Ao tratar sobre a expansão da Justiça Negociada em matéria penal, em contexto internacional, incluindo-se o Brasil como adepto futuro (e já em fase de implementação avançada)1 deste modelo consensual de Justiça, Marcella Alves Mascarenhas Nardelli2, no artigo “A Expansão da Justiça Negociada e as perspectivas para o processo justo: a plea bargaining norte-americana e suas traduções no âmbito da civil law”, adotou a expressão overcharging para explicar o método de sobreimputação utilizado, em alguns casos, pelo Ministério Público quando oferece denúncia que exaspera os acontecimentos existentes passíveis de enquadramento jurídico-penal, seja por meio de uma pluralidade indevida de condutas penais (horizontal overcherging), seja através de um evidente exagero na cominação da aplicação das penas (vertical overcharging).
Aquele contexto, todavia, reconstrói um cenário de utilização dessa força acusatória do Ministério Público levada ao extremo, como uma verdadeira tática de guerrilha, com objetivo, ao final, de obter-se a tão desejada justiça negociada penal.
Aqui, a pertinência temática é outra. Eis o problema que se busca esclarecer no presente artigo: a prática do overcharging pode provocar consequências para o acusador na esfera da improbidade administrativa, com as implicações próprias da lei 8.429/92? Estaria este acusador agindo em improbidade administrativa?
Preponderantemente, é o Ministério. Público o titular da ação penal (desde que seja pública incondicionada à representação ou pública condicionada à representação). É o ordinário. A ação penal privada é exceção.
Ocorre, não invariáveis vezes, um detectável excesso no direito constitucional de acusar, regulamentado, igualmente, pela lei 8.625/93, na qual, em capítulo próprio (IV), indica-se, a partir do art. 25, uma série de funções típicas do órgão de acusação. Dentre elas não há, por óbvio, uma ampla e irrestrita liberdade de se acusar de acordo com convicções pessoais ou de forma descriteriosa e o que pior: acusar para causar temor, intimidação ou algo que o valha, buscando-se, como feedback um acordo negociado penal, em suas mais nova modalidades (suprimida, aqui propositalmente, a expressão “justiça negociada” - nestes moldes não é justo ou não é justiça).
As regras que autorizam e legitimam o ajuizamento de uma ação penal precisam ser interpretadas em conjunto com as regras próprias do Código de Processo Penal, em especial a presença indelével da Justa Causa (art. 395, inciso III do CPP) que, quando inexistente, é hipótese, inclusive, de considerar-se uma coação ilegal (art. 648, inciso I do CPP) autorizadora de uma concessão de ordem de habeas corpus. E quem promove esta coação? O Ministério Público. E, sim, repita-se, a partir de uma coação ilegal.
Portanto, deve-se – e se faz necessário – desconstruir uma ideia imaginária de imunidade do órgão de acusação quando atua pautado em excessos. E não se confunda, aqui, “excessos” com “alto rigor”, “dureza”, “firmeza” no ato de acusar que, críticas à parte a animosidades moderadas em peças processuais, podem ser toleradas. Em alguns casos os fatos são até mesmo atípicos.3 Excessos devem ser compreendidos, ao menos para os fins desse ensaio, como aquilo que ultrapassa os padrões da legalidade.
Há enquadramento típico, nestas situações, e há, por sua vez, consequências jurídicas por estes atos. Nada mais natural quando se espera que fiscais da lei, agente públicos em sentido amplo (ou políticos, de modo mais específico4) por essência, devam militar (e limitar) suas atuações em conformidade com desígnios democráticos: ninguém deve ser acusado a mais ou a menos pelos supostos delitos praticados. Deve-se funcionar, em contornos jurídicos, a mediana aristotélica, a virtude ao invés dos vícios.
Sobejam exemplos: porque acusar-se alguém por concurso material de delitos quando sabe-se que o caso impõe o reconhecimento de continuidade delitiva (vertical overcharging)?; porque inserir fatos com tipificações criminais alienígenas (fora daquilo que a investigação apurou e constatou) para incrementar uma ação penal recheada de condutas penalmente relevantes (horizontal overcherging)?
Sem obtemperar, porque não faz parte do desígnio deste artigo, tratar de medidas outras tais quais o excesso no uso de medidas coercitivas (buscas e apreensões extemporâneas, prisões preventivas intermináveis, interrogatórios alongados, etc).
E ao ensejo, também por opção de corte temático, não se abordará os crimes de Abuso de Autoridade da lei 13.869/19, o que demandará, oportunamente, um escrito próprio, à luz da dogmática penal.
Contudo, retornando-se à ode das acusações hiperbólicas, essas sim merecem especial atenção. Afinal, como diria Fernando Facury Scaff, “Quem controla o controlador?”5. É preciso haver limites. Sem “açaimos” no direito-dever de punir do Estado, porém limites.
