Conforme é sabido, as leis 11.638/07 e 11.941/09 modificaram sensivelmente a lei 6.404/76, em especial a contabilidade praticada no país.
A grande questão que se coloca é a seguinte: tais modificações são neutras do ponto de vista fiscal?
A mim a resposta só pode ser negativa. Afinal, houvesse de fato a tal neutralidade fiscal, não seria necessário que a lei 11.941/09, em seu artigo 15, instituísse o Regime Tributário de Transição – RTT, decorrentes dos ajustes tributários ocasionados pelos novos métodos e critérios contábeis introduzidos pela lei 11.638/07.
Ora, se é admitida a necessidade de haver um Regime de Transição até a entrada em vigor de lei que venha a disciplinar os efeitos tributários dos novos métodos e critérios contábeis, frise-se, buscando a neutralidade tributária, é porque a aventada neutralidade não está implícita nas novas normas contábeis.
Os efetivos ajustes das normas tributárias ao novo regramento contábil só vieram com a lei 12.973/14. Em seu artigo 58, há expressa disposição no sentido de que “a modificação ou a adoção de métodos e critérios contábeis, por meio de atos administrativos emitidos com base em competência atribuída em lei comercial, que sejam posteriores à publicação desta Lei, não terá implicação na apuração dos tributos federais até que lei tributária regule a matéria”.
Ou seja, tanto existem efeitos tributários nas novas normas contábeis que foi necessária a edição de dispositivos legais expressos para trazer a pretendida neutralidade. Houvesse neutralidade fiscal, não seria necessário estipulá-las expressamente por via do artigo 15 da lei 11.941/09, bem como do artigo 58 da Lei nº 12.973/14.
Mas, o RTT instituído pela lei 11.947/09 é aplicável à apuração de IRPJ, CSLL, PIS e Cofins. E o artigo 58 da lei 12.973/14 dispõe que as novas normas contábeis não têm aplicação na apuração de tributos federais. Nada é mencionado a respeito da neutralidade (legalmente forçada) para outros tributos, como o ICMS.
Nesse panorama, se não existe naturalmente uma neutralidade fiscal nas novas normas contábeis, se essa neutralidade houve de ser instituída forçadamente pelas leis 11.941/09 e 12.973/14 e, por outro lado, se não há dispositivos legais dessa natureza para o ICMS, então é forçoso concluir que não há neutralidade fiscal das novas normas contábeis à apuração do ICMS, razão pela qual os efeitos delas decorrentes afetam diretamente o modo como se deve entender e interpretar o imposto.
Antes das modificações contábeis, bens que poderiam ser considerados como intangíveis eram registrados no ativo imobilizados, conforme o subitem 3.2.2.10, III da NBC T 3.2, aprovada pela Resolução CFC 686/90, bem como subitens 19.1.2 e 19.1.2.4 da NBC T 19.1, aprovada pela Resolução CFC 1.025/05. Segundo eles, deveriam ser registrados nessa conta (imobilizados) os bens e direitos, tangíveis e intangíveis, utilizados na consecução das atividades fins da entidade.
Mas, após as modificações contábeis, foram editos Pronunciamentos CPC divididos por matérias. Entre esses, tenhamos para o presente texto o Pronunciamento CPC 09 – Ativos Intangíveis, bem como outros de atividades específicas, como o Pronunciamento CPC 06 – Arrendamento, a Interpretação Técnica ICPC 01 – ativos utilizados por concessionárias de serviços públicos, entre outros.
Segundo as regras gerais, o direito de uso de certos bens e direitos incorpóreos devem ser registradas nos ativos intangíveis e a aquisição de bens corpóreos, nos ativos imobilizados. Tenhamos como exemplo a Interpretação Técnica ICPC 01. Segundo ela, os ativos adquiridos por concessionárias de serviços públicos (como postes, fios, encanamentos de gás, entre outros) não podem mais ser contabilizadas como ativos imobilizados. Vejamos:
7. Esta Interpretação aplica-se: (a) à infraestrutura construída ou adquirida junto a terceiros pelo concessionário para cumprir o contrato de prestação de serviços; e (b) à infraestrutura já existente, que o concedente repassa durante o prazo contratual ao concessionário para efeitos do contrato de prestação de serviços.
