Introdução
O processo de bancarização vem passando por grande alteração e expansão, especialmente com o advento dos bancos digitais e das Fintechs1. Há uma clara migração de contas até então mantidas em tradicionais players do mercado, para os novos entrantes, que, também, conquistaram a confiança e simpatia dos consumidores mais jovens, alinhados com desburocratização e tecnologia.
Segundo o site Diário do Comércio, uma dessas “novas empresas” estava sendo responsável por abrir 14 mil contas diariamente, somando um aumento de 155% na abertura de contas digitais2. O C6 Bank, em dezembro de 2020, já contabilizava mais de 4 milhões de contas abertas, o que garante sua presença em 99,7% dos municípios brasileiros3; o Banco Inter, encerrou 2020 com cerca de 8,5 milhões de correntistas, aumento de 108% em relação a 20194, e o Banco Original, segundo dados de maio de 2020, possuía 3,5 milhões de clientes5.
Esse aumento no uso de contas bancárias digitais se deve, além de outras razões, pela economia (isenção de taxas), facilidade e rapidez, pois, em geral, basta efetuar o download do aplicativo no celular ou tablet, fornecer os dados usualmente requeridos, enviar uma foto ao lado do documento de identidade e a conta bancária digital estará quase pronta, restando, apenas, o processo de análise e validação dos dados.
Mas, se de um lado a facilidade mencionada conquista uma gama de novos clientes, de outro, atrai os olhares maliciosos de fraudadores e estelionatários, os quais se valem da mesma praticidade e rapidez, para abrir contas com objetivo único de receber e transferir valores provenientes de vítimas ludibriadas por alguma modalidade de golpe.
Em razão da atípica crise da saúde - que impactou a economia- e da demasiada utilização de meios eletrônicos para compras e vendas, aumentaram muito as tentativas de fraudes financeiras por meio da internet6 e, como se tem noticiado, cresceu a incidência do golpe intitulado “dinheiro fácil”7 8 e WhatsApp clonado9 10, que substituíram o “falso sequestro”11, não excluindo aqueles já tradicionais, em que farsantes se fazendo passar por outras pessoas, tomam empréstimos, especialmente com as Fintechs – nas quais o trâmite é mais simples -, e o crédito é depositado em contas legitimamente abertas em outras instituições financeiras.
Como se sabe a variedade dos golpes é imensa, com novas situações sendo criadas a cada dia, mas, para muitos desses embustes há uma peculiaridade comum, qual seja, a utilização de conta legitimamente aberta para receber e depois transferir o dinheiro (produto do crime). Sendo assim, como já constante do título, importante analisar a (ir)responsabilidade do banco nesses casos.
Análise de caso
No caso de fraude a ser tratado neste artigo (aleatoriamente escolhido entre tantos que são levados ao Judiciário), a vítima negociou - através de um site de vendas - uma grande compra de cabeças de gado com o estelionatário, que indicou 3 (três) contas correntes (de pessoas estranhas à negociação) para pagamento. O comprador, infelizmente, descobriu o golpe tarde demais, quando já havia realizado os depósitos e o dinheiro sido transferido pelo fraudador.
A partir dos cenários delineados, e ante a dificuldade de se responsabilizar os golpistas, tem sido usual que a vítima direcione sua pretensão jurídica (visando recuperar o montante subtraído) à instituição financeira na qual estava domiciliada a conta utilizada para receber e distribuir os valores.
Sobre essa discussão acerca da responsabilidade civil das instituições financeiras por prejuízos decorrentes de fraudes, muitos processos chegaram ao Superior Tribunal de Justiça, tendo sido editada, em 2012 (há quase 10 anos), a súmula 479: “As instituições financeiras respondem objetivamente pelos danos gerados por fortuito interno relativo a fraudes de delitos praticados por terceiros no âmbito de operações bancárias".
Mas, para se verificar a possibilidade de aplicação da mencionada súmula ao caso aqui analisado, é preciso entender se a instituição bancária participa do processo de causação do dano à vítima, pois a disponibilização da conta legitimamente aberta por um correntista pode não ser considerada como fator essencial a gerar prejuízo, já que os golpistas estariam aptos a receber os valores de várias outras formas.
Sendo assim, por não haver fraude na abertura da conta corrente usada pelo estelionatário – que apresentou os documentos necessários e de forma correta –, mas, direcionou o uso da mesma para receber valores ilegalmente obtidos da vítima, a súmula não deve ser aplicada, não se tratando, de exceção, mas de não incidência em situações distintas daquelas que ensejaram o entendimento da Corte Superior.
