Em meio à crise sanitária sem precedentes na história brasileira aquilo que deveria ser a maior campanha de imunização encontra-se emperrada pela mora injustificada das autoridades formalmente competentes. Diante desse quadro, o Executivo Federal e o Ministério da Saúde foram demandados, por meio da arguição de descumprimento de preceito fundamental - ADPF 754/DF e 756/DF, para apresentarem o plano de aquisição de vacinas com cronogramas, as ações de pesquisa ou desenvolvimento previstos, as tratativas, os protocolos ou os entendimentos de intenção etc.
Sem determinar qualquer data para o início das atividades, o Ministério da Saúde apresentou um suposto plano nacional de vacinação contendo genericamente o encerramento da campanha. Em dezembro de 2020 o STF determinou a publicidade do plano nacional e intimou o ocupante do cargo de Ministro da Saúde para especificar a previsão de início e término do plano.
Nesse intervalo o STF decidiu pela constitucionalidade da vacinação compulsória contra a Covid-19, que não se confunde com a aplicação forçada da vacina, mas a possibilidade de sanções indiretas, conforme estabelecido na ação direta de inconstitucionalidade - ADI 6.586/DF e 6.587/DF. Inclusive, o Tribunal fixou uma tese de que a obrigatoriedade da imunização não caracteriza violação à liberdade de consciencia e de convicção filosófica, segundo a repercussão geral no recurso extraordinário com agravo - ARE 1267879/SP.
Preenchida essa omissão, surgiram outras problemáticas, como o desabastecimento de vacinas e insumos, a paralização temporária da imunização em algumas unidades da Federação, o surgimento de mutações virais com maior capacidade infectante, o colapso generalizado do Sistema Único de Saúde - SUS e a disparada do número de pessoas mortas pela doença e principalmente pela falta de atendimento especializado. Sem dúvida, o quadro atual é bastante preocupante e apresenta tendência ao agravamento.
Apesar de serem tempos excepcionais ressalta-se que o STF demostrou que pode contribuir para o enfrentamento da Covid-19 no Brasil. Diante disso, argumenta-se pela atuação judicial para tutelar o direito fundamental e social à saúde para determinar o cumprimento do dever estatal da implementação de políticas sociais e econômicas para diminuir os riscos da Covid-19, mediante o acesso universal e igualitário da respectiva imunização, conforme positivado no artigo 196 da CF/88.
Em momentos extremos nos quais o horizonte não aparenta ser muito promissor, parece adequado refazer os principais passos nessa trajetória. Antes, cabe destacar que a relevância da saúde pública coletiva é o fundamento de algumas medidas restritivas às liberdades de ir e vir (confinamentos) e também envolve questões de incolumidade física (vacinação obrigatória), por exemplo.1
Em primeiro lugar, tem-se um direito fundamental e um dever prestacional estatal,2 que encontra vários níveis de desafios para sua concretização, sobretudo quando atravessado por marcadores de raça e de classe.3 Além disso, a judicialização é um fator ou uma circunstância própria do desenho institucional brasileiro,4 que mediante um conjunto de decisões judiciais buscam assegurar o cumprimento de políticas públicas voltadas para essa finalidade.
Aliás, desde o ARE 1049831/PE que se firmou o entendimento de que cabe ao Judiciário, excepcionalmente, determinar a implementação de políticas públicas relativas ao direito constitucional à saúde. Nesse sentido, entende-se pela possibilidade de imposição de medidas judiciais heterodoxas destinadas às questões da imunização contra a Covid-19. Com a observância de robustos critérios científicos, sustenta-se a possibilidade da inclusão de grupos efetivamente vulneráveis na ordem prioritária de vacinação quando injustificadamente preteridos, por outras palavras, o plano de vacinação contém (ou deveria conter) diretrizes para Estados, Municípios e para o Distrito Federal e, portanto, pode ser objeto de análise pelo STF.