8. Esta Interpretação não especifica como contabilizar a infraestrutura detida e registrada como ativo imobilizado pelo concessionário antes da celebração do contrato de prestação de serviços. Essa infraestrutura está sujeita às disposições sobre baixa de ativo imobilizado, estabelecidas no Pronunciamento Técnico CPC 27.
(...)
11. A infraestrutura dentro do alcance desta Interpretação não será registrada como ativo imobilizado do concessionário porque o contrato de concessão não transfere ao concessionário o direito de controlar o uso da infraestrutura de serviços públicos. O concessionário tem acesso para operar a infraestrutura para a prestação dos serviços públicos em nome do concedente, nas condições previstas no contrato.
27. De acordo com o item 11, a infraestrutura, a que o concedente dá acesso ao ICPC_01_R1_rev 13 concessionário, para efeitos do contrato de concessão, não pode ser registrada como ativo imobilizado do concessionário. O concedente também pode fornecer outros ativos ao concessionário, que pode retê-los ou negociá-los, se assim o desejar. Se esses outros ativos fizerem parte da remuneração, a ser paga pelo concedente pelos serviços, não constituem subvenções governamentais, tais como são definidas no CPC 07 – Subvenção e Assistência Governamentais. Em vez disso, eles devem ser contabilizados como parte do preço de transação, conforme definido no CPC 47.
O fundamento à impossibilidade de registro dessas aquisições no ativo imobilizado a partir do ICPC 01 reside no fato de que o concessionário deverá entregar esses bens ao Poder Público ao final do contrato de concessão. Ou seja, o concessionário de fornecimento de energia elétrica, por exemplo, já sabe que devolverá os fios, cabos, postes, lâmpadas ao poder concedente desde o momento das aquisições e, portanto, não terá para si a propriedade desses bens.
Nesses termos, a melhor prática contábil é pelo registro desses bens como ativos intangíveis, porque representam direitos de uso pela concessionária para o auferimento de renda.
A modificação do critério contábil ao registro do bem adquirido – antes no imobilizado, agora no intangível – gerou efeitos tributários na apuração do ICMS. Antes, com o registro no imobilizado, a concessionária estava autorizada a apropriar créditos de ICMS em função de sua utilização na consecução de atividades tributadas pelo imposto (por exemplo, ativos adquiridos no contexto do fornecimento de energia elétrica). Agora, com o registro no intangível, a rigor não seria mais possível o registro do crédito.
Esse é o entendimento sustentado por alguns fiscos Estaduais:
Como vimos acima, trata-se de concessionária de serviço público de gás canalizado, e a infraestrutura dentro do contrato de concessão não será registrada como ativo imobilizado do concessionário porque o contrato de concessão não transfere ao concessionário o direito de controle (muito menos de propriedade) do uso da infraestrutura de serviços públicos. São classificados como ativos intangíveis os direitos de exploração de serviços públicos mediante concessão ou permissão do Poder Público.
(...)
Não há possibilidade de compensação dos créditos de ICMS à razão de 1/48 avos. Os bens descritos, os quais dizem respeito à infraestrutura necessária à prestação do serviço objeto de concessão de distribuição de gás canalizado, são classificados como ativo intangível, e não como ativo imobilizado permanente.
(SEFAZ/ES. Parecer Normativo 0061/2018)
Os bens adquiridos não podem ser classificados e contabilizados como ativo imobilizado da concessionária, pois as normas que regulam sua atividade não lhe transferem o direito de controle nem de propriedade dos bens que se incorporam à infraestrutura dos serviços públicos de energia elétrica, nos termos do seu contrato de concessão, intermediado pela ANEEL, em que prevê apenas a cessão de posse desses bens, o quais serão revertidos ao Poder Concedente após o encerramento do referido contrato.
(Conselho de Recursos Fiscais / PB. Acórdão n. 436/18)
O mesmo raciocínio pode ser utilizado a todo e qualquer bem que, na contabilidade anterior, era registrado como ativo imobilizado e sua aquisição gerava crédito de ICMS e, agora, deve ser registrado no ativo intangível, não sendo mais possível a apropriação do crédito do imposto.
Mas, há argumentos que podem sustentar o direito ao crédito de ICMS nessas situações.
