“(...) The wise shall lead and rule, and the ignorant shall follow (…).” Platão1
“(...) Queres que te diga o que penso, Diz, Penso que não cegámos, penso que estamos cegos, Cegos que veem, Cegos que, vendo, não veem (...)”. Saramago2
Uma árvore com raízes bem vincadas, esse é o governo dos juízes entre nós. Não é preciso ser versado em Direito para saber, basta seguir o noticiário. E se todo grande evento pede uma data simbólica, ela seria 5 de outubro de 1988, data da promulgação, não da Constituição Cidadã, mas da Constituição Burocrática, logo avocada em Constituição Judiciária. A lógica é elementar:
I. Na Constituição holística, que a tudo abarca e absorve, o que o Poder Público não faz de dia ele termina por acabar de não fazer à noite, numa espécie de Penélope ociosa duplamente cruel, sempre a repassar o custo da vida para a sociedade; o que sobra? um estendal de direitos, e valores, e interesses, e ponderações, e princípios, e teses, e teorismos, e conjecturas, e rocamboles retóricos; tudo em profusão na Carta e na fantasia: e quando não houver naquela, esta inventa, na academia;
II. Nesse quadro desarticulado de entrosada inação e ineficiência, o desaguadouro natural é o Poder Judiciário; e este compreendeu muito bem o cenário; e viu que o Poder é bom; e desandou a preencher esse grande cheque em branco que é o Brasil; então ele assumiu as rédeas, e passou a legislar al modo suo, sobre o que não tem e até sobre o que já tem lei; e a legislar sem legitimidade política, muitas vezes sem expertise em temas técnicos complexos, sem medir as consequências de seus atos, e sem submeter-se ao teste democrático das urnas; como medicine man, juízes decidem pela sociedade; e mais do que isso, escolhem por ela; e mais do que isso, definem até mesmo o padrão estético do bom e do belo;
III. Essa é a nossa vida: vivida na subversão das instituições, contra a maré, e de trás para frente; ela só começa, efetivamente, a valer – só começamos a pisar em solo seguro, e nem assim, pois nunca se afasta o risco de uma nova reviravolta estratégica logo em seguida – décadas depois da prática de determinado ato ou da celebração de determinado pacto, quando, então, o STF, consultados os arcanos do Jardim de Maytrea, diz o que é bom, ou o que deveria ter sido; então ele arranca o motor e derruba os tripulantes, nesse banana bolt macunaímico; não há, nem pode haver, organização mínima, nem estrutura negocial, nem planejamento de ideias, nem mercado, nem economia, nem ambiente de segurança e previsibilidade, não há nada, enfim, que resista aos efeitos devastadores e extravagantes de uma constante roleta russa de desmandos colegiados ou espasmos monocráticos que nascem out of the blue.
É claro que esse estado de coisas merecia uma data exclusiva. E 4 de março de 2021 foi esse dia: uma data oficial e definitiva, a ser imortalizada para a magistratura. Com maioria já formada3 no julgamento do RE 1.101.937/SP, o STF assentou o que a realidade forense já assentara:
a) Que o art. 16 da lei 7.347/85, alterado pela lei 9.494/97, e que apenas diz(ia) o óbvio dentro de uma organização federativa – a saber, que um juiz não pode julgar para além da territorialidade de sua investidura – seria inconstitucional;4 com isso, a Federação (CF, arts. 2º, 18, e 21 a 24), que vale para presidentes, governadores, senadores, deputados, prefeitos, vereadores, e qualquer servidor; que vale (quer dizer, ora vale, ora não vale, nunca se sabe) para a instalação de uma ERB; que vale, até, para o Coronavírus – que, embora planetário, o STF entendeu que seria um problema local, a ser tratado localmente... – só não vale para juízes;
b) Juízes, enfim, que não gostam de embargos de declaração, não têm, agora, oficialmente, limites (ao menos geográficos) para julgar; na prática, isso significa que o que quer que um magistrado decida, pouco importa sua comarca, ainda que do rincão mais recuado desse país continental, poderá ter abrangência e eficácia nacional – o espetáculo, como se vê, seria cômico, se não fosse trágico;
c) Tudo isso, é claro, aplica-se a ações coletivas; mas isso é apenas um detalhe; o que um juiz decide numa sentença individual só não vale indistintamente para todos pela razão óbvia de que as partes são definidas; do contrário, sentenças, neste país tropical, seriam universais, vinculantes, se pudessem, para a própria ONU.