Porém, a expansão judicial encontra críticas na literatura nacional e estrangeira, especialmente quanto aos custos atrelados à implementação de direitos.5 Por certo, o desenho institucional e o contexto brasileiros concebem o STF como um “ator chave” na definição de importantes questões ao direito fundamental a saúde, sem substituir as demais instituições e a sociedade civil.
Em segundo lugar, a pandemia ou sindemia de Covid-19 impõe novos desafios para a judicialização da saúde. Apesar da intensa atuação judicial nesse período - entre abril de 2020 e março de 2021, o STF prolatou 175 acórdãos, 3.796 decisões monocráticas (destas 213 foram decisões da presidência), 1 tema de repercussão geral, 1 questão de ordem, 32 informativos e 1 coletânea com as principais decisões judiciais traduzidas para o idioma inglês Case law compilation - a reflexão proposta reside na garantia de que a vacinação contra a Covid-19 seja pautada à luz da integralidade, diretriz constitucional do SUS, enquanto exemplo de uma política específica baseada no princípio da integralidade em políticas especiais, conforme estabelecido na suspensão de tutela antecipada - STA 175/CE.
Aquilo que confere ordem prioritária na vacinação de grupos específicos precisa levar em consideração a existência de um plano nacional, a omissão administrativa em relação a certos grupos e a observância de critérios científicos aceitáveis. Portanto, essas diretrizes iniciais, tal qual o conjunto de decisões do STF, pretendem evitar que o direito fundamental e social à saúde possa ser obstado pela desarrazoada omissão do Executivo Federal.
Desse modo, as contribuições do STF no plano de imunização, para além da tradicional judicialização, perpassam pela atualização do direito à saúde e também pela garantia de que grupos vulneráveis não sejam injustificadamente preteridos. Os argumentos relacionados a essa hipótese sustentam sua confirmação e deixam transparecer os impactos positivos das atuações do STF dentro da atual situação.
Invariavelmente essa proposta instiga as críticas da baixa densidade democrática do Judiciário; contudo as práticas judiciais do STF no plano de imunização contra a Covid-19 são para romper a inércia injustificada de parte do Executivo Federal, para assegurar a publicidade do plano nacional de imunização, para preservar a estrutura federativa e para concretizar o direito fundamental e social à saúde.
__________
1- BRANCO, Paulo Gustavo Gonet; MENDES, Gilmar Ferreira. Curso de direito constitucional. 7. ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2012.
2- SARLET, Ingo Wolfgang. Algumas considerações em torno do conteúdo, eficácia e efetividade do direito à saúde na Constituição de 1988. Direito e Democracia, Canoas, v. 03, n. 02, 2002, p. 333-354.
3- Entre outros, cf. CHOR, Dóra; LIMA, Claudia Risso de Araujo. Aspectos epidemiológicos das desigualdades raciais em saúde no Brasil. Cadernos de Saúde Pública, Rio de Janeiro, v. 21, n. 05, out. 2005, p. 1.586-1.594; SANTOS, José Alcides Figueiredo. Desigualdade racial de saúde e contexto de classe no Brasil. Dados: Revista de Ciências Sociais, Rio de Janeiro, v. 54, n. 01, 2011, p. 05-40.
4- BARROSO, Luís Roberto. O controle de constitucionalidade no direito brasileiro: exposição sistemática da doutrina e análise crítica da jurisprudência. 6. ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2012.
5- Entre outros, cf. FERRAZ, Octávio Luiz Motta. Para equacionar a judicialização da saúde no Brasil. Revista Direito GV, São Paulo, v. 15, n. 03, set./dez. 2019, p. 01-39; HOLMES, Stephen, SUNSTEIN, Cass. The cost of rights: why liberty depends on taxes. London: W. M. Norton, 1999; STONE, Geoffrey R.; STRAUSS, David A. Democracy and equality: the enduring constitutional vision of the Warren Court. New York: Oxford University Press, 2020.