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Pensão por morte, guarda e dignidade da pessoa humana.

O tema do direito à pensão por morte aos que são equiparados a filhos sofreu alterações legislativas e frequentemente chega ao Judiciário, principalmente por conta do conflito entre normas restritivas e protetivas.

24/3/2021

É indiscutível a qualidade protetiva do Estatuto da Criança e do Adolescente – ECA  às crianças (pessoa com até doze anos de idade incompletos) e adolescentes (pessoa entre doze e dezoito anos de idade), até mesmo porque estabelece que tanto a criança quanto o adolescente gozam de todos os direitos fundamentais inerentes à pessoa humana, sendo-lhes asseguradas todas as oportunidades e facilidades, a fim de lhes facultar o desenvolvimento moral, mental, físico, espiritual e social, em condições de liberdade e de dignidade, nos termos de seu artigo 3º.

O mesmo Estatuto da Criança e do Adolescente impõe como dever da família, assim como da comunidade, sociedade em geral e do Poder Público, a efetivação dos direitos referentes à vida, à saúde, à educação, ao esporte, ao lazer, à profissionalização, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, nos moldes de seu artigo 4º. Confira-se:

Por óbvio, o Estatuto da Criança e do Adolescente está em consonância com o que dispõe a Constituição Federal, pois esta dispõe que a República Federativa do Brasil tem como fundamento a dignidade da pessoa humana, como também, ao tratar da família, da criança e do adolescente (conforme seu capítulo VII), prescreve que a família deve assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, os direitos citados antes.

Tratando-se desse ponto, ligado a eventual direito à pensão por morte por parte primeiro do menor sob guarda, o Estatuto da Criança e do Adolescente cuida do tema em uma seção exclusiva para tratar da Família Substituta, mencionando que a colocação em família substituta ocorre mediante guarda, tutela e adoção, sendo que a guarda visa regularizar a posse de fato e que, de forma excepcional, é deferida fora dos casos de tutela e adoção, visando, por exemplo, atender situações peculiares.

E, o mais importante, confere à criança ou adolescente a condição de dependente, para todos os fins e efeitos de direito, inclusive previdenciários, bem como o seu deferimento não afasta o dever de prestar alimentos por parte dos pais. Imprescindível a conferência do artigo 33 do referido Estatuto:

“Art. 33. [...]

§ 3º A guarda confere à criança ou adolescente a condição de dependente, para todos os fins e efeitos de direito, inclusive previdenciários. [...].

Voltada a atenção ao Regime Geral de Previdência Social – RGPS, que vem tratado na Constituição Federal no sentido de que a Previdência Social será organizada para atender, nos termos de lei, pensão por morte do segurado, homem ou mulher, ao cônjuge ou companheiro e dependentes, tem-se:

Art. 201. [...]

V - pensão por morte do segurado, homem ou mulher, ao cônjuge ou companheiro e dependentes, observado o disposto no § 2º. (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 20, de 1998) [...]”

 

Já na lei 8.213/91, que rege o Regime Geral de Previdência Social, colhe-se em seu artigo 10 que os seus beneficiários se classificam de duas maneiras: segurados e dependentes. Quando de sua redação originária, aquela prescrevia que eram beneficiários do Regime Geral de Previdência Social, na condição de dependentes do segurado, dentre outros, o cônjuge, a companheira, o companheiro e o filho, de qualquer condição, menor de 21 (vinte e um anos) ou inválido, nos termos de seu artigo 16, inciso I. E, mais importante, dizia que se equiparava a filho, mediante declaração do segurado, o menor que, por determinação judicial, estivesse sob sua guarda, conforme mesmo artigo anterior, § 2º.

Já em meados de 1995, a lei 9.032/95 incluiu previsão no inciso I do artigo 16 no sentido de que o filho seria dependente do segurado tão somente se não emancipado. Até então, a previsão de que o menor sob guarda se equiparava a filho ainda estava mantida no § 2º do mesmo artigo. Isso, contudo, até a lei 9.528/97, que alterou a redação de referido parágrafo, excluindo o menor sob guarda do rol de dependentes do Regime Geral da Previdência Social – RGPS.

Ao mesmo tempo em que excluía o menor sob guarda do rol de dependentes do RGPS, mantinha apenas o enteado e o menor tutelado, desde que comprovada a dependência econômica.