Há inclusive, precedentes do STJ de perda da função de promotor pela prática de ato de improbidade administrativa (STJ - REsp: 1.298.092/SP)6.
Daí partem-se três considerações que são consequências lógicas para eventuais excessos acusatórios: (I) é ato de improbidade administrativa qualquer ação que atente contra os princípios da administração pública e que “viole os deveres de honestidade, imparcialidade, legalidade, e lealdade às instituições”7; (II), também é ato de improbidade administrativa “praticar ato visando fim proibido em lei ou regulamento ou diverso daquele previsto, na regra de competência”8; (III) também é ato de improbidade administrativa causar lesão ao erário9.
Foque-se, primeiramente, no ponto (I): acusar valendo-se de uma “técnica” de utilizar aglomerados de fatos destituídos de lastro mínimo probatório para intimidar um acusado para que sofra os efeitos próprios e psicológicos de uma ação penal atenta, ao menos, o dever de honestidade, legalidade e lealdade às instituições. O fim é espúrio, portanto, desonesto com a própria instituição que é permanente e essencial à função jurisdicional do Estado.
Em outra perspectiva, ao que se nomeou ponto (II), tem-se que não se pode acusar sem justa causa penal que o autorize, portanto, trata-se de ato que visa fim proibido em lei. Clara ofensa aos art. 395, inciso III do CPP e art. 648, inciso I do CPP.
Por derradeiro, no ponto (III), essas ações penais excessivas causam lesão ao erário, porque, ao movimentarem a máquina estatal inutilmente, ensejam perda patrimonial, com mobilização de equipes em operações altamente paramentadas, com deslocamento de corpo técnico em larga extensão. Os custos são altíssimos (estima-se em 2,5 milhões anuais em operações, apenas da Lava Jato).10 É preciso, pois, parcimônia e zelo com a coisa pública.
Nada obstante, não se nota um esforço persecutório para se investigar, se for o caso, e preservado o devido processo legal com ampla defesa e contraditório, punir-se aqueles que, investidos na moldura de parquet valendo-se de um permissivo constitucional, acoima-se em denúncias com fins não conciliáveis com o desígnio de um fiscal da lei.
A propósito, valioso salientar as lições de Antonio Vieira11:
“En el contexto de la operación Lava Jato, algunas tácticas utilizadas marcaran la gran diferencia, en el sentido de tornar casi insuportable el preciso del silencio y, para algunos, irrecusable el caminho de la delación. Algunas de estas estratégias se pueden enumerar: a) el uso masivo de prisión provisional, con prologando tempo de duración; b) el uso de técnicas de overcharging em las imputaciones; c) gran numero de registros domiciliários; d) uso de conducciones coercitivas para interrogatório incluso contra investigados que podrían, em teoria, invocar nem tenetur; e) bloqueo de biens e valores, a tornar más difícil el pago da la própria defensa; f) la interlocución de los investigadores com los medios de comunicación - haciendo que los temas de la operación estén en los telediarios todos os los dias (trial by media), em uma evidente estrategia de oppressive publicity - g) presión popular sobre las otras instancias del judiciário, que pasaron confirmar casi la totalidade de las decisiones tomadas em primeira instancia, tornando remota la perspectiva de excarcelacíon, em eseos casos; h) el uso de las informaciones adquiridas com las primeiras delaciones, a favorecer la condición negocial de Ministerio Publico, colocando los fiscales ; i) deflagración de nuevas etapas de la operación em cortos intervalos de tempo, a fin de inculcar em los investigados la creencia de que estaban a punto de ser presos, y j) por fin, las penas altíssimas impuestas as los primeiros condenados y que siguieron este parâmetro a lo largo de los primeiros cuartos años de la operación (con um promedio alrededor de diez años de prisíon em cada condena), etcétera.
Basicamente, o autor deixa evidente uma deturpação no dever de acusar e é preciso que a isto atribua-se um enquadramento jurídico. E lógico: consequências jurídicas. Não caberia, aqui, numa adaptação canhestra do unvereinbarkeitser klärung, muito bem retratada na obra de Gilmar Mendes ao abordar este fenômeno na jurisprudência da corte constitucional alemã12, que é capaz de declarar a inconstitucionalidade sem a pronúncia de nulidade da lei. É uma comparação desajeitada, para se dizer que, nas hipóteses de que se cuidam este ensaio, é preciso reconhecer-se o ato ilegal e aplicar-lhe a devida sanção. Ou seja, pronunciar e efetivar a consequência jurídica.
A jurisprudência, principalmente em Tribunais Superiores, ainda não tem enfrentado a matéria sob esta ótica do excesso de acusação e os efeitos a ela correlatos, salvo alguns Julgados insipientes sobre aplicação de litigância de má fé nestas situações (veja-se aqui13 e aqui14). É, nestes termos, ainda muito tímida.