Conforme dispõe o artigo 20, caput, da lei Complementar 87/96, é assegurado ao contribuinte, entre outros, o crédito sobre a aquisição de ativo permanente. No Estado de São Paulo, a legislação vai no mesmo sentido, já que o artigo 61, §10, do RICMS/SP, confere ao contribuinte o direito ao crédito na aquisição de ativos permanentes.
Pois bem. De acordo com a redação original do artigo 178, §1º, alínea “c”, da lei 6.404/76, o antigo grupo de contas ativo permanente era composto pelas contas investimento, ativo imobilizado e ativo diferido.
A razão para sempre se ter, nos recônditos da mente, a ideia de que apenas imobilizados dão crédito de ICMS, a despeito de as normas tributárias de ICMS se referirem a todas as aquisições do antigo ativo permanente, é simples. Em investimentos deveriam ser contabilizadas as participações permanentes em outras sociedades e os direitos de qualquer natureza, não classificáveis no ativo circulante. Já em ativo diferido deveriam ser registradas as aplicações de recursos em despesas que contribuirão para a formação do resultado de mais de um exercício social.
Em outras palavras, nas contas de investimento e ativo diferido não cabiam o registro de aquisições de bens relacionados às atividades fabris e/ou mercantis da empresa. A partir dos conceitos das antigas regras contábeis, essa tarefa era reservada aos bens do ativo imobilizado.
E para que a aquisição do ativo imobilizado fosse origem de créditos de ICMS, o bem em questão não poderia ser utilizado em atividade alheia do contribuinte. Essa expressão pode suscitar dúvidas. Por meio dela, a legislação dá como requisito essencial para a apropriação de créditos do imposto a necessidade de os ativos imobilizados se prestarem a impulsionar as atividades tributáveis do estabelecimento, isto é, das quais decorram débitos de ICMS, conforme Decisão Normativa CAT 01/00. Mais ainda, pela leitura da Decisão Normativa CAT 02/00, ficou claro que, para que os ativos imobilizados possam gerar créditos, basta que colaborem de algum modo a esses processos (de produção, prestação de serviços ou comercialização tributáveis pelo ICMS).
Já fora dito que as normas contidas na lei 6.404/76 foram bastante alteradas pelas leis 11.638/07 e 11.941/09. O plano de contas foi nominalmente modificado, de modo que o antigo grupo ativo permanente passou a ser designado ativo não circulante, formado pelas contas realizável a longo prazo, investimento, imobilizado e pela novel conta intangível, que não existia no grupo de contas do antigo ativo permanente.
O detalhamento dos registros a serem feitos nas contas ativo imobilizado e ativo intangível é dado pelo artigo 179 da referida lei 6.404/76. No inciso IV está dito que no imobilizado são registrados os bens corpóreos destinados à manutenção das atividades da empresa e, no inciso VI, que no intangível são registrados os bens incorpóreos com a mesma destinação – manutenção das atividades da empresa.
Nessa perspectiva, a análise do artigo 179, incisos IV e VI, da lei 6.404/76, dá conta de que as finalidades dos ativos imobilizados e intangíveis são exatamente as mesmas: a manutenção da companhia ou exercidos com essa finalidade. A única diferença é a corporeidade. Ativos imobilizados são corpóreos e os intangíveis, incorpóreos.
Assumindo que as normas das Decisões Normativas CAT 01/00 e 02/00 também privilegiam o critério da finalidade para autorizar o crédito de ICMS sobre ativos imobilizados, desde que não sejam alheios às atividades do estabelecimento e, por outro lado, partindo-se do pressuposto que, segundo o artigo 179, inciso IV e VI, da lei 6.404/76, as finalidades dos ativos imobilizados e intangíveis são as mesmas, então se essas finalidades disserem respeito à colaboração, direta ou indireta, nos processos de produção, prestação ou comercialização do contribuinte sujeitas ao ICMS, então haverá o direito ao crédito do imposto.
É dizer, de modo geral, se o intangível servir à manutenção das atividades do estabelecimento, isto é, nos processos de prestação de serviços, comercialização e/ou fabricação sujeitas ao ICMS, então ele também cumprirá o requisito não ser alheio à atividade do estabelecimento. Logo, as respectivas aquisições podem gerar direito ao crédito do imposto, desde que com nota fiscal com o respectivo destaque do imposto, se destinados às atividades sujeitas ao ICMS, seguindo-se a regra de apropriação em 1/48 ao mês na medida das operações tributadas no mês.