Até mesmo o inciso I do artigo 16 sofreu outras alterações: primeiro, a lei 12.470/11 alterou sua redação para que passasse a prever a deficiência intelectual ou mental que tornasse o dependente absoluta ou relativamente incapaz, assim declarado judicialmente e, segundo, a lei 13.146/15 também alterou a mesma redação para que constassem como dependentes o cônjuge, a companheira, o companheiro e o filho não emancipado, de qualquer condição, menor de 21 (vinte e um) anos ou inválido ou que tenha deficiência intelectual ou mental ou deficiência grave. Cite-se:

“Art. 16. [...]

I - o cônjuge, a companheira, o companheiro e o filho não emancipado, de qualquer condição, menor de 21 (vinte e um) anos ou inválido ou que tenha deficiência intelectual ou mental ou deficiência grave; (Redação dada pela lei 3.146, de 2015) [...]”

Com isso, de se notar que a lei 8.213/91 foi alterada há alguns anos para exclusão dos menores sob guarda judicial do rol de dependentes equiparados a filho (classe I), restando somente o enteado e o menor sob tutela por aquela lei. 

Na última Reforma da Previdência pela Emenda Constitucional 103/2019, publicada em 13/11/19, ainda, foi descrito que se equiparam a filho, para fins de recebimento de pensão por morte, exclusivamente o enteado e o menor tutelado, desde que comprovada a dependência econômica. Confira-se:

“Art. 23. [...]

§ 6º Equiparam-se a filho, para fins de recebimento da pensão por morte, exclusivamente o enteado e o menor tutelado, desde que comprovada a dependência econômica.

[...]”

De outro lado, contudo, o Estatuto da Criança e do Adolescente – ECA não sofreu qualquer alteração ou revogação no que diz respeito à guarda conferir à criança ou adolescente a condição de dependente para todos os fins e efeitos de direito, inclusive previdenciários, nos termos de seu artigo 33, § 3º.

Antes da Reforma da Previdência em meados de 2019, havia precedentes do Superior Tribunal de Justiça privilegiando a proteção integral à criança e ao adolescente:

“DIREITO PREVIDENCIÁRIO. DIREITO DO MENOR SOB GUARDA À PENSÃO POR MORTE DO SEU MANTENEDOR. EMBORA A LEI 9.528/97 O TENHA EXCLUÍDO DO ROL DOS DEPENDENTES PREVIDENCIÁRIOS NATURAIS OU LEGAIS DOS SEGURADOS DO INSS. PROIBIÇÃO DE RETROCESSO. DIRETRIZES CONSTITUCIONAIS DE ISONOMIA, PRIORIDADE ABSOLUTA E PROTEÇÃO INTEGRAL À CRIANÇA E AO ADOLESCENTE (ART. 227 DA CF). APLICAÇÃO PRIORITÁRIA OU PREFERENCIAL DO ESTATUTO DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE (LEI 8.069/1990), POR SER ESPECÍFICA, PARA ASSEGURAR A MÁXIMA EFETIVIDADE DO PRECEITO CONSTITUCIONAL DE PROTEÇÃO. ENTENDIMENTO CONSOLIDADO EM RECURSO ESPECIAL REPETITIVO RESP 1.411.258/RS. REL. MIN. NAPOLEÃO NUNES MAIA FILHO. RECURSO ESPECIAL DO INSS A QUE SE NEGA PROVIMENTO.

1. Nos termos do art. 227 da CF, foi imposto não só à família, mas também à sociedade e ao Estado o dever de, solidariamente, assegurar à criança e ao adolescente os direitos fundamentais com absoluta prioridade. Além disso, foi imposto ao legislador ordinário a obrigação de garantir ao menor os direitos previdenciários e trabalhistas, bem como o estímulo do Poder Público ao acolhimento, sob a forma de guarda, de criança ou adolescente órfão ou abandonado.

2. A alteração do art. 16, § 2o. da lei 8.213/91, pela lei 9.528/1997, ao retirar o menor sob guarda da condição de dependente previdenciário natural ou legal do Segurado do INSS, não elimina o substrato fático da dependência econômica do menor e representa, do ponto de vista ideológico, um retrocesso normativo incompatível com as diretrizes constitucionais de isonomia e de ampla e prioritária proteção à criança e ao adolescente.