Mas nenhuma ideia, por mais bem intencionada que seja, vale mais do que a garantia de limitação do poder; porque não se transige com ele. O mundo espiritual, no entanto, prevaleceu sobre a Federação: vitória do CDC sobre a Constituição. Tecnicamente, o julgado implica mais. Na prática:
a) Ações civis públicas valerão mais que recursos julgados em regime de repetitivo, e mais do que recursos em regime de repercussão geral; serão mais rápidas e mais instantâneas: (I) bastará um juiz, (II) uma decisão, (III) espargida sobre todo o território nacional, (IV) quiçá um julgamento de revisão, (V) com muita sorte, ainda, um julgamento de cúpula, e (VI) o decreto judicial estará sacramentado;
b) Não haverá jurisprudência sobre temas coletivos; e a razão é óbvia: se a sentença tem eficácia nacional, não poderá haver mais de uma ação coletiva por matéria; todas serão reunidas e julgadas pelo juízo prevento; e serão julgadas pela primeira e última vez; não haverá confronto de decisões, nem, muito menos, concorrência de teses; as sentenças não competirão no mercado das ideias pelo melhor entendimento, nem haverá pluralidade de filtros locais e regionais, sobretudo quanto a aspectos fático-probatórios, a cargo dos tribunais de revisão, até que as decisões galguem os tribunais de cúpula, quando, então, são uniformizadas; essa é a lógica processual, e racional, de uma justiça federativa, uma lógica que será eliminada e substituída pela lógica de um estado central e autárquico;
c) Ações civis públicas serão, então, uma espécie de ação direta, senão no rigor técnico propriamente dito do instituto, ao menos no que tange à possibilidade de uma ligação direta entre uma demanda e uma resolução definitiva, e derradeira, por sentença, a partir de um controle amplo, praticamente total e irrestrito, dotado de eficácia nacional vinculante; se executivos fortes governam por decretos-leis, judiciários hipostasiados assim o fazem por ações diretas; agora, a exceção que pertencia ao cimo, em sede de controle concentrado, e na qualidade de legislador negativo, é trazida para a base da pirâmide judiciária, como regra, e de modo ativo, a ensejar, doravante, novos estímulos para ativismos justiceiros; e aqui também não é necessário militar no foro para aquilatar a gravidade do quadro de paúra que essa (nova) conformação suscita num Estado Democrático de Direito.
Arrocha-se, ainda mais agora, o cerco de controle pelo Poder Público (inadimplente e fora do raio de incidência de ações coletivas, notadamente os tributos – MP 2180-35/01) sobre o particular; intensifica-se, ainda mais, a hegemonia da burocracia sobre o mundo da vida e o pesado fardo que ela impõe à sociedade; cria-se, enfim, com esse movimento, um arcabouço institucional de xeque mate às liberdades individuais – uma flor pouco cultivada aqui. A judicialização é patológica; e mais do que isso, é institucional. A academia a estimulou. E o Judiciário não desbastou esse ímpeto: muitas vezes, ao invés de desbaratar indústrias de ações, ele as insuflou, notadamente nos casos em que a responsabilidade cabia ao Poder Público, mas que o Estado, com o pretexto do CDC, a desviou para o setor privado.5 Hoje, seja como for, não há mais essa opção, a de não judicializar e não padecer as consequências da judicialização. Basta que um autor coletivo, por sua generosa plêiade de contemplados a litigarem em regime de substituição processual, isto é, legitimados a quererem por outros, tenha uma ideia, ou ideologia, de mundo na cabeça (própria e peculiar) e decida transformá-la em demanda, para que essa inspiração etérea, então (assim nasceu o dano moral coletivo), possa ganhar a forma de um bilhete premiado, válido para todo o Brasil, e moldar, com isso, a realidade.
Para isso, aliás, tem servido, na prática, a tutela coletiva. Há muito de inanidade no discurso que a sustenta, e sobretudo nos seus resultados efetivos, ainda a serem passados a limpo. É que ações coletivas se convolaram em foros acadêmicos abstratos para a afirmação de teses de laboratório, despregadas da realidade da vida, e sem correspondência ou compromisso com os fatos. Comumente, nem sequer se demonstra a dimensão coletiva, isto é, a legitimidade ativa e a sua utilidade; são desfiadas conjecturas teóricas, quando muito, por amostragem. As mais das vezes o autor coletivo advoga, sem procuração, para grupos de particulares; e outras tantas ações coletivas são propostas contra a vontade de substituídos, que nem sequer são consultados. Não admira, então, que, ao final, poucos beneficiários, ou mesmo nenhum, se habilitem na liquidação; nem admira, ipso facto, que os próprios autores coletivos postulem que os réus divulguem, por conta própria, em veículos de grande circulação, o resultado dessas demandas. Há, muito, também, de aldrabice: ações coletivas são fontes de receitas para cofres públicos; em muitas delas, inclusive, nada se pede em benefício do consumidor, apenas indenizações e multas processuais destinadas a fundos públicos, num uso desviante e abusivo do instituto. Os exemplos são diários. O de anteontem é o da churrascaria multinacional: magistrada do trabalho, em ação coletiva, impingiu-lhe condenação multimilionária (17MM) por haver cumprido a lei; a lei, no entanto, segundo ela, seria incompatível com o “ser-do-direito”...6 Na prática, ações coletivas servem, para o Poder Público, de instrumento de controle (total) e modelagem (a feitio) do mundo da vida, e fator de intimidação para o setor privado.