Mas, com as licenças de estilos, não são suficientes.
É preciso, por ser norma cogente e dever legal daqueles que zelam pelo patrimônio público e mantém hígidos os princípios da administração pública, que adotem as providências necessárias pela punição de seus pares que, no exercício do múnus persecutório, valem-se de prática de overcharging para fins não democráticos, respondam, após os tramites investigatórios e processuais regulares, por ação civil por improbidade (vale-se aqui o trabalho hermenêutico de subsunção dos fatos às diversas normais de tipicidade administrativa elencadas acima).
Ministério Público, mais até que o agente público comum, é conhecedor dos seus deveres e, principalmente, de suas limitações. Quem exerce poder sem limites, não os prestigia e nem quer controle, prefere o livre arbítrio de suas próprias convicções, muitas vezes não constitucionais. Acuse-se, na medida da legalidade. Ou, arque-se pelo excesso, igualmente violadores de princípios da administração pública e violência ao seu erário. Não se quer, antes que se cogitem, generalizar as atuações. Adaptando-se a frase de Nelson Hungria, para quem “toda unanimidade é burra”, se diria: “toda generalização também o é”. Menos vícios e mais virtudes.
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1 Lei. 13.964/19 que acresce o art. 28-A - “Art. 28-A. Não sendo caso de arquivamento e tendo o investigado confessado formal e circunstancialmente a prática de infração penal sem violência ou grave ameaça e com pena mínima inferior a 4 (quatro) anos, o Ministério Público poderá propor acordo de não persecução penal, desde que necessário e suficiente para reprovação e prevenção do crime, mediante as seguintes condições ajustadas cumulativa e alternativamente:”
2 Revista Eletrônica de Direito Processual – REDP. Volume XIV. ISSN 1982-7636. Periódico da Pós-graduação Stricto Sensu em Direito Processual da UERJ. Patrono: José Carlos Barbosa Moreira pp.331-365. Clique aqui
3 Art. 142 - Não constituem injúria ou difamação punível:
I - a ofensa irrogada em juízo, na discussão da causa, pela parte ou por seu procurador;
II - a opinião desfavorável da crítica literária, artística ou científica, salvo quando inequívoca a intenção de injuriar ou difamar;
III - o conceito desfavorável emitido por funcionário público, em apreciação ou informação que preste no cumprimento de dever do ofício.
Parágrafo único - Nos casos dos ns. I e III, responde pela injúria ou pela difamação quem lhe dá publicidade.
4 “o Ministério Público também é um agente político. "Cada uma daquelas sete câmaras [de coordenação] elege anualmente as suas prioridades. A 3ª, que é a da ordem econômica do consumidor, tem 17 prioridades. Cada câmara tem sua prioridade porque nós somos agentes políticos. Qual é a diferença de um agente político para um servidor público? O agente político é aquele que pode escolher os meios para atingir o fim que há de ser sempre do interesse público." ARAS, Augusto. O MP é agente político que escolhe meios para atingir o interesse público, diz Aras.
5 Quem controla o controlador? Considerações sobre as alterações na Lindb
6 STJ - REsp: 1.298.092/SP 2011/0295559-5, Relator: ministro NAPOLEÃO NUNES MAIA FILHO, Data de Julgamento: 9/8/16, T1 - PRIMEIRA TURMA, Data de Publicação: DJe 15/9/16
7 Art. 11. Constitui ato de improbidade administrativa que atenta contra os princípios da administração pública qualquer ação ou omissão que viole os deveres de honestidade, imparcialidade, legalidade, e lealdade às instituições, e notadamente:
8 Art. 11. Constitui ato de improbidade administrativa que atenta contra os princípios da administração pública qualquer ação ou omissão que viole os deveres de honestidade, imparcialidade, legalidade, e lealdade às instituições, e notadamente:
I - praticar ato visando fim proibido em lei ou regulamento ou diverso daquele previsto, na regra de competência;
9 Art. 10. Constitui ato de improbidade administrativa que causa lesão ao erário qualquer ação ou omissão, dolosa ou culposa, que enseje perda patrimonial, desvio, apropriação, malbaratamento ou dilapidação dos bens ou haveres das entidades referidas no art. 1º desta lei, e notadamente:
10 Em média, o custo anual da força-tarefa em Curitiba é de quase R$ 2,5 milhões por ano, isto é R$ 206 mil por mês. O montante não inclui os salários dos integrantes, nem o custo da força-tarefa da Polícia Federal, que atuou até 2017 em Curitiba, e nem os gastos com as forças-tarefa de outros estados.
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11 (VIERIA, Antonio. Riesgos y Controles Epistémicos em la delacíon premiada: aportaciones a partir de la experiência em Brasil Fls. 56/57).
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14 Promotora é condenada por litigância de má-fé no Distrito Federal