3. Não se deve perder de vista o sentido finalístico do Direito Previdenciário e Social, cuja teleologia se traduz no esforço de integração dos excluídos nos benefícios da civilização e da cidadania, de forma a proteger as pessoas necessitadas e hipossuficientes, que se encontram em situações sociais adversas; se assim não for, a promessa constitucional de proteção a tais pessoas se esvai em palavras sonoras que não chegam a produzir qualquer alteração no panorama jurídico.

4. Deve-se proteger, com absoluta prioridade, os destinatários da pensão por morte de Segurado do INSS, no momento do infortúnio decorrente do seu falecimento, justamente quando se vêem desamparados, expostos a riscos que fazem periclitar a sua vida, a sua saúde, a sua alimentação, a sua educação, o seu lazer, a sua profissionalização, a sua cultura, a sua dignidade, o seu respeito individual, a sua liberdade e a sua convivência familiar e comunitária, combatendo-se, com pertinácia, qualquer forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão (art. 227, caput da Carta Magna).

5. Considerando que os direitos fundamentais devem ter, na máxima medida possível, eficácia direta e imediata, impõe-se priorizar a solução ao caso concreto de forma que se dê a maior concretude ao direito. In casu, diante da Lei Geral da Previdência Social que apenas se tornou silente ao tratar do menor sob guarda e diante de norma específica que lhe estende a pensão por morte (lei 8.069/1990, Estatuto da Criança e do Adolescente, art. 33, § 3o.), cumpre reconhecer a eficácia protetiva desta última lei, inclusive por estar em perfeita consonância com os preceitos constitucionais e a sua interpretação inclusiva.

6. Nesse cenário, a jurisprudência desta Corte Superior, no julgamento do Recurso Especial 1.411.258/RS, representativo da controvérsia, consolidou a orientação de que o menor sob guarda tem direito à concessão do benefício de pensão por morte do seu mantenedor, comprovada a sua dependência econômica, nos termos do art. 33, § 3o. do Estatuto da Criança e do Adolescente, ainda que o óbito do instituidor da pensão seja posterior à vigência da Medida Provisória 1.523/1996, reeditada e convertida na lei 9.528/97.

7. Recurso Especial do INSS a que se nega provimento. (STJ, REsp 1.428.492/MA, Primeira Turma, Relator: Ministro Napoleão Nunes Maia Filho, Data de Julgamento: 13/3/18, Data de Publicação: 27/3/18). 

Não se pode deixar de comentar, também, a questão sob o prisma de o menor sob guarda atingir a maioridade e ser portador de deficiência.

Primeiro, tem-se que a Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência, lei 13.146/15, diz que é dever do Estado assegurar à pessoa com deficiência a efetivação dos direitos referentes à previdência social. Confira-se:

“Art. 8o  É dever do Estado, da sociedade e da família assegurar à pessoa com deficiência, com prioridade, a efetivação dos direitos referentes à vida, à saúde, à sexualidade, à paternidade e à maternidade, à alimentação, à habitação, à educação, à profissionalização, ao trabalho, à previdência social, à habilitação e à reabilitação, ao transporte, à acessibilidade, à cultura, ao desporto, ao turismo, ao lazer, à informação, à comunicação, aos avanços científicos e tecnológicos, à dignidade, ao respeito, à liberdade, à convivência familiar e comunitária, entre outros decorrentes da Constituição Federal, da Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência e seu Protocolo Facultativo e das leis e de outras normas que garantam seu bem-estar pessoal, social e econômico”. Destaques adicionados.

Segundo, pelo Código Civil, os menores de 16 (dezesseis) anos são absolutamente incapazes para os atos da vida civil e os menores de 18 (dezoito) e maiores de 16 (dezesseis) anos são relativamente incapazes ao exercício de certos atos ou à maneira de os exercer (conforme artigos 3º e 4º, inciso I, alterados pela lei 13.146/15).

Além de atualmente as disposições concernentes à tutela serem aplicadas à curatela (conforme artigo 1.774 do Código Civil), de modo a se entender pela possibilidade de interpretação positiva à concessão do benefício de pensão por morte pelas normas permissivas à equiparação do menor tutelado a filhos e dada a proteção destes enquanto perdurar a deficiência intelectual ou mental/incapacidade, também antes da última Reforma da Previdência, havia decisão no Poder Judiciário favorável à concessão de benefício previdenciário, dentro de Regime Próprio de Previdência Social, a pessoa maior de idade, mas incapaz quando interditado e dependente economicamente do titular do benefício.