A questão da eficácia nacional descortina, como nenhuma outra antes talvez tenha revelado, o estratégico casamento, estável e muito bem-sucedido entre nós, entre Poder e Academia: está a municiar aquele de teses cerebrinas e sibilinas, e aquele a direcionar o foco de pesquisa desta. Antes do julgamento, artigo circulado na comunidade jurídica defendia que a questão – da eficácia nacional da sentença coletiva – não seria constitucional. Era, é claro, um artigo acadêmico. Só, de fato, no mundo das quimeras, jurisdição, que é poder, não seria uma questão constitucional – quando tudo, entre nós, é constitucional, até o que não é. E só na alquimia de um laboratório é que limitação do poder, a mais constitucional das questões, poderia converter-se em mera questão consumerista. É preciso, enfim, muito talento retórico para desviar-se, e nos desviar, do óbvio. E nós o temos de sobra. Outros tantos artigos, bem fundamentados, sustentavam temas periféricos, tais como coisa julgada, microssistema de tutelas coletivas, acesso à justiça, economia e efetividade processuais, ou, ainda, a possibilidade de decisões conflitantes. Mas não duvide o leitor: o que estava em jogo no julgamento era o poder – a quantidade de poder que a mais alta corte de magistrados conferiria à magistratura.
O fato é que, há tempos, de modo paulatino e nada velado, com catequeses e homilias aplaudidas pela mídia, o governo dos juízes preparava o último ato da engrenagem desse sofisticado mecanismo de poder: a implantação oficial do Iluminismo judiciário. Mas era necessário, antes, erguer, com fronteiras bem definidas, o muro de separação; era preciso tirar o Judiciário da Federação. Agora a obra está completa. Dia 4 de março de 2021 é a data da fundação, oficial, entre nós, da República Platônica do Brasil. Não do Platão (ainda) socrático da Apologia; nem do Platão romântico do Banquete; mas do Platão da República, do Político e das Leis; do Platão conselheiro do tirano de Siracusa; do Platão, enfim, dos Reis-Filósofos, protegidos por seus guardiães. Juízes estão fora da Federação porque saíram da caverna e contemplaram em êxtase a visão beatífica do Ser... Ao terceiro estado, constituído pela multidão de cegos que vivem dentro da caverna, a condenação à cegueira... Eis a essência da Justiça iluminada: cada um no seu lugar, e todos a seguirem os sábios.
O espectro de Platão deambula agora mais feliz pelas sombras literárias da eternidade: jamais seu projeto autoritário de paideia terá assumido uma conformação concreta e real mais perfeita, sutil e cínica. O Brasil – o país do futuro... do passado – ficará ainda mais caro. Mas não importa, ele dorme eternamente em berço esplêndido, abençoado por Deus, e bonito por natureza.
1 PLATO, Laws, 690b.
2 SARAMAGO, José, Ensaio sobre a Cegueira, Lisboa: Porto Editora, 2014, p. 344.
3 O julgamento não está encerrado, o resultado não está sacramentado, o MP, no entanto, com aguçado senso de oportunidade e estratégia, já está a postular ... a postular que “seja afastada a suspensão nacional dos processos que cuidem do Tema nº 1075 de Repercussão Geral” (petição protocolizada pelo MPF no dia 10.3.2021, nos autos do RE 1.101.937/SP).
4 O mais curioso, embora não espante, é que o próprio STF já havia afirmado, anteriormente, inclusive em sede de controle concentrado (ADI 1.576/DF), a constitucionalidade de tal dispositivo. Em 2017, aliás, ao julgar o RE 612.043/PR, o STF entendeu, em questão ontologicamente análoga, que beneficiários do título executivo, em ação coletiva, seriam aqueles que constaram da lista da petição inicial e que seriam residentes na área compreendida na jurisdição do órgão julgador.
5 Vide, v.g., centenas de milhares – quiçá milhões – de ações nas quais autores pretendem receber: i) contra empresas de telecomunicações, e não contra a Telebrás, resíduo acionário de linhas telefônicas adquiridas há décadas; ii) indenizações contra seguradoras, e não contra a Caixa Econômica Federal, por vícios de construção no imóvel, igualmente ocorrido há décadas, no programa do Sistema Financeiro da Habitação, mesmo que o contrato exclua essa hipótese; etc.
6 “O 'caso MPT x churrascaria Fogo de Chão': R$ 17 milhões por cumprir a lei”