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Da inconstitucionalidade da multa isolada de 50% aplicada sobre o débito objeto de compensação não homologada

A compensação, como forma de extinção do crédito tributário, é um direito posto em lei ao contribuinte, o qual não pode ser penalizado com a multa isolada de 50% tão somente pelo fato de a Receita Federal discordar, do ponto de vista fático, probatório ou interpretativo, acerca do direito creditório declarado no PER/DCOMP.

17/3/2021

(Imagem: Arte Migalhas)

1. Questões legais e procedimentais da compensação tributária

Conforme o Código Tributário Nacional (CTN), especificamente em seu art. 156, inciso II, a compensação tributária constitui uma das formas de extinção do crédito tributário. Em linhas gerais, a compensação nada mais é do que o encontro de contas entre credor e devedor, ou, segundo dispõe o artigo 368 do Código Civil Brasileiro: "Se duas pessoas forem ao mesmo tempo credor e devedor uma da outra, as duas obrigações extinguem-se, até onde se compensarem".

Assim, caso o sujeito passivo da relação jurídico-tributária seja a um só tempo credor e devedor do Fisco, pode ele, mediante previsão expressa em lei, nos termos do artigo 170 do CTN, compensar seus débitos tributários com créditos líquidos e certos, vencidos ou vincendos, perante a Fazenda Pública.

No âmbito federal a disciplina do instituto da compensação ficou a cargo do artigo 74 da lei 9.430/96, o qual prevê no §17, com redação dada pela lei 13.097/15, que "será aplicada multa isolada de 50% (cinquenta por cento) sobre o valor do débito objeto de declaração de compensação não homologada, salvo no caso de falsidade da declaração apresentada pelo sujeito passivo".

Com efeito, para deixar mais claro ao leitor que não está familiarizado com o procedimento de compensação, o contribuinte ao apurar crédito ou indébito tributário pode solicitar, no âmbito federal, à Receita Federal do Brasil (RFB) a compensação para quitação de outros débitos de tributos federais vencidos ou vincendos, através do preenchimento e transmissão eletrônica da Declaração Eletrônica de Compensação ("DCOMP").

Para tanto, o contribuinte deve seguir também as diretrizes traçadas pela legislação infralegal, notadamente a Instrução Normativa RFB 1.717/17.

Uma vez transmitido a DCOMP, a RFB tem o prazo de cinco anos para analisar a compensação pleiteada pelo contribuinte, nos termos do artigo 74, §5º, da lei 9.430/96. A análise pode resultar em: (i) a homologação tácita do pedido; (ii) a emissão de Despacho Decisório com a homologação total do pedido; (iii) a emissão de Despacho Decisório para a não homologação parcial ou total do crédito pleiteado.

O presente artigo tem como objeto especificamente a situação apontada no item (iii), na qual a RFB recusa total ou parcialmente a compensação e emite um despacho decisório, tornando a exigível a parcela do débito não homologada com o acréscimo de multa de mora (de 0,33% ao dia limitada a 20% (vinte por cento)) e de juros de mora calculados pela taxa referencial SELIC1.

Ocorre que, além dos acréscimos legais pertinentes à mora, o contribuinte também fica sujeito ao lançamento complementar da multa isolada prevista pelo artigo 74, §17 da lei 9.430/96, calculada em 50% sobre o montante do débito informado na compensação não homologada.

Conforme demonstraremos a seguir, em que pese a intenção do legislador ordinário ao introduzir tão rigorosa medida punitiva a fim de coibir eventuais abusos, entendemos que a aplicação indiscriminada da multa isolada pela não homologação da compensação, em qualquer hipótese, viola o ordenamento constitucional tributário.

2. Do Histórico Legislativo da Multa Isolada de 50%

Inicialmente, o artigo 27 da MP 472/09 alterou o artigo 18 da lei 10.833/03 para instituir multa isolada no caso de compensação indevida "quando não confirmada a legitimidade ou suficiência do crédito informado ou quando se comprove falsidade da declaração apresentada pelo sujeito passivo"2, aplicada sobre o total do débito indevidamente compensado.

De acordo com a Exposição de Motivos Interministerial 00180/09 – MF/MDIC, que acompanhou a MP 472/09, a criação dessa multa se mostrou necessária para "aperfeiçoar a imposição de penalidades na compensação", especialmente em face de contribuintes que se utilizam de "créditos inexistentes como forma de obter certidão negativa ou para não pagar o crédito tributário, contando com a homologação da compensação pelo decurso de prazo".

Nota-se que tal alteração declaradamente visava punir os contribuintes que, agindo com má-fé e abuso de direito, transmitiam PER/DCOMP informando créditos que, na realidade, eram inexistentes, como forma de compensar indevidamente e fictamente seus débitos e, com isso, manter falsamente a sua regularidade fiscal.

Durante a tramitação no Congresso o citado dispositivo foi suprimido, mas, em contrapartida, restou inserido o artigo 62 na lei 12.249/10 (conversão da MP 472/09), que alterou o artigo 74 da lei 9.430/963, prevendo a aplicação da multa isolada sobre o valor do crédito objeto de declaração de compensação não homologada.

Posteriormente, a MP 656/14, convertida na lei 13.097/15, revogou os §§ 15 e 16 e conferiu nova redação para o § 17 do art. 74 da lei 9.430/96, tal como já conhecemos hoje e reproduzida no início deste artigo, que prevê a aplicação da multa não mais sobre o crédito, mas sim sobre a parcela do débito objeto da não homologação.

É interessante observar a alegação utilizada pelo legislador para justificar a alteração da base de cálculo da multa, que, repita-se, passou a incidir sobre o débito e não mais sobre o crédito, reconhecidamente apostou na alteração legislativa como manobra para driblar a jurisprudência dominante, como destaca o trecho da Exposição de Motivos da MP 654/14, convertida na lei 13.097/15, que aponta a necessidade da alteração legislativa: "a jurisprudência judicial é quase unânime em afastar essa multa sob o argumento de que sua aplicação fere o direto constitucional de petição".

Prossegue a Exposição de Motivos: "A nova redação proposta para o § 17 deixa claro que o instituto da Declaração de Compensação não deve ser utilizado para extinção de débitos sem a existência de créditos correspondentes, em estrita observância do que dispõe o art. 170 do CTN".

A nosso ver, a alteração legislativa não conseguiu contornar a questão, uma vez que ela continua a penalizar indiscriminadamente e desproporcionalmente os contribuintes que, de boa-fé, utilizam créditos que julgam líquidos e certos, mas que, por controvérsia fática, probatória ou de interpretação legislativa, acabam sendo indeferidos pela Receita Federal.

3. Do Recurso Extraordinário 796.939/RS e da ADI 4.905

A discussão em torno da constitucionalidade da multa isolada prevista no artigo 74, §17, da lei 9.430/96 foi levada ao STF, que reconheceu em 2014 a Repercussão Geral da matéria nos autos do Recurso Extraordinário 796.939/RS (Tema 736), sob relatoria do Ministro Edson Fachin.

Trata-se de RE interposto pela Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional (PGFN) em face de acórdão lavrado pela Segunda Turma do TRF4, no qual se decidiu que a multa é inconstitucional por ferir o direito de petição previsto no artigo 5º, inciso XXXIV, alínea 'a' da Constituição Federal4.

Discute-se no RE a constitucionalidade dos §§ 15 e 17 do art. 74 da lei federal 9.430/96, incluídos pela lei 12.249/10, que preveem a incidência de multa isolada no percentual de 50% sobre o valor do crédito objeto de pedido de ressarcimento indeferido ou de declaração de compensação não homologada pela Receita Federal.

Ademais, vale destacar que a questão também é discutida na Ação Direta de Inconstitucionalidade 4.905, ajuizada pela Confederação Nacional da Indústria (CNI), que está sob relatoria do Ministro Gilmar Mendes e ainda aguarda pauta para julgamento.

No bojo do RE, a PGFN pleiteia o reconhecimento da constitucionalidade dos dispositivos e, subsidiariamente, pede a "aplicação da técnica de interpretação conforme a Constituição, para que se entenda pela aplicação das multas elencadas nos §§ 15 e 17 do art. 74 da lei 9.430/96, em caso de comprovado abuso de direito por parte do contribuinte".

O julgamento virtual do RE teve início em 07/04/2020, oportunidade em que o relator Ministro Edson Fachin leu o seu voto que negou provimento ao Recurso interposto pela PGFN e fixou a seguinte tese: "É inconstitucional a multa isolada prevista em lei para incidir diante da mera negativa de homologação de compensação tributária por não constar em ato ilícito com aptidão para propiciar automática penalidade pecuniária".

Após a leitura do voto pelo relator, houve pedido de vistas do Ministro Gilmar Mendes e o julgamento foi interrompido. Em 08/05/2020 o julgamento virtual foi retomado, porém, novamente interrompido por um pedido de destaque do Ministro Luiz Fux. O processo aguarda nova inclusão em pauta para conclusão do julgamento.

Em nosso entender, deve ser reconhecida a inconstitucionalidade da aplicação da multa isolada (tanto na redação anterior quanto na redação vigente), nos termos do voto condutor do Ministro Edson Fachin, com o objetivo de extinguir a penalização indevida de contribuintes que exercem de boa-fé um direito posto em lei.

É de se discordar, por oportuno, do pedido subsidiário da PGFN para reconhecer a interpretação do dispositivo conforme a Constituição, de modo a aplicá-lo somente aos casos em que demonstrado o abuso de direito do contribuinte. Isso pois, admitindo-se tal possibilidade, a interpretação do que caracteriza abuso de direito estaria aberta ao mais elevado grau de subjetividade por parte da Receita Federal e da PGFN.

Vale dizer que já há no ordenamento jurídico previsão específica para o contribuinte que utiliza da má-fé, mediante declaração falsa, para compensar indevidamente e fictamente créditos tributários, é o que se nota do artigo 18 da lei 10.833/03 ou do artigo 89, §10, da lei 8.212/91 (no caso de declaração falsa em GFIP), que preveem multa de 150% sobre o valor indevidamente compensado.

Assim sendo, uma vez reconhecida a inconstitucionalidade da multa isolada de 50%, apenas os contribuintes que de fato se utilizem de artifícios fraudulentos, como a declaração falsa, é que estarão corretamente sujeitos a penalidades já previstas na legislação em vigor.

4. Conclusões

Em que pese ser um direito reconhecido por lei, a compensação pode ensejar a aplicação de multa isolada de 50% sobre a parcela do débito não homologada pela Receita Federal. Isto é, diante do §17 do art. 74 da lei 9.430/96 a mera discordância total ou parcial da RFB com o crédito informado pelo sujeito passivo constitui fato gerador para aplicação de referida multa. Em última análise, o sujeito passivo é penalizado por simplesmente usufruir de um direito.

Veja assim que a previsão constante no art. 74, §17, da lei 9.430/96 é absolutamente inconstitucional, na medida em que pune o sujeito passivo por simplesmente haver discordância por parte da RFB sobre o valor do crédito pleiteado. A rigor, o dispositivo fere não só o postulado da proporcionalidade, mas também o direito à petição, esculpido no artigo 5º, inciso XXXIV, 'a', da Constituição Federal.

Portanto, é de se esperar o reconhecimento da inconstitucionalidade da multa isolada pelo STF, tal como definido no voto condutor do relator Ministro Edson Fachin nos autos do RE 796.939/RS. Logo, uma vez declarada a inconstitucionalidade, apenas os contribuintes que de fato se utilizem de artifícios fraudulentos, como a declaração falsa, é que estarão corretamente sujeitos a penalidades já previstas na legislação em vigor.

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1- Nos termos do art. 61 da lei 9.430/96.

2- "Art. 27.O art. 18 da lei 10.833, de 29 de dezembro de 2003, passa a vigorar com a seguinte redação:

'Art. 18.  O lançamento de ofício de que trata o art. 90 da Medida Provisória no 2.158-35, de 24 de agosto de 2001, limitar-se-á à imposição de multa isolada em razão de não-homologação da compensação quando não confirmada a legitimidade ou suficiência do crédito informado ou quando se comprove falsidade da declaração apresentada pelo sujeito passivo.

§ 2º A multa isolada a que se refere o caput deste artigo será aplicada sobre o total do débito indevidamente compensado, no percentual:

I - previsto no inciso I do caput do art. 44 da Lei no 9.430, de 27 de dezembro de 1996, na hipótese em que não for confirmada a legitimidade ou suficiência do crédito informado; ou

II - previsto no inciso I do caput do art. 44 da Lei no 9.430, de 27 de dezembro de 1996, duplicado na forma de seu § 1o, quando se comprove falsidade da declaração apresentada pelo sujeito passivo.

..................................................................................................." (NR)

3- "Art. 62.O art. 74 da lei 9.430, de 27 de dezembro de 1996, passa a vigorar com a seguinte redação:

"Art. 74.  .......................................................................

.............................................................................................

§ 15.  Será aplicada multa isolada de 50% (cinquenta por cento) sobre o valor do crédito objeto de pedido de ressarcimento indeferido ou indevido.

§ 16.  O percentual da multa de que trata o § 15 será de 100% (cem por cento) na hipótese de ressarcimento obtido com falsidade no pedido apresentado pelo sujeito passivo.

§ 17.  Aplica-se a multa prevista no § 15, também, sobre o valor do crédito objeto de declaração de compensação não homologada, salvo no caso de falsidade da declaração apresentada pelo sujeito passivo." (NR)" (n.g.)

4- "Nos casos em que não há evidência de que o contribuinte tenha agido de má-fé, constata-se que as penalidades dos parágrafos 15 e 17 do art. 74 da lei 9.430/96, conflitam com o disposto no artigo 5º, inciso XXXIV, alínea 'a' da Constituição Federal, uma vez que tendem a inibir a iniciativa dos contribuintes de buscarem junto ao Fisco a cobrança de valores indevidamente recolhidos, afrontando também o princípio da proporcionalidade".

Renan Cirino Alves Ferreira
Sócio do Cirino Ferreira Advogados. Master in Corporate Finance, Controllership and Economics, EESP/FGV. Especialista em Direito Tributário, IBET. Bacharel em Direito, PUC/SP.

Rodrigo Carvalho Samuel
Sócio do Cirino Ferreira Advogados. Mestre em Direito Constitucional e Processual Tributário, PUC/SP. Especialista em Direito Tributário, COGEAE-PUC/SP. Bacharel em Direito, PUC/SP.

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