Transcreve-se:

“ADMINISTRATIVO. APELAÇÃO. AÇÃO ORDINÁRIA. PREVIDÊNCIA. CAMPREV. PENSÃO POR MORTE DO AVÔ CONCEDIDA À NETA (INCAPAZ), INTERDITADA JUDICIALMENTE. POSTERIOR CASSAÇÃO COM BASE NA MAIORIDADE DA AUTORA, BEM COMO NA TRANSFERÊNCIA DA CURATELA DA AUTORA PARA SUA MÃE. IMPOSSIBILIDADE DE CASSAÇÃO DO BENEFÍCIO. DEPENDÊNCIA ECONÔMICA EM RELAÇÃO AO AVÔ, INSTITUIDOR DO BENEFÍCIO, CARACTERIZADA À ÉPOCA DO FALECIMENTO. RECURSOS DESPROVIDOS”. (TJ/SP, 3ª Câmara de Direito Público, Relator: Amorim Cantuária, Data do julgamento: 17/10/2017, Data de publicação: 17/10/2017).

Ainda, cite-se que, nesse cenário e nos últimos dias, mais uma vez o Superior Tribunal de Justiça por sua Corte Especial tratou da questão, garantindo o direito à pensão por morte vitalícia a pessoa que estava sob guarda de seu avô quando de seu óbito, era menor de idade e possui deficiência física e psíquica. Nesse sentido:

“PREVIDENCIÁRIO. EMBARGOS DE DIVERGÊNCIA EM RECURSO ESPECIAL. EXCEPCIONAL ADMISSIBILIDADE. MITIGAÇÃO. PENSÃO POR MORTE DO AVÔ. DEPENDÊNCIA. MENOR À DATA DO ÓBITO. PESSOA COM DEFICIÊNCIA DE LONGO PRAZO. ESTATUTO DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE E ESTATUTO DA PESSOA COM DEFICIÊNCIA. RECURSO CONHECIDO E PROVIDO.

1. Destacadas e reconhecidas as excepcionalidades do caso concreto, são mitigadas as exigências formais para o conhecimento dos embargos de divergência, em que se mostra notório o dissídio jurisprudencial, de modo a prevalecer valores sociais e humanitários relevantes, diretamente referidos à dignidade da pessoa humana, fundamento do Estado Democrático Brasileiro (CF, art. 1º, III).

2. Resta demonstrada a divergência entre o acórdão embargado (AgRg nos EDcl no REsp 1.104.494/RS, SEXTA TURMA, j. em 16/12/14) e o aresto paradigma (RMS 36.034/MT, Rel. Ministro BENEDITO GONÇALVES, PRIMEIRA SEÇÃO, j. em 26/2/14), confronto excepcionalmente admitido pelas razões acima e por ser esse precedente o primeiro - e o mais contemporâneo à época da interposição do recurso -, vindo a alterar a jurisprudência anterior, firmando nova e remansosa compreensão sobre o tema, em sentido oposto ao do acórdão embargado.

3. Esta Corte de Justiça consagra o entendimento da possibilidade de concessão de pensão previdenciária, no regime geral, a menor sob guarda judicial, mesmo quando o óbito do segurado houver ocorrido na vigência da redação do § 2º do art. 16 da lei 8.213/91, dada pela lei 9.528/97. Prevalência do disposto na Carta Federal (art. 227) e no Estatuto da Criança e do Adolescente (lei 8.069/90, art. 33, § 3º) sobre a alteração legislativa que retirou o menor sob guarda da condição de dependente previdenciário natural ou legal do segurado do INSS. Entendimento que se mantém inalterado, quando, ao atingir a maioridade, é o beneficiário da pensão pessoa portadora de severa deficiência de longo prazo, passando à tutela do Estatuto da Pessoa com Deficiência (lei 13.146/15).

4. Embargos de divergência providos”. (STJ, REsp 1.104.494/RS, Corte Especial, Relator: Ministro Raul Araújo, Dje: 2/3/21).

Pela decisão, nota-se que a Corte mais uma vez privilegiou a observância do Estatuto da Criança e do Adolescente, assim como os direitos fundamentais reconhecidos no país em favor das crianças e adolescentes com deficiência, inclusive o da dignidade da pessoa humana.

Izabella de Oliveira
Izabella Cristina Martins de Oliveira é advogada, atuante na área de Direito Público, sócia-fundadora da Toledo Lima, Patrezze & Oliveira Advogados.

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