Seguindo a análise, nos golpes em que o estelionatário se vale de conta regularmente aberta, a atuação das instituições financeiras não pode ser considerada defeituosa por eventual falha na segurança e, muito menos, equiparada a um fortuito interno, uma vez que, como já afirmado, não houve qualquer fraude em sua gênese relacionada com o golpe. Reforçando essa conclusão, cabe destacar a teoria da causalidade adequada adotada em diversos precedentes, que, no direito penal, é determinante para identificar o agente do crime e, no direito civil, se revela indispensável para análise do nexo causal. Nesse sentido, veja-se posicionamento recente do Eg. STJ:
(...) ainda que reconhecida a incidência do CDC nas relações entre consumidores (não cooperados) e as instituições financeiras, e mesmo aplicando-se as teorias da causalidade adequada e do dano direto imediato, somente há responsabilidade civil por fato do produto ou serviço quando houver um defeito determinante da causa dos danos sofridos pelo consumidor (...).
(STJ – 3ª turma, AgInt. no REsp. 1.676.998/ES, Rel. Min. Ricardo Villas Bôas Cueva, j. 24/8/20)
Entende-se, então, que o grande ponto de indagação deve ser: de que modo a ação/omissão do banco contribuiu para a ocorrência do dano?
Ideia assemelhada foi abordada, ainda em 2019, por estes mesmos autores, quando da publicação do artigo “A atuação dos gatekeepers: responsabilidade proporcional ao âmbito da intermediação”12, sendo possível traçar um paralelo entre o presente caso e a atuação dos gatekeepers13, no sentido de que o banco funciona apenas como “meio” para instrumentalização da fraude, devendo sua responsabilidade ser analisada de acordo com a sua atuação, ou seja, a responsabilização da instituição deve ocorrer apenas quando (e se) houver alguma falha na segurança ou descumprimento de ordem judicial:
(...) Haveria nexo causal entre a conduta do aplicativo/site – que disponibilizou sua plataforma para aproximação dos usuários - e o dano alegado? Poderia o intermediário (neste caso) ter evitado o suposto dano? Para ambas as perguntas a resposta é negativa, entendendo-se que a correção da situação se dará por meio de uma nova perspectiva de análise da responsabilidade, na qual o intermediário somente responderá por vícios oriundos de sua atuação (nexo causal direto), não cabendo a este (por não fazer parte de sua atividade empresarial) inspecionar constante e permanentemente os imóveis antes de cada contrato, sob pena de inviabilização da plataforma/ negócio proposto pelo gatekeeper.
Corroborando o raciocínio exposto está a fundamentação utilizada pela Ministra Nancy Andrighi, relatora no julgamento do REsp. 1.786.157/SP, no qual restou destacada a ausência de nexo de causalidade entre a conduta do banco que apenas emitiu o boleto, e o prejuízo experimentado pelo lesado ao não receber mercadoria comprada pela internet. Mesmo tendo buscado a proteção do Código de Defesa do Consumidor, a tese dos Autores daquela ação foi rejeitada pelo E. STJ, que não considerou a instituição financeira como participante da cadeia de fornecimento, destacando, contudo, serem três as principais fontes de responsabilidade dos bancos junto aos consumidores: deveres de segurança, fidúcia e boa-fé.
Desse modo, as instituições financeiras devem ser consideradas objetivamente responsáveis apenas por danos decorrentes de sua atividade, compreendida como o conjunto de práticas, atos ou contratos por ela executados:
“Na hipótese dos autos, contudo, o recorrente foi vítima de suposto estelionato, pois adquiriu um bem de consumo que nunca recebeu, nem iria receber se outro fosse o meio de pagamento empregado, como cartão de crédito ou transferência bancária. Em outras palavras, o banco recorrido não pode ser considerado um “fornecedor” da relação de consumo que causou prejuízos à recorrente, pois não se verifica qualquer falha na prestação de seu serviço bancário.”
A fundamentação utilizada no v. acórdão é perfeitamente cabível no presente estudo, uma vez que, se o banco apenas foi responsável pelas aberturas das contas – de forma legítima –, inexistindo caracterização de ofensa aos deveres acima mencionados, não pode, de forma alguma, ter sua prestação de serviço perfeita e acabada, considerada como causa ensejadora do dano, tal qual uma loja de automóveis que efetua uma venda, não se responsabiliza se o veículo for utilizado para o cometimento de um crime.
O art. 14 da legislação consumerista dispõe que a responsabilização do fornecedor de serviços fica excluída quando a responsabilidade é exclusiva do consumidor ou de terceiro (inc. II do § 3º) e, aplicando a norma, o E. STJ vem reconhecendo a ilegitimidade passiva dos Bancos nas ações em que se busca responsabilizá-los quando a vítima, de forma negligente, realiza depósitos em contas de terceiros sem ao menos verificar se os dados informados são legítimos:
(...) Não pertencendo à cadeia de fornecimento em questão, não há como responsabilizar o banco recorrido pelos produtos não recebidos. Ademais, também não se pode considerar esse suposto estelionato como uma falha no dever de segurança dos serviços bancários. Extrapolando esse raciocínio, todos os bancos operando no território nacional, incluindo operadoras de cartão de crédito, seriam solidariamente responsáveis pelos vícios, falhas e acidentes de produtos e serviços que forem adquiridos, utilizando-se um meio de pagamento disponibilizados por essas empresas, o que definitivamente não encontra guarida na legislação de defesa do consumidor.
