Migalhas de Peso

O jurista inserido no mundo: presença e aprendizado

Estar presente e disponível a aprender, portanto, são duas qualidades essenciais dos que fazem da justiça sua vocação, de juristas radical e verdadeiramente inseridos no mundo.

29/3/2021

(Imagem: Arte Migalhas)

“Quand on n'a pas de caractère, il faut bien se donner une méthode”

“O caráter de um homem é seu destino,” ensinavam os gregos, ao prepararem seus jovens cidadãos para viver e participar da vida política. A política, como devemos lembrar, era a qualidade da polis. Como preferimos a palavra de origem latina cidade,1 para referir o nosso espaço público, a tradução correta para o termo grego seria cidadania. Se empregarmos cidadania em vez de política, estabelecemos nossa reflexão em patamar mais adequado, vinculando à palavra a experiência reaal e à força da possibilidade ou virtualidade dessa experiência e de sua vinculação ao significado do termo. Com efeito, sabemos bem o que pode ser uma cidadania bem exercitada, um conjunto de direitos e deveres relacionados à prática pública. Era assim que os gregos sentiam, quando ouviam a palavra política. O fato de guardarmos o termo política nos fazer perder essa dimensão essencial. Se passamos, como aqui proponho, a empregar cidadania, recuperamos um pouco daquela vivência e envolvemos nossa sensibilidade, nossa reflexão e nossa prática com a energia que podemos ter ao tratar dos assuntos do dia a dia, conectados aos direitos que buscamos alcançar e aos deveres que permitem que os alcancemos.

Essa dimensão da cidadania, portanto, é essencial para entendermos o desenvolvimento do papel do jurista,2 profissão diretamente vinculada à garantia do exercício dos direitos e deveres atinentes à vida pública.

Neste breve artigo, gostaria de tratar de duas qualidades essenciais, esperadas do jurista, que devem ser recuperadas na tarefa árdua de sua preparação, sobretudo nos tempos que vivemos, em que uma transformação profunda se opera, tanto na teoria quanto na prática jurídicas, em relação à qual devemos assumir, desde logo, uma posição, crítica que seja, tendo em vista o espectro de questões e consequências advindas desse embate entre uma ordem ultrapassada que resiste em abrir lugar para uma emergente.3

Essas duas qualidades, presença e aprendizado, considero essenciais à compreensão dessa nova realidade do mundo dos direitos, ao lado da qual tomo partido, e corresponderam ao cerne de minha oração, na recente cerimônia de concessão do Título de Acadêmico Emérito da Academia Paulista de Direito4 ao saudoso Magistrado, Professor, Defensor dos Direitos Humanos e Amigo do Povo Antonio Carlos Malheiros.

Não há justiça sem presença. Isso significa que o jurista deve estar sempre disponível ao contato permanente com o mundo e os outros. Sobretudo numa realidade como a que vivemos, não apenas em nosso País, mas sobretudo aqui, que corresponde a uma situação permanente de injustiças. A presença significa uma postura que vai muito além – e mesmo se opõe – a uma conformação às formalidades do dia a dia das profissões. É preciso desvencilhar-se dessas cerimônias sem sentido, dessas formalidades sem razão, desse protocolo que cria distâncias e torna ausente o sentimento de solidariedade que deve caracterizar toda relação humana. Não há qualquer significado na vida dos gabinetes fechados para a vida. O jurista que se confina, usando, hoje, o manancial de instrumentos tecnológicos para se fazer cada vez mais ausente, dar expediente na omissão, que fecha os olhos para uma realidade cruel de desigualdade e opressão, que acentua ainda mais a relação de hierarquia falsa dos saberes de academia contra a experiência prática e difícil da vida, da luta cotidiana pela sobrevivência, dos atentados à dignidade, deixa de ser jurista, para se tornar mero funcionário de uma estrutura que apenas sublinha opressão e poderes ilegítimos. É o pseudo cultor do direito, que usa o saber a que teve acesso – numa estrutura em que a imensa maioria não tem acesso a esse mesmo saber, criado exatamente para afastar e oprimir - para impor uma ordem artificial a um mundo que faz o possível para ignorar. É o encaixador de quadrados em estruturas circulares, o iludido das condições do mundo, que pensa que o que leu em livros que, cada vez mais, tornam-se obsoletos em sua pretensão de apenas ensinar, sem nada compreender, a partir de estruturas que são produzidas de modo desconhecido pelo próprio aplicador de regras descabidas.

