e não trata da multiplicação para fins de progressividade tarifária; e, em segundo lugar, o STJ não declarou ilícita a multiplicação de forma ampla, mas apenas para fins de aferição da tarifa de água com base no consumo mínimo, sendo certo que a própria concessionária, em seus comunicados, reconhece que a cobrança da tarifa tem etapas bem definidas, como o tipo de cobrança e tarifa aplicável, não sendo crível achar-se que teria sido involuntária a  ampliação do objeto julgado a temas que não pertencem procedimento nem ao fluxo documental da cobrança.

Marcus Vinicius de Menezes Reis
Advogado, formado pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. Pós-graduado em Direito Processual Civil pela Universidade Cândido Mendes.

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