(STJ – Resp. 1.786.157/SP, 3ª turma, Rel. Min. Nancy Andrighi, j. 3/9/19)
Portanto, dois são os motivos que afastam a responsabilização bancária no caso sob análise: primeiro, a conta utilizada pelo estelionatário não se insere no nexo de causalidade imprescindível para que ocorra a responsabilização objetiva sedimentada na súmula 479 do STJ; segundo, à luz do CDC e seu art. 14, o banco fica excluído do rol de sujeitos a quem se poderia atribuir responsabilidade pelo dano causado ao consumidor.
E esse, inclusive, foi o entendimento adotado no julgamento do caso concreto (“compra de cabeças de gado”) mencionado, cuja sentença restou fundamentada no fato de que a atividade bancária não guardou nenhuma relação com o episódio danoso:
(...) Ou seja, sendo objetiva a responsabilidade das instituições bancárias, há de se averiguar, substancialmente, se há nexo causal entre a atividade bancária da ré e o dano; vale dizer, se o dano (um dos pressupostos para a responsabilização civil) causado ao autor decorreu da atividade bancária em si (fortuito interno), no próprio "âmbito" de operações bancárias (como aponta a súmula); ou, a depender da abordagem teórica (teoria do risco), se esse resultado (dano) pode ser razoavelmente imputado como decorrente dos "riscos" da atividade bancária. Fixadas as premissas, de pronto e a grosso modo, há de se anotar que a atividade bancária não deteve relação alguma com o início do episódio danoso (fraude), bem como que a fraude não deteve como móvel um evento estritamente afeto às operações bancárias.
Aquele r. juízo, na mesma linha de raciocínio aqui desenvolvida, apontou que o banco foi utilizado como mero "instrumento" da atividade criminosa, em nada se inserindo o dano sofrido no âmbito do risco da atividade bancária, tendo utilizado como exemplo a responsabilidade das indústrias de armas de fogo:
(...) Do contrário, haveria de se responsabilizar civilmente as indústrias do ramo de armamentos em razão de homicídios causados com a utilização de armas de fogo, justamente por não deterem essas empresas melhor sistemática de controle do destino desses armamentos produzidos.
Por fim, asseverou que o valor foi transferido "voluntariamente" pela vítima, não havendo demonstrativo mínimo de que o banco teria colaborado para a prática do ilícito.
Conclusão
No caso sob análise, assim como no semelhante já julgado pelo E. STJ, o banco não deve ser considerado membro da cadeia de fornecimento, mas, ainda que se considerasse a existência de relação de consumo, a responsabilidade seria afastada pela excludente prevista no artigo 14 da legislação própria (CPDC), pois, quando a instituição financeira procede abertura de conta, respeitando e observando todas as normas legais, presta um serviço sem vícios, não lhe cabendo, por falta de determinação legal, investigar os interesses de quem está propondo a abertura da conta, ou mesmo, acompanhar a procedência dos valores que lá são recebidos14.
Sendo assim, o estelionato praticado (noutra relação comercial, a de compra e venda) não pode ser considerado falha no dever de segurança dos serviços bancários, tampouco falha no dever de fidúcia, não havendo se falar em má-fé da instituição, que em nenhum momento participou do negócio realizado entres as partes.
Inobstante seja odioso o prejuízo causado às vítimas pelos criminosos, o ressarcimento deve ser buscado em face do verdadeiro responsável e não perante o banco, na qualidade de “alvo mais fácil de se atingir”, considerando sua visibilidade e porte financeiro.
A facilidade na abertura de contas correntes é um ganho para a sociedade, principalmente para grande parte que ainda não se encontra bancarizada e, por isso, não pode ser vista de forma negativa, sob pena de obstacularizar o imprescindível avanço tecnológico. Os conceitos fechados e ultrapassados de responsabilização dos bancos precisam ser revistos pelos aplicadores do direito, para que as novas situações, especialmente aquelas advindas das novas tecnologias, sejam corretamente enquadradas, facilitando a implementação da justiça, com o estudo de cada caso concreto.
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1 “(...) fintechs são startups que trabalham para inovar e otimizar os serviços do sistema financeiro. Além disso, têm custos operacionais menores comparados às instituições tradicionais do setor. As fintechs apresentam crescimento cada vez maior, tanto no Brasil quanto no exterior. E isso acontece devido à grande demanda na busca por serviços financeiros mais práticos e descomplicados. (...)”. Disponível clicando aqui. Acesso em: 10/1/21.
