Este texto se apresenta em forma de indagação preliminar. Não se pretende, portanto, concluir nada, mas traçar alguma contribuição ao saudável debate, relegando a autoridade de boas ideias a um autor que pouco é estudado no Brasil no que diz respeito ao tema aqui abordado.
Pois bem.
Se é certo que, no mundo moderno – de inevitáveis risco e volatilidade –, vêm sendo empreendidos grandes esforços no sentido de reduzir a dilapidação do conceito de segurança (enquanto valor social) e de adaptar a vida e a sociedade à nova realidade, mais certo ainda é que, aplicado ao contexto jurídico brasileiro (isto é, a segurança jurídica), faz-se dispensável empreender grandes esforços para se chegar à conclusão de que vivemos uma acentuada insegurança jurídica.
Isso afeta negativamente não só o ambiente de negócios e a aptidão para receber investimentos, mas principalmente a credibilidade do Poder Judiciário, a estabilidade das instituições democráticas, e o próprio tecido social do país.
Quanto aos dois primeiros pontos, dentre outras iniciativas isoladas, em aparente desapreço à tradição jurídica brasileira, e – parece – em demonstração de humildade e reconhecimento das vicissitudes do direito brasileiro, no CPC de 2015, visou-se à criação de um peculiar sistema de precedentes, se eficácia ainda não comprovada nesse pouco tempo de vigência (muito pela resistência a ele imposta por Magistrados), que espelha, de forma assimétrica, a tradição jurídica do common law, prestigiando e reverenciado esta quanto às características que concernem precisamente à segurança jurídica.
Quanto aos outros três, pouquíssimo tem sido feito.
É fato que o Brasil, a exemplo da maioria dos países latinos, pertence à família romana-germânica, ou seja, adota-se, por aqui, o Civil Law como tradição jurídica (tal referência pode ser constatada, dentre outras fontes, através do exame da seguinte base de dados: JURIGLOBE: Groupe de Recherche sur les systems juridiques dans le monde. Universidade de Ottawa. Disponível aqui).
Isso decorre da colonização exercida nestes países por Nações europeias que, marcadas pela dominação romana, tinham sua tradição jurídica ligada ao direito escrito, dogmático. Consoante o magistério de René David, a aderência ao sistema do Civil Law nestes países se deu de forma escalonada, em dois momentos, e no sentido de conferir mais identidade cultural a essas colônias, em relação ao direito europeu continental. Sintetizando, assevera:
"Inicialmente, na prática, pôde predominar, fora das cidades e de alguns centros, um direito bastante primitivo, em consequência da subadministração do país e da ausência de juristas. À medida que a América foi se desenvolvendo, o direito prático começou a se aproximar do erudito: de início, direito doutrinai ensinado nas universidades da América e da metrópole, depois, direito incorporado nos códigos redigidos à imagem e semelhança dos códigos europeus." (DAVID, René. Os grandes sistemas do direito contemporâneo. 4ª ed. São Paulo: Editora Martins Fontes, 2002. p. 77.)
De acordo com Streck e Abboud, "a tradição jurídica relaciona o sistema jurídico (conjunto de regras normativas) com a cultura, ela insere o sistema legal dentro e a partir da perspectiva cultura."
Nesse diapasão, depreende-se que a tradição jurídica se apresentaria como algo condicionado – à história e cultura – e condicionante, em relação ao modo com que o direito se põe no mundo fenomênico, isto é, como ele é criado e aplicado, resultando em uma impressão de imutabilidade da tradição jurídica.
Mesmo seguindo uma agenda conservador e reformista, é certo que a sociedade é mutável (ainda que a passos lentos e curtos), e é curioso que, no Brasil, pouco ainda seja pesquisado e discutido sobre a possibilidade de alteração da tradição jurídica e adaptação do direito conforme a realidade, o que traz a natural indagação acerca das razões disso.
Se, um dia, superado esse atraso em referência, realça-se o papel central que a doutrina de Roscoe Pound, ex-reitor das Faculdades de Direito da Universidade de Nebraska e da Universidade de Harvard, teria nesse campo, conquanto seja esse celebrado autor prestigiado por sua produção sobre o realismo jurídico.
É necessário, nesse sentido, jogar luz sobre a ainda relevante obra "The Spirit of The Common Law", escrita por Pound em 1921, e na qual são postas a apreciação questões sobre as quais recai densa omissão, dentre outras i) a experiência e resultados do common law e do civil law diante de crises na história de ambos; ii) a análise empírica sobre situações de enfrentamento entre as duas tradições jurídicas (tomando os exemplos Estados que compõem a federação dos Estados Unidos da América e, também, de Estado soberanos – ex: África do Sul, Escócia e Filipinas); iii) os aspectos problemáticos e dignos de correção do próprio common law.