Bem ao contrário, o jurista deve fazer sentir sua presença, percorrer, sem medo e sem arrogância, os espaços da cidadania, procurando estar atento ao que ocorre, mas sobretudo mostrar a disposição de cuidar, isto é, no sentido autêntico, curar as feridas de uma injustiça que machuca constantemente. Não, porém, para aplicar um remédio estranho e indesejado, mas para sentir qual é o remédio que se extrai da própria realidade de que se põe a, ativamente, participar.

Isso se liga à segunda qualidade que, mais uma vez, aqui acentuo, que é a do aprendizado.

Não há justiça que se pratique por quem se acha dotado de todo o saber, por quem entende que a cultura livresca basta, ou, mais grave, por quem sequer se dispôs a enfrentar, com a coragem necessária, a verdadeira razão e paixão que se encontra numa escritura e literatura autênticas. Essa autenticidade se atesta pela radicalidade e não pela erudição que se deseja superior e arbitrária. Ela está, portanto, ausente da maioria do que se publica e se produz no mundo jurídico, especialmente. Isso porque grande parte desses textos está voltada para os próprios membros dessa comunidade que se quer esotérica, hierárquica, que tem sido construída, lamentavelmente, sobre princípios e valores que são antidemocráticos e anticidadãos. Paradoxalmente, porém, sua produção pseudo científica se mostra, rigorosamente, exotérica, assim negando o próprio caráter de cientificidade que almeja, em seus formalismo e sistematicidade vazias.

Essa maneira de os juristas se comunicarem com a sociedade como se estivessem proferindo lições de vida, de moral, de imaginar que lecionam, não dando atenção ao que está ocorrendo diante de si. De quererem interpretar o mundo como dotado apenas de distorções e ruídos, porque não conseguem ver a inadequação de suas preleções ex-cathedra, não se coaduna mais com uma realidade que tem identidade e produção próprias de saberes, à expressão de uma diversidade que se constrói de maneira cada vez mais vertiginosa.

A lei e o direito pertencem a todos, não apenas aos juristas. Seu saber é comum. O protagonista da vida política ou cidadã é o povo e não o jurista.

Portanto, é preciso estar sempre disponível a aprender. A experiência ensina a quem se abre, a quem se mostra sensível ao contato humano. Isso exige também disposição permanente e desligamento de si, para se colocar em postura de aprendiz e não de docente. As pessoas com quem convivemos ensinam, constantemente, por seus exemplos e expressões. E ensinam contra a nossa pretensa cultura superior. Há um modo de agir, de ser, de saber que transcende nossa vaidade. É preciso estar disponível para aquilo que considero a mais antiga e mais importante categoria do saber, que é a alteridade, a qualidade de ser outro, de se alterar, a partir da postura não professoral, não paternal nem maternal, mas propriamente fraternal e sororial.5

Esse aprendizado, em sua forma iniciática, corresponde ao que se espera de um agente de cidadania que está em busca do sentido da lei, do direito e da justiça, a partir da observação, que é curiosidade natural, mas sobretudo da escuta e do diálogo. Um jurista que saiba sua posição, que é a de aprender e dar fluxo a esse aprendizado constante.

Só há justiça entre iguais, porque a liberdade é expressão da igualdade. Onde poucos são livres não há liberdade, mas submissão. A liberdade surge como resultado da igualdade.

Numa sociedade de injustiças constantes, cabe a cada pessoa indignar-se e buscar construir justiça, ao reconhecer a dignidade de todos.

Estar presente e disponível a aprender, portanto, são duas qualidades essenciais dos que fazem da justiça sua vocação, de juristas radical e verdadeiramente inseridos no mundo.

______________

1 Civitas.

2 Termo que prefiro aos usuais “profissional do direito”, “operador do direito.” Na Europa, é comum empregar simplesmente jurista, associando à vocação do direito a ideia sempre presente da justiça ou do justo. Nos Países de língua inglesa, a preferência dá-se por “lawyer,” “legal practitioner” ou “legal professional,” vindo daí, talvez, a inovação de uso, no Brasil, cuja tradição indicava apenas “jurista” para o coletivo dos que praticam o direito.

3 Attié, Alfredo. “Guerra dos Mundos” in Consultor Jurídico. São Paulo, 26 de março de 2021, acesso em 28/03/2021.

4 Ao lado da Pastoral Operária Metropolitana de São Paulo, e outras importantes entidades, com a concessão do Título de Acadêmico Emérito da Academia Paulista de Direito, no dia 26 de março de 2021, na cerimônia “O Direito a Serviço da Vida: Homenagem a Antonio Carlos Malheiros”, que pode ser assistida aqui. Participaram também a Reitoria da PUC/SP, a Faculdade de Direito da PUC/SP, o Núcleo de Estudos da Violência da USP, a Comissão de Direitos Humanos da OAB/SP, a Comissão Arns, o Fórum Social Mundial Justiça e Democracia, a Associação Paulista de Magistrados, o Sindicato dos Advogados de São Paulo, a TVT, o Instituto Norberto Bobbio, a Escola de Sociologia e Política de São Paulo, as Faculdades Latino-Americanas de Ciências Sociais, o Instituto Amsur, o Instituto Novos Paradigmas, o Instituto Piracicabano de Estudos e Defesa da Democracia, o Grupo Prerrogativas, o Escritório Modelo D.Paulo Evaristo Arns, da PUC/SP, a Comunidade de Juristas de Língua Portuguesa, o Instituto Brasileiro de Ciências Criminais, tendo, ainda o apoio de outras entidades em favor da vida, da democracia, da solidariedade e dos direitos humanos. No evento,falaram a Reitora da PUCSP, Professora Titular Ana Amalia Pie Abib Andery, o Professor Titular de Direitos Humanos da PUCSP Wagner Balera, o Professor Titular da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP e ex-Coordenador do Núcleo de Estudos da Violência da USP e Coordenador do CEPID/FAPESP Sergio Adorno, representando, também o atual Coordenador do NEV USP, Professor Marcos Alvarez, seus pesquisadores e pesquisadoras, o ex-Ministro de Direitos Humanos e ex-Comissário da Comissão Interamericana de Direitos Humanos Paulo Vanuchi, a Vice-Presidente da Comissão de Direitos Humanos da OAB/SP Ana Amélia Mascarenhas Camargos, o Membro da Comissão Arns, Advogado e Defensor de Direitos Humanos e ex-Secretário de Justiça e Direitos Humanos Belisário dos Santos Jr, o Professor e Jurista, ex-Governador do Rio Grande do Sul, ex-Ministro da Justiça e ex-Ministro da Educação Tarso Genro, a Presidente da Apamagis e Magistrada Vanessa Mateus, o Advogado e Professor Doutor em Direito Penal Alberto Toron, representando o Grupo Prerrogativas e o IBCCRIM,  a Promotora de Justiça Alessandra Queiroga do FSM-JD, o Presidente do Instituto Bobbio Advogado Celso Azzi, o Professor Álvaro Luiz Azevedo Gonzaga, ex-Coordenador do Escritório Modelo Dom Paulo Evaristo Arns da PUCSP, o Advogado Nelson Faria de Oliveira, Presidente da Comunidade de Juristas de Língua Portuguesa, o Coordenador da Pastoral Metropolitana Operária e vencedor dos Prêmios Dom Paulo Evaristo Arns e Santo Dias de Direitos Humanos Paulo Pedrini, e o Titular da Cadeira San Tiago Dantas, Presidente da Academia Paulista de Direito e Magistrado Alfredo Attié. Estiveram presentes, ainda, Angelo Del Vecchio, Diretor e ex-Presidente do Conselho da Fundação Escola de Sociologia Política de São Paulo, Professor Titular Aposentado da UNESP, Campus de Araraquara, Vicente Trevas, Presidente do Instituo Amsur, o ex-Prefeito de Piracicaba José Machado, Presidente do IPEDD, o Professor Ely Eser da Unimep e do IPEDD, Cristina Sampaio do FSM JD e do Instituto AMSUR, Antonio Carlos Granado do Instuto AMSUR, Salete Camba, Diretora das FLACSO, Allen Habert, da Diretoria e Conselho da Confederação Nacional dos Trabalhadores Universitário Autônomos, Sergio Storch do Movimento Interrreligioso Dom Paulo Arns, além de outras autroridades e representantes de organizações da sociedade civil e movimentos sociais, além de amigos e amigas do homenageado., O evento foi realizado na plataforma da Academia Paulista de Direito e transmitido pelo Canal YouTube Academia Paulista de Direito , além de retransmitido pelo Canal YouTube da TVT.

5 Fraternidade corresponde à relação entre irmãos, enquanto sororidade, de irmãs. Não se trata de indicar relações familiares, mas de acentuar o caráter de iniciação – e não mais de educação – que se dá nas relações entre iguais. A iniciação é uma forma de aprendizagem que não impõe, mas busca a troca de saberes, diferentemente do modelo de educação a que estamos acostumados, em que o saber é transmitido de forma unilateral e hierárquica. Na cooperação entre iguais há iniciação, há trocas e não imposição. Há provas, no sentido de experiências de vida, do risco, e não controles de notas e posturas rígidas, antinaturais, mesmo dadas a abusos e apropriações indevidos.

Alfredo Attié Júnior
Presidente da Academia Paulista de Direito, titular da Cadeira San Tiago Dantas, pesquisador e doutor em Filosofia da USP, escritor, filósofo e jurista.

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