2 Clique aqui - Acesso 17/12/20.
3 Clique aqui - Acesso em 10/1/21.
4 Clique aqui - Acesso em 10/1/21.
5 Clique aqui - Acesso em 10/1/21
6 Segundo o site Agência Brasil, tal fato não passou despercebido pela Federação Brasileira de Bancos – FEBRABAN: “Levantamento da Federação Brasileira de Bancos (Febraban) mostrou o crescimento de tentativas de fraudes financeiras contra os brasileiros durante a pandemia de covid-19. Neste período, as instituições registraram aumento de 80% nas tentativas de ataques de phishing – que se inicia por meio de recebimento de emails que carregam vírus ou links e que direcionam o usuário a sites falsos”. Ainda segundo a FEBRABAN, no período da quarentena houve alta de 60% em tentativas de golpes financeiros contra idosos, o que resultou em uma campanha de alerta com o apoio da Secretaria Nacional de Promoção e Defesa dos Direitos da Pessoa Idosa, vinculada ao Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, e do Banco Central - Clique aqui - Acesso em 17/12/20
7 Golpe por meio do qual os estelionatários colocam anúncios na internet, oferecendo empréstimos, como forma de ludibriar vítimas que acabam realizando depósitos a título de custas administrativas e ficam sem o valor que seria tomado emprestado do suposto agente bancário.
8 Ação indenizatória. Depósito de valores com o fim de liberar valor falso empréstimo. Autores vítimas de fraude. Sentença de improcedência. Apelação. Narrativa que demonstra a ausência de adoção de cautelas mínimas por parte dos recorrentes. Negociações realizadas via Whatsapp; incongruente a exigência de depósito prévio para se proceder ao empréstimo; conta destinatária pertencente a pessoa física, de outro banco que não a instituição financeira ré. Culpa exclusiva do consumidor comprovada. Exclusão de responsabilidade do prestador de serviços, conforme art. 14, § 3º, II, do Código de Defesa do Consumidor. Nexo causal não constatado. Sentença mantida. Honorários devidos ao patrono da ré majorados. Recurso desprovido.” (TJ/SP – 21ª Câm. DiPri. Apel. 1000004-29.2019.8.26.0010, Rel. Virgílio de Oliveira Junior, j. 16/7/20)
9 Golpe por meio do qual no qual os fraudadores clonam o aplicativo e enviam mensagens para os contatos da vítima, fazendo-se passar pela mesma, solicitando que sejam feitos depósitos em determinadas contas bancárias, normalmente s sob a justificativa de estar precisando de dinheiro para um fim específico.
10 AÇÃO REPARAÇÃO DE DANOS MATERIAIS E MORAIS – R. Sentença de improcedência – Recurso da autora – Insurgência – Impossibilidade – Transferências bancárias realizadas a pedido de suposta "amiga" através do aplicativo Whatsapp – Operações bancárias realizadas em valores de elevada monta à terceiros, sem qualquer prudência – Autora que sequer realizou a confirmação da veracidade das informações e da fonte dos dados – Culpa exclusiva do consumidor – Excludente de responsabilidade – Aplicação do artigo 14, § 3º do CDC - Precedentes – Ausência de ato ilícito por parte dos réus - Danos morais não caracterizados - Por força da sucumbência recursal, impõe-se a majoração dos honorários impostos, diante da regra do artigo 85, § 11, do CPC/15 - Sentença mantida - Recurso não provido. (TJ/SP – 15ª Câm. DiPri., Apel. 1012682-69.2019.8.26.0562, Rel. Achile Alesina; j. 15/9/20)
11 Golpe, perpetrado por telefone, por meio do qual criminosos ligam para a vítima simulando o sequestro de um parente ou pessoa próxima e exigem que seja depositado um valor para liberar a pessoa supostamente sequestrada.
12 SCHONBLUM, Paulo Maximilian e CAVALCANTI, Gabriela. “A atuação dos gatekeepers: responsabilidade proporcional ao âmbito da intermediação”, Direito em Movimento, Rio de Janeiro, v. 17 - n. 2, p. 108-123, 2º sem. 2019.
13 “Tratando-se do ambiente virtual, o fornecedor intermediário foi denominado por Cláudia Lima Marques de gatekeeper, termo resgatado do Professor Hans W. Micklitz, que significa, literalmente, “o guarda da porta ou portão” (MARQUES, Cláudia Lima. A nova noção de fornecedor no consumo compartilhado: um estudo sobre as correlações do pluralismo contratual e ao acesso ao consumo. Revista de Direito do Consumidor, v. 111/2017, pp. 247–268)
14 Exceto para situações de suspeita de lavagem de dinheiro que devem ser comunicadas ao COAF