Migalhas de Peso

Revisão do contrato futuro de compra e venda de soja – é possível?

Perguntam-se: posso adequar o preço a realidade?

12/3/2021

(Imagem: Arte Migalhas.)

No final do ano passado (2020), fomos “surpreendidos” com uma sentença proferida pelo Juízo da 1ª Vara Cível da Comarca de Curitibanos/SC, cuja qual autorizou a revisão de um contrato futuro de compra e venda de soja e, em consequência, alterou o preço pré-fixado pelas partes, aplicando, parcialmente, o preço vigente na data da entrega de referidas commodities1.

Isto é, as partes (vendedor e comprador), quando da conclusão do contrato (início de 2019), pré-fixaram o preço da soja, levando em consideração a cotação do dólar na época. Porém, chegado próximo a entrega de referida soja, o preço do dólar aumentou substancialmente, o que, em consequência, interferiu no contrato.

Assim, a parte vendedora (autora da ação), buscou a revisão do contrato, pedindo para que, ao invés de aplicar o preço pré-fixado por eles, de acordo com o dólar vigente a época, que fosse aplicado o preço contemporâneo a entrega da soja, fato este que lhe traria mais lucros.

Em 1° grau, a ação foi julgada parcialmente procedente, em aplicação a teoria da imprevisão. Vejamos:

“Reconhece-se na questão posta pela autora, qual seja, a interferência da pandemia sobre o câmbio, elevando sobremaneira a cotação do dólar frente ao real, a teoria da imprevisão que altera substanciamente as bases negociais, impondo ônus insuportável a uma das partes, enquanto a outra beneficia-se enormemente com a vantagem contratual advinda desse acontecimento posterior não conhecido e nem considerado quando da celebração dos negócios pelas partes”.

Em resumo: em que pese as partes terem fixado, expressamente, o preço da soja no contrato, o Judiciário nele interviu, autorizando a majoração do valor a ser pago, ou seja, alterando a cláusula livremente pactuada pelos contratantes, sob o fundamento da ocorrência de acontecimento extraordinário e imprevisível (pandemia), cujo qual trouxe uma excessiva onerosidade a parte vendedora e uma extrema vantagem a outra, em decorrência da variação cambial.

Dito isso, a pergunta que se faz é: pré-fixei o valor da saca de soja, porém, quando da entrega, a mesma aumentou substancialmente e, em assim ocorrendo, posso propor uma ação visando “adequar” o preço a realidade praticada?

É o que iremos tentar expor neste trabalho, em uma visão panorâmica, deixando registrado, evidente, que cada caso deve ser analisado levando em consideração suas peculiaridades.

II. DO CASO ACIMA MENCIONADO – PROCESSO 5001941-87 DE CURITIBANOS/SC

De início, vamos utilizar como exemplo o processo acima narrado, cujo qual já foi sentenciando, porém, houve recurso junto ao Tribunal de SC, estando pendente de resolução definitiva, portanto.

Pois bem. Em que pese a sentença ter sido parcialmente procedente, bem como respeitando aqueles que pensam de forma contrária, entendemos que, pelos fatos dos quais tivemos acesso, não seria o caso de revisão contratual!

E mais, entendemos também que, neste caso, independentemente da ocorrência da pandemia, tal fato não autorizaria a revisão contratual, quiçá, sem ela. Vejamos.

A uma, pois, para que seja aplicado a teoria da imprevisão, prevista no art. 478 do CC/022, é necessário que, em decorrência de acontecimentos extraordinários e imprevisíveis, a prestação de uma das partes se torne excessivamente onerosa, trazendo, em regra, extrema vantagem a outra.

Dito isso, pergunta-se: o vendedor, em decorrência do evento narrado (pandemia) ficou com uma prestação excessivamente onerosa?

Se os custos para o plantio foram os mesmos, não. A diferença é que o comprador irá auferir uma vantagem maior em decorrência da alta de preços, porém, para o vendedor, nada muda, inclusive continuará tendo lucro.

Ou seja, o fato de ter havido uma variação cambial que interferiu em seu contrato, não alterou os custos que anteriormente despendeu. Se não alterou, a sua prestação não se tornou excessivamente onerosa, ela é a mesma, não alterando, portanto, a base negocial. O próprio STJ assim já se manifestou em caso similar. Vejamos o excerto:

“DIREITO EMPRESARIAL. CONTRATOS. COMPRA E VENDA DE COISA FUTURA (SOJA). TEORIADA IMPREVISÃO. ONEROSIDADE EXCESSIVA. INAPLICABILIDADE. 1. OMISSIS. 2. OMISSIS. 3. O caso dos autos tem peculiaridades que impedem a aplicação da teoria da imprevisão, de que trata o art. 478 do CC/2002: (i) os contratos em discussão não são de execução continuada ou diferida, mas contratos de compra e venda de coisa futura, a preço fixo, (ii) a alta do preço da soja não tornou a prestação de uma das partes excessivamente onerosa, mas apenas reduziu o lucro esperado pelo produtor e (iii) a variação cambial que alterou a cotação da soja não configurou um acontecimento extraordinário e imprevisível, porque ambas as partes contratantes conhecem o mercado em que atuam, pois são profissionais do ramo e sabem que tais flutuações são possíveis. 5. Recurso Especial conhecido e provido. (STJ – REsp: 936741 GO 2007/0065852-6, Relator: Ministro ANTONIO CARLOS FERREIRA, Data de julgamento: 03/11/2011, T4-QUARTA TURMA, Data de Publicação: DJE 08/03/2012). [g.n]

Portanto, mesmo que se defendesse pela ocorrência de evento extraordinário e imprevisível (pandemia), do qual interferiu para alta do dólar, faltaria, ainda, um requisito para a aplicação de citada teoria e consequente revisão do contrato, que é justamente a prestação tornar-se excessivamente onerosa para o vendedor, até porque, como ensina VENOSA, “não são motivo de revisão os fatos, por mais imprevistos, que não aumentam o sacrifício do obrigado3.

III E A ALTA DO PREÇO, AUTORIZA A REVISÃO?

Muitos produtores firmaram contrato futuro de compra e venda de soja no início do ano de 2020, pré-fixando a saca em R$ 80,00 (oitenta reais), por exemplo. Ao serem compelidos a entregá-las após colheita safra 20/21, seu preço aumentou significativamente (praticamente dobrou).

No dia 03/03/2021, por exemplo, a cotação média da soja padrão balcão no estado de Goiás estava em R$ 155,79 (cento e cinquenta e cinco reais e setenta e nove centavos)4.

Essa disparidade, autorizaria a revisão?

Primeiro, a onerosidade excessiva ao produtor, se faz presente? Se a prestação do produtor é a mesma quando da conclusão do contrato, não houve, a priori, uma alteração na base negocial, o que impediria a sua revisão, conforme premissas acima utilizadas para explicar o caso de SC.

Entretanto, se o produtor conseguir demonstrar, por exemplo, que entre a conclusão do contrato e o plantio, houve um EXCESSIVO aumento no preço dos insumos, tornando uma prestação extremamente onerosa, abrir-se-ia uma discussão plausível. AZEVEDO5 cita um exemplo esclarecedor em sua obra que nos vem a calhar:

“Suponhamos que um engenheiro se obrigue, fornecendo material e mão de obra, a construir para alguém uma casa, por oitocentos mil reais, reservando dessa soma cento e cinquenta mil reais como seus honorários. Por imprevisível e brusca alteração no mercado, aumenta o preço do material de construção, eleva-se o salário mínimo, a ponto de impossibilitar o devedor ao cumprimento de sua obrigação. O que de material e de mão de obra tinha sido previsto, para custar seiscentos e cinquenta mil reais, passa a custar oitocentos mil reais, colocando o engenheiro em posição de desempenhar seu serviço, sem qualquer remuneração”.

Assim, nesta situação, poderíamos entender que o requisito da onerosidade excessiva se faria presente, pois os custos do vendedor/produtor aumentaram demasiadamente, fato este que tornou a sua prestação de difícil ou até impossível cumprimento, alterando a base negocial inicial. Mas, registra-se: tudo isso deve ser comprovado!

Mas, pergunta-se: a causa desse aumento pode ser considerada evento extraordinário e imprevisível?

Sabemos que seu aumento se deu por vários motivos, mas levemos em consideração o aumento do dólar e consequente inflação, que, por detrás, possui vários outros.

A doutrina e o Poder Judiciário, em sua grande maioria, entendem que não é um evento extraordinário6, pois, nessas operações, as partes têm em mente a possibilidade de ocorrência. VENOSA7, com a clareza de sempre, assim se posiciona:

“No país em que vivemos, por exemplo, a inflação não pode ser tida como imprevisível, nem a corrupção de membros do Poder Público, por exemplo.

Destarte, por exemplo, a nosso ver, não pode ser tomada como fato anormal e estranho uma desvalorização cambiária no país, tantas e tantas já ocorreram entre nós”.

Mas e a pandemia, influência de alguma forma?

Depende. Primeiro, deve analisar a data em que o contrato foi firmado.

Se o contrato foi feito no final de 2019, início de 2020, entendemos que não há interferência.

Ora, em referido período a COVID-19 já se alastrava pelo mundo afora, sendo de conhecimento geral e, a crise, evidente, seria uma consequência natural.

Portanto, aquele que firmou contrato em 2020, por exemplo, não pode utilizar como fundamento o vírus da COVID-19, pois, reitera-se, o mesmo já se alastrava de forma incisiva ao redor do mundo e era de conhecimento amplo, não preenchendo, assim, o requisito da imprevisibilidade!

Segundo, deve analisar se, mesmo o contrato tendo sido firmado antes do alastramento do vírus, sendo imprevisível e extraordinário, portanto, nele interferiu, isto é, se há nexo de causalidade entre a prestação tornar-se onerosa e a pandemia.

Para o juízo da 1ª Vara Cível de Curitibanos/SC, sim, houve interferência, pois, segundo ele, a pandemia fez com que o dólar aumentasse substancialmente, vejamos:

“De modo que essa relação causal entre a pandemia pelo coronavírus e a exacerbação do dólar pode ser admitida com razoável tranquilidade, na ausência de outras causas a pressionar de tal maneira o câmbio”, sic.

Assim, autorizou a revisão do contrato, a fim de readequar parcialmente ao preço vigente à época da entrega.

Acontece que, como dito acima, mesmo que tenha havido alguma interferência, e tal qual tenha sido entendida como extraordinária e imprevisível, não houve qualquer menção, pelo menos na sentença, ao fato que justificasse a onerosidade excessiva, o que inautorizaria a aplicação da teoria da imprevisão.

São por estes e outros motivos que, salvo a comprovação dos requisitos acima, a teoria da imprevisão tem aplicação quase que nula pelo Poder Judiciário junto aos contratos de compra e venda futura.

Mas é bom que se diga que o próprio STJ, em 2016, autorizou a revisão do contrato futuro de entrega de soja, pois, a safra do produtor passou por uma estiagem longa e nunca vista, o que lhe trouxe prejuízos irreparáveis. Vejamos o excerto:

“[...] Diante da situação anormal ocasionada pela estiagem que comprometeu a produção da soja e a fim de resguardar o equilíbrio entre as partes contratantes e zelando ainda pela função social do contrato bem como, pela boa-fé objetiva, vislumbra-se, no caso, motivo ensejador para resolução do contrato por onerosidade excessiva e por quebra da base objetiva do contrato, sem a imposição de qualquer multa em desfavor do autor-apelado, como reconheceu a r.sentença”. (STJ – AREsp: 698136 SP 2015/0097370-0, Relator: Ministro Paulo de Tarso Sanseverino, Data de Publicação: DJ 27/10/16). [g.n]

Isso reforça o que já foi levantado neste trabalho: cada caso deve ser analisado levando em consideração suas peculiaridades. Exemplo disso é o julgado acima transcrito, cujo qual autorizou a revisão do contrato, mesmo a jurisprudência, inclusive do STJ, ser bem resistente a aplicação de citada teoria em contratos desta natureza.

CONCLUSÃO

Após a exposição, em linhas gerais, da teoria da onerosidade excessiva, fica claro que o Poder Judiciário pouco, quase nada, lhe aplica em contratos futuros de compra e venda de soja, pois, quase sempre, ausente seus requisitos.

Ademais, se antes já tinha pouca aplicação, quiçá agora, com a entrada em vigor da lei 13.874/19, que alterou a redação do art. 421, passando a dispor em seu parágrafo único que: “nas relações contratuais privadas, prevalecerão o princípio da intervenção mínima e a excepcionalidade da revisão contratual”, além de acrescentar o art. 421-A, do qual em seu inc. III dispõe: “a revisão contratual somente ocorrerá de maneira excepcional e limitada”.

Fica claro, portanto, que o conhecido princípio do pacta sunt servanda ou a velha máxima tão conhecida pelos operadores do direito “o contrato faz lei entre as partes”, terá uma aplicação ainda maior em tempos atuais.

Isso implica dizer que o interessado/produtor, deverá, através de assessoria especializada, analisar bem se, de fato, há justificativas para a revisão contratual, sendo que o aumento do preço, por si só, em nada autoriza a modificação do contrato.

Além disso, não custa lembrar que uma eventual improcedência da ação lhe trará mais custos, como, por exemplo, despesas processuais, honorários, além das consequências materiais do descumprimento contratual (multa, cláusula washout e etc.), sendo que o produtor/vendedor também poderá ficar com uma relação estremecida junto ao vendedor, diante da quebra do contrato.

Portanto, todos estes fatos devem ser ponderados pelo interessado e, numa eventual impossibilidade de entrega dos grãos, o melhor caminho sempre é a tentativa de resolução amigável.

_________

1- Processo n° 5001941-87, em trâmite perante a 1ª Vara Cível da Comarca de Curitibanos/SC.

2- Art. 478. Nos contratos de execução continuada ou diferida, se a prestação de uma das partes se tornar excessivamente onerosa, com extrema vantagem para a outra, em virtude de acontecimentos extraordinários e imprevisíveis, poderá o devedor pedir a resolução do contrato. Os efeitos da sentença que a decretar retroagirão à data da citação.

3- VENOSA, Silvio de Salvo em Código Civil Interpretado, 4 ed., São Paulo: Atlas, 2019, pág. 1111

4- IFAG – Instituto para o Fortalecimento da Agropecuária de Goiás. Cotação Soja Balcão (sc). Disponível em aqui. em: no dia 04/03/2021.

5- AZEVEDO, Álvaro Villaça em Teoria Geral dos Contrato, 4. ed, São Paulo: Saraiva Educação, 2019, pág. 44.

6- AgInt nos EDcl no AREsp 784.056-SP, Terceira Turma do STJ, Rel. Min. MARCO AURÉLIO BELLIZZE, DJe 22.09.2016)

7- VENOSA, Silvio de Salvo em Código Civil Interpretado, 4 ed., São Paulo: Atlas, 2019, pág. 1108 e 1115.

Leonardo Scopel Macchione de Paula
Advogado Tributarista. Professor de Direito